tag:blogger.com,1999:blog-7734463079345576572024-02-08T12:11:56.634-03:00Rust HillQuando eu tiver tempo, eu escrevo alguma coisa, me desculpem, prematuramente.Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/11880141985917394429noreply@blogger.comBlogger58125tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-2419046439408844082017-05-21T16:37:00.000-03:002017-05-21T16:37:07.695-03:00Através da fechadura 2/3<iframe frameborder="0" height="288px" src="https://onedrive.live.com/embed?cid=0C9DDD27E1354192&resid=C9DDD27E1354192%21120&authkey=AKYJcAa17Mmv7Bk&em=2&wdStartOn=1" width="476px">Este é um documento do <a target='_blank' href='https://office.com'>Microsoft Office</a> incorporado, da plataforma <a target='_blank' href='https://office.com/webapps'>Office Online</a>.</iframe>Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-56346668149792292782017-04-21T20:48:00.003-03:002017-05-21T15:58:22.926-03:00Através da fechadura - parte 1/3<br />
A partir do momento que você passa a escutar a madrugada, em seu âmago, que você considerava mais néscio, a voz, crônica, suada e encolerizada, um tanto crepitada aos longes, vós entrais em pânico. Gradativamente, em, pânico. Associações de três palavras que provocam um efeito elástico e borrachudo, que se estica e rebenta de volta em você, a cada vez, com uma dor ainda maior.<br />
Foi assim que aprendi sobre a loucura, mas não foi bem assim que a senti a primeira vez e reagi a ela.<br />
<br />
A primeira nós nunca esquecemos,<i>não é mesmo?</i><br />
<br />
<br />
Albert Hickham estava dando aula de história, com aquela gravatinha que eu achava meio gay e com os tênis, - como sempre, bem polidos e engraxados, - na hora em que cheguei. Vivenciei um dos melhores momentos da nossa amizade naquele instante; quando ele disse que Alexandre, o grande, era tão ridículo para tentar combater um exército que ele sabia que ia perder, que morreu, como havia previsto, também, de acordo com algumas tortas estórias, e também, que se parecia comigo; disse isso enquanto eu estava-lhe mostrando o dedo do meio através da vidraça quadricular, às costas dos garotos que, possivelmente, não tinham mais que doze anos; os dois dedos do meio se transmutaram em um espaldar de mãos que se remexiam, fazendo-me, um monstro nada aterrorizante para todos. E como era de se esperar;<br />
Todos riram.<br />
<br />
Lembro-me bem de sairmos para tomar café em algum quarteirão adiante da Spring West Ville e, com uma área reservada, com um telão grande exibindo a novela da tarde, e um logo que dizia que fumantes podiam fumar na p* que p*. O dono dali podia ter uma boutique em outro lado do mapa, mas mesclando um restaurante a ele, burrice pura. Primeiro que ninguém mais, hoje em dia, anda em boutique. Segundo que, 98% da clientela de bares e restaurantes são de fumantes. O urbe da fumaça. Se tira o cigarro, você tira toda alma da cidade.<br />
E a pergunta fica: <i>Vai lucrar com o quê?</i><br />
Adventiciamente, esse restaurante/boutique, era um dos lugares mais ricos da cidade. Sobre todo o perfil de seu dono, que ocasionalmente transitava dentre fantasma e italiano, poderíamos concluir que se não fosse um ex-coveiro da Itália, então, tinha algo a ver com a mafia de lá.<br />
Ele fez um comentário a parte:<br />
- Quem seria maluco de colocar uma boutique junto a um restaurante? - disse ele, rindo, com sua voz mais sussurrada e recuante. Seu velho típico jeito de ser.<br />
- Eu não sei. Mas... O dono, o sr. Hud, parece um cara em busca de dinheiro a todo instante. Mais do que sua própria saúde. - Eu disse.<br />
- É aquele cara que estava no hospital com uma mancha roxa nos raios-x e precisava de dinheiro para cobrir todos os custos da cirurgia?<br />
- Não. Esse é Thomas. Seu irmão a propósito. Esse cara... - fiz uma pausa enquanto chegávamos em frente da Magazine's Heros and Jokes, e nos deparávamos com uma versão do coringa bem mais sombria e esquisita que a do habitual. - Nunca se viu mais gordo.<br />
- Bizarro. - nossos olhos, dois "adultos", em frente de uma loja de revistinhas em quadrinhos, movediços sobre aquilo ali. - E você não tem nada pra dizer? - Sua voz tornou a recuar e ficar suave e solícita. Sempre conseguia fazer você lembrar de algo quando queria e deixava sempre a desejar, onde o assunto se tornava vago e não-propício.<br />
- O que você quer dizer? - Perguntei.<br />
- Nada. Apenas... À memória estagnada. - E ele tinha a filosofia da composição nos olhos e na fala.<br />
<br />
Eu tinha me lembrado. Tão rápido quanto um <i>Flash</i>;produzido por um farol e sendo visualizado de um barco a nove quilômetros de distância.<br />
- A loja de artefatos.<br />
- Isso. A loja. E os artefatos em seguida.<br />
Às vezes ele parecia ter usado alguma coisa entorpecente. Alguma droga, não das pesadas, mas daquelas que ou te faz explodir mentalmente, ou te transforma num puta gênio. Sua voz ficava tão serena e, conquanto não estivesse zangado, parecia absorto da própria vida. Cruzamos o McDonald e a loja de vinil vizinha, pela rua Bangla até a rua Zimmermann. Paramos dois ou três quarteirões depois, dez minutos após, com um café em cada mão, tomamos o rumo da Parade <i>&</i> <i>Curio's life</i>. Artefatos e melanina, piscando em rosa fluorescente e alterando para branco-gelo, quando o Sr. Jay Air decidia gastar um pouco da energia, que defendia, tão rigorosamente. Durante a noite era incrível como a loja parecia estar inativa, quando ele, não acendia as luzes de dentro da loja e ficava iluminado apenas pela luz de uma tv de nove polegadas em cima do balcão. Chegada às escondidas, ele assemelhava-se a um fantoche inócuo.<br />
Obstinemo-nos à porta, ansiosos.<br />
- Você acha que ele conseguiu consertar? - Perguntou meu amigo, sua voz parecia impregnada de algumas das caixas de som que estavam anunciando Picles com Batatinha e molhos, a duas quadras dali.<br />
- Eu acho que sim. Ele é muito bom. - Respondi.<br />
- Mas... Levamos a caixa para nove pessoas, das mais renomadas do estado de Ohio e Mississípi, ninguém deu jeito. Por que razão ele conseguiria?<br />
Não respondi. Nem mesmo eu sabia. Por outro lado, o que era ser "renomado" na área de antiguidades? Apenas não passar a mão no bolso dos clientes, ou marcar um encontro em um lugar desértico e te roubar? Absolutamente não.<br />
Aquela razão estava congestionada e soprada, de um lado a outro da barriga até a mente, e vice-versa, prontamente, com inúmeras dúvidas e um certo aperitivo inconsistente e cruel de monotonia. Onde a <i>razão</i> era uma Lua e as dúvidas que a acompanhavam, em uma viagem condensante no espaço, eram as e<i>strelas</i>. Está aí duas palavrinhas que se conectam e se parecem, quando o assunto é descrença.<br />
O Sr. Jay Air estava altercando com alguém em um telefone tão antigo quanto ele, que possivelmente beirava os noventa com algum tipo de magia, cujo acreditávamos na época. E compreenda, hoje, acreditamos muito mais. Na realidade, apenas eu agora. Ele não morreu. Você vai saber:<br />
Calma lá, calma lá. Tudo no seu devido tempo - Cacete, que frase-intérprete essa!<br />
Quando nos fitou, chegar pelo o balcão, arrastando os dois dedos por sobre, com dois copos de café nas mãos e com aqueles olhares incertos e famintos por respostas, disse algo no telefone com extrema rapidez. Bateu o pé e sacudiu a cabeça, tentando se livrar de um inseto enorme, ao que parecia, em cerimônia, gesticulou para o fundo da loja. Óbvio que sabíamos o que significava. Se fosse a primeira vez, e tivéssemos entrado primeiro, e ele fechando as portas da loja com controle remoto e acionando o fumê automático pelo mesmo, teríamos medo. Acharíamos que nos estupraria ou nos mataria, ou nos estupraria e mataria em seguida. Tínhamos dezessete anos e, Albert, estava no segundo mês de professor voluntário para o ensino fundamental. E eu, era apenas um garoto aficionado por histórias hostis da segunda guerra mundial e modelitos de aviões que partiam desde o mesmo, até os mais recentes e comerciais. Até tinha coisas instaladas no meu computador, simuladores e um rádio com fones de ouvido, que passava sempre a mesma informação a respeito dos comandos a se seguir, a partir das ordens da torre. Era uma voz gravada, obviamente, e a torre não existia, contundentemente óbvio, mas eram ambas, reconfortantes e disparavam-me a uma criatividade imensa.<br />
E incredulamente, era essa que eu ouvia agora.<br />
Jay Air, trouxe algo dentro de um pacote, pelos contornos, e tamanhos exatos, sabíamos do que se tratava:<br />
A caixa.<br />
- Não abram antes de chegar em casa e fazer todo o ritual. Está tudo nos lugares, mas não deu pra ajeitar tudo exatamente.<br />
Albert me puxou pelo casaco. Puxou de novo. E mais uma vez, enquanto Jay Air falava, e, ao fitá-lo e observar seus olhos se contorcendo em naturalidade óbvia, entendi. Ele tinha uma pergunta, mas não iria fazê-la. Dependia de mim. Tinha medo de Jay.<br />
- O que isso significa? - Albert me fitou mais dócil, era isso. Ou bem próximo.<br />
Ele tossiu, e tossiu, como se não tivesse fim. E depois de beber uma água proposta pelo bebedor ao seu lado, disse, em pausas;<br />
- Vocês, não entendem, - <i>Cof*Cof*</i> - essa caixa, não pode ser consertada na íntegra. Imagine abrir uma porta - <i>Cof*Cof*</i> - e imagine o outro lado dela - <i>Cof*Cof* </i>- dando para um lugar totalmente normal. E agora, depois de mexer em suas configurações, essa porta... - <i>Cof*Cof*</i> <i>e mais água.</i> - abrindo para um lugar totalmente novo. Ela funciona à base de emoções, eu acho. Então, testei-a uma vez, e desejo nunca mais voltar àquele lugar de novo. Me dá calafrios só de pensar. Então - <i>cof*</i> - me desculpem. Mas é impossível voltar com todos aqueles parâmetros. Mas tudo o que reclamaram, do impulso, da imagem e sons, não irá incomodá-los mais. Entretanto - <i>cof</i> - aquele mundo, acredito que foi perdido, para sempre.<br />
Aquilo me gerou uma flechada, tão pontuda e confrangedora, que me deu vontade de ter voltado atrás, penhorado um pouco mais, e aceitar aquela proposta de dois mil pela caixa, com um cartão fidelidade de garantia (que pela excentricidade do coroa, era um prêmio e tanto) e voltar pra casa com o bolso cheio. Olhei para Albert.<br />
Faltava um passo para irromper em lágrimas. Os olhos tinha se tornado vidrantes e aguados. Mas sem necessidade do fluxo saltar fora. Pelo menos ainda não.<br />
- Garotos... - disse Jay, segurando pelos nossos ombros. Eu com uma caixa pesada nas mãos e os joelhos um pouco flexionados para aguentar o peso, e Albert, com um braço segurando o bíceps do outro, de ombros encolhidos e cabeça baixa. Sendo coberto parcialmente pela cabeleira. -... Vocês são novos. Podem fazer algo bom e diferente, um tanto inusitado. Sei que deram duro naquele lugar. Pensem comigo... - Estávamos chegando a entrada principal e os vidros começaram a clarear-se, me dando uma leve sensação de cegueira. - Quantos jovem possuem uma coisa igual a essa? Ou melhor, quantos dos seus amigos tem conhecimento sobre misticismo e necromancia, como vocês, se quiserem?<br />
Fazíamos apenas barulhos {de <i>hum, aham</i>} para mostrar que entendíamos.<br />
- Vão pra casa - continuou - explorem cavernas, ou os tempos antigos, até mesmo os modernos futurísticos de vinte anos a frente. Tudo bem?<br />
A mesma onomatopeia audível para apontar compreensão.<br />
Voltamos<br />
(Calados)<br />
até em casa.<br />
<br />
Dividíamos um apartamento, dois quartos e dois banheiros, duas belas suítes e uma cozinha pequena, que para alguém entrar, alguém terá de sair, afinal, nada é perfeito. Não estava bom pra gente. Estava simplesmente fantástico. Dois jovens, com salários próprios (eu ganhava mesada do meu pai, e isso era um salário, não era?) e uma casa só deles. Não. Não bebíamos e muito menos trazíamos mulheres pra lá. Não por falta de tentativa e vontade, que tínhamos em lotes; Éramos do tipo que garotas queriam distância. Fazíamos "a média louca" dos tempos modernos. E o que posso fazer diante disso? Afinal, nada de hoje me cativa. Prisões telefônicas, alçapões de mentalidades juvenis e pretensões, nada artísticas, a respeito do mundo atual. Temos tantas referências e nada fazemos. Isso é uma droga. Não concorda comigo? Vejo meus filhos nisso, lembrando que quando tinha essa idade, eu corria pela praia, chutava latas, machucava o meu pé, e sorria, enquanto o dedão sangrava (mas não passava aquele maldito anti-séptico que ardia como o fogo de Satã), disfarçando a dor. Prisões letais de tecnologia construtiva (e destrutiva ao mesmo modo) que te absorvem e te esquecem, se você fracassar e desistir de aprender mais e avançar com ela. Para tudo se tem um aparato. Isso é inútil. Ajuda. Mas também atrapalha. ARHGGGGGGG! Sei que não faz sentido.<br />
Entretanto é isso.<br />
<br />
Nossos pais estavam nos esperando. Minha mãe, pelo menos, o outro estivera durante anos em uma viagem que parecia infinita e que o deixava invisível pra mim. O dinheiro parecia ter sido mandado por um tio distante que me odiava e só fazia isso por não ter que ser obrigado a dar mais pela justiça, tinha um bilhete, dizendo, "Feliz natal e se cuide, papai te ama" e por isso parecia mais um parente longínquo do que alguém próximo. A mãe e pai de Albert. Por um momento, acredito eu, pensamos sobre estarmos muito encrencados e que, iríamos ser presos. Mas não. Quando os três abriram um sorriso, em fila indiana se dissipando e abrindo uma fenda, que através vimos o bolo, eu me lembrei. Aniversário meu. Caramba. Eu esqueci. Senti vontade de socar Albert, mas, estava segurando a caixa. Repassei-a para ele, e ele a guardou, indo em direção ao corredor do meu quarto. Iria estacionar aquilo embaixo da minha cama. Era onde sempre ficava. Voltou. Bateram parabéns de uma maneira alegre, e saíram tão rapidamente, levando metade do bolo em vasilhames de plásticos que eram nossos e estavam quase extintos naquela casa, que, diante da situação, fiquei triste.<br />
- Eles te fodem e vão embora, não é? - Disse Albert. Nos olhamos e rasgamos risos como se não tivéssemos traseiros.<br />
- E sem lubrificar. - Completei e rimos até rolarmos pelo chão, durante metade de uma hora.<br />
Foi a penúltima vez que o vi sorrir.<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
<b>14 de novembro de 2005 -</b></div>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
<div style="text-align: left;">
<br /></div>
<div style="text-align: left;">
Estávamos com cerca de dezenove anos cada um. Era nossa terceira tentativa de abrir aquela caixa. Fizemos todos os rituais. A cada vez, na primeira e segunda, Albert parecia mais pálido, porém mais sério, e um tanto... Não sei... Vacilante ou Funesto? Talvez fosse uma dessas, a palavra certa na época.<br />
Lembro-me de ter dito que não o queria participando mais daquilo. Que estava longe do seu alcance, conseguir quaisquer êxitos ali. Podia acabar morrendo.<br />
- Você não me quer aqui, seu merdinha? Não me quer por que você quer todo o mundo pra si, não é? Mas eu tenho minha parte nisso. Investimos metade de nossas forças, não foi? Sim, foi. E não vamos acabar com essa irmandade agora, não é? - dizia isso enquanto suas mãos tremiam e seus olhos estavam querendo saltar do rosto. Segurei-o imediatamente e o mostrei onde estava seu erro, e seu paroxismo. E ele... Bem... Disse que era ausência de sono. Que não dormia a três dias. Faculdade com trabalhos em excesso e ele com pouco ânimo. As crianças, que já estavam fora da pré e dentro da adolescência, irritando-o e ele sendo afastado por seis meses. Por agressão. A-g-r-e-s-s-ã-o. Preste atenção nesta palavra, um cara meigo e que todos achavam que éramos um casal, somente por sua feminidade, agredir alguém. E ser afastado. Ele? Nunca vi algo assim, que não fosse em um filme de terror ou história contada e desenhada por Alan Moore em alguns de seus quadrinhos.<br />
Eu acredito que levaria um soco naquele momento. E foi quando ocorreu.<br />
A luz se acendeu na caixa; o portal.<br />
- E você não acreditava, não é? - ironizou Al. Nos raios que gritavam da caixa, ele parecia não ter nariz, de tão pálido.</div>
Aquela exata luz, que convergia e, ao mesmo tempo, em que há uma menor no seu centro, convergia, era o que chamávamos de portal cavernoso. Hoje em dia eu chamo de maldição tênue. Iluminou nossos olhos e mostrou-nos a chave. Não a mesma, prateada e com traços azuis celestes, que daria para nosso mundo anterior, mas sim, uma flamejante e esverdeada, com tons cítricos misturados as nebulosidades de luzes autofágicas. Eu disse naquele exato momento para não entrar. Além do show canibalista que as luminosidades produzidas pela chave, que pendia sozinha, em meio ao ar, eu senti algo. Senti que aquilo não era sinônimo de coisa boa.<br />
- Vê? É o paraíso. - disse Al. Seus olhos brilhavam, e receavam alguma catatonia, intrínseca além da própria estrutura. Afora; sua barba mal feita, as bolsas que se formavam abaixo dos olhos e a pele avermelhada, irritada, ele parecia um menino. Aqueles que ganharam o brinquedo sonhado no natal.<br />
Levemente sua mão foi deslanchando do braço em direção a chave, dava alguns tiques no caminho, ademais, continuava. Eu disse não. Eu...<br />
- Não Al, não. Não é algo legal...<br />
me lembro de ter dito. <br /><i>"mas... é lindo"</i> - também recordo de ter escutado.<br />
Juro que aquela merda sorriu. Não tinha dentárias. Não possuía formas bucais. Mas sorriu. Quando o bebê encontra o pai, e abre os braços, sorrindo - aquela chave encontra seu fiel portador, feliz. Aquela luz se tornou a mão, que se articulou pela de Al e, como simbiose, que a apertou, estagnou-se à ele.<br />
Seus olhos crepitais, gradativamente, de uma maneira idosamente louca, se virou para mim.<br />
- O que você acha que ela abre? - perguntou com sua voz somada.<br />
Eu percebi. Não era ele mais, mas;<br />
- O que disse?<br />
Sua voz se tornou singular novamente, e me aparentou loucura da minha parte.<br />
- A chave. O que você acha que ela abre?<br />
Boa pergunta. Realmente, o que ela deve abrir?<br />
As sensações. Não era assim que os mundos se mostravam?<br />
A caixa foi auto multando-se, em novas dobraduras, girando sob uma das oito pontas dos quatro lados de seu cubo, e como sempre, exibiu seu painel. Era cinza por completo, sem vida, não tinha inscrições e muito menos cerimônias decorrentes. Apenas, o lugar para pôr a chave. Uma fechadura cinza um pouco mais laminada.<br />
<br />
<div style="text-align: center;">
{<i>O que será que ela abre?</i>}</div>
<div style="text-align: center;">
[<i>sua voz foi expelida em duplicidade</i>]</div>
<div style="text-align: center;">
"<i>Ela funciona à base das emoções, eu acho"</i></div>
<div style="text-align: center;">
Eu acho.</div>
<div style="text-align: center;">
A chave.</div>
<div style="text-align: center;">
(... <i>e desejo nunca mais voltar àquele lugar de novo</i>)</div>
<br />
- O que você sente, Al?<br />
Suas mãos abanavam no mesmo lugar e compulsivamente, depois, fechando-se em um punho.<br />
- Poder.<br />
<br />
O dia não tinha começado bem aos arredores daquela cidade. Perquiria um crepúsculo, através das nuvens rosadas de início do Sol pela manhã. A Lua, continuava ali, entremeada às populações gasosas e logo abaixo, alguns graus, da grande esfera amarelo-indo-ao-tom-alaranjado.<br />
Demorou para mim acordar, e obviamente, não assisti àquele show de cores.<br />
Quando acordei. Me deparei com uma simples visão inquisitiva;<br />
(<i>onde está você, Albert?</i>)<br />
Se os estofados estavam debruçados de ponta cabeça, e a tv da sala quebrada, o lustre que pertencia àquele imóvel desde muito antes de morarmos lá, estava espatifado e esmigalhado como um pão velho em cima do fogão...<br />
Então é simples...<br />
Onde está <i><strike>Albert</strike></i>?<br />
<blockquote class="tr_bq">
Louco misterioso, uma vítima da charada cruel, o morto-vivo vive dentro de cada um de nós... Eu descobri como, às vezes, damos nossos sonhos como perdidos. Pois cada homem que assina o contrato da vida, estipula seu crescimento através dos sonhos. E quando não os tem. Morre. Se torna um morto-vivo, vítima dos tempos. Albert não estava em um ou outro casos. Não sei definir bem. Até hoje eu não sei como explicar; àquela nebulosa de branco e preto, atravessada pelos seus olhos, me mostravam uma fechadura, pelos seus globos escancarados, eu vi o que se passava ali dentro.</blockquote>
Eu tive coragem de olhar <i>através da fechadura </i>-<br />
<br />
<br />
- Meu Deus, Albert. Que mer* você fez a si?<br />
<br />
<br />Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-27759755831192369972017-03-23T16:42:00.003-03:002017-03-23T16:42:37.331-03:00A cidade está a adormecer -<h2>
<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif; font-size: x-large;">A <span style="color: #660000;">cidade</span> inteira <i><span style="color: #4c1130;">dorme</span></i> -</span></h2>
<br />
<br />
O RELÓGIO DO TRIBUNAL soou sete vezes. Os ecos das badaladas enfraqueceram.<br />
Crepúsculo quente de verão aqui no norte da zona rural de Illinois, nesta pequena cidade muito distante de tudo, cercada por rio e uma floresta e uma campina e um lago. As calçadas ainda fervendo. As lojas se fechando e as ruas sombreadas. E havia duas luas: a lua do relógio com quatro faces para os quatro cantos da noite, acima do tribunal negro e solene, e a lua de verdade se elevando no leste escuro, em sua brancura de baunilha.<br />
Na botica, os ventiladores sussurravam no teto alto. À sombra rococó das varandas, sentavam-se, invisíveis, algumas pessoas. Ocasionalmente, o brilho rosado das pontas incandescentes dos charutos.<br />
As portas de tela rangiam as molas e batiam. No calçamento purpúreo das ruas das noites de verão, corria Douglas Spaulding; cães e meninos seguiam-no.<br />
“Oi, senhorita Lavinia.”<br />
Os meninos se afastaram, trotando. Acenando calmamente para eles, Lavinia Nebbs estava sentada sozinha com um copo alto de limonada fria entre os dedos brancos, levando-o aos lábios, bebericando, esperando.<br />
“Cheguei, Lavinia.”<br />
Ela se virou e lá estava Francine, toda de branco-neve, ao pé da escada da varanda, cheirando a zínia e hibisco.<br />
Lavinia Nebbs trancou a porta da frente e, deixando na varanda o copo de limonada meio vazio, disse:<br />
“Está uma noite agradável para ir ao cinema”.<br />
Elas desceram a rua.<br />
“Onde estão indo, meninas?”, gritaram as senhoritas Fern e Roberta de sua varanda do outro lado da rua.<br />
Lavinia respondeu através do oceano de escuridão:<br />
“Ao Cine Elite, ver Charlie Chaplin”.<br />
“Não sairíamos numa noite assim”, resmungou a senhorita Fern. “Não com o Solitário por aí, estrangulando mulheres. Preferimos nos trancar no guarda-roupa com uma arma.”<br />
“Ah, que bobagem.”<br />
Lavinia escutou a porta das velhas senhoras bater e trancar-se, e continuou a se afastar, sentindo o bafo quente da noite de verão em ondas tremulantes por sobre as calçadas tostadas. Era como andar sobre uma crosta dura de pão recém-assado. O calor pulsava sob os vestidos, ao longo das pernas, com uma sensação de invasão furtiva e não de todo desagradável.<br />
“Lavinia, você não acredita no que dizem do Solitário, acredita?”<br />
“Essas mulheres gostam de ver as próprias línguas dançando.”<br />
“Mas Hattie McDollis foi morta dois meses atrás, Roberta Ferry um mês antes, e agora Elizabeth Ramsell desapareceu...”<br />
“Hattie McDollis era uma doidivanas. Aposto que fugiu com algum viajante.”<br />
“Mas as outras, todas elas, estranguladas, as línguas para fora da boca, dizem.”<br />
Elas estavam de pé na beira da ravina que corta a cidade ao meio. Atrás delas, estavam as casas de luzes acesas e música; à frente havia profundeza, umidade, vaga-lumes e escuridão.<br />
“Talvez não devêssemos ir ao cinema esta noite”, disse Francine. “O Solitário pode nos seguir e nos matar; eu não gosto dessa ravina. Olhe só, olhe!”<br />
Lavinia olhou, e a ravina era um dínamo que nunca parava de funcionar, dia e noite; havia um grande zumbido incessante, um constante zunido e murmúrio de criaturas, insetos e vida vegetal. Cheirava a estufa, vapores secretos e areias movediças. E sempre o dínamo negro zumbindo, com fagulhas, como uma forte corrente elétrica, onde pirilampos se moviam no ar.<br />
“Não serei eu voltando por esta velha ravina, tarde da noite, tão tarde assim; será você, Lavinia, você descendo as escadas e atravessando a ponte, e talvez o Solitário ali.”<br />
“Bobagem!”, disse Lavinia Nebbs.<br />
“Será você sozinha pelo caminho, escutando seus sapatos, não eu. Você totalmente só no caminho de volta para casa. Lavinia, não sente solidão morando naquela casa?”<br />
“Solteironas adoram morar sozinhas.” Lavinia apontou para o caminho sombreado e quente que descia escuridão adentro. “Vamos pegar o atalho.”<br />
“Estou com medo!”<br />
“É cedo. O Solitário só sai mais tarde.”<br />
Lavinia pegou a outra pelo braço e levou-a pelo caminho tortuoso para dentro da quentura de grilos e sons de sapos e silêncio delicado como mosquitos. Elas roçaram a grama chamuscada de verão, carrapichos arranhando seus calcanhares expostos.<br />
“Vamos correr!”, ofegou Francine.<br />
“Não!”<br />
Elas viraram uma curva no caminho... e lá estava.<br />
Na profunda noite murmurante, à sombra das árvores cálidas, como se tivesse se deitado ao ar livre para apreciar as pálidas estrelas e o vento brando, as mãos de cada lado como os remos de uma delicada embarcação, jazia Elizabeth Ramsell!<br />
Francine gritou.<br />
“Não grite!”, Lavinia estendeu as mãos para segurar Francine, que estava choramingando e engasgando. “Pare! Pare!”<br />
A mulher estava deitada como se flutuasse ali, o rosto iluminado pela lua, os olhos arregalados e vidrados, a língua esticada para fora da boca.<br />
“Ela está morta!”, disse Francine. “Ai, ela está morta, morta! Ela está morta!”<br />
Lavinia estava no meio de milhares de sombras quentes, com os grilos estrilando e os sapos coaxando alto.<br />
“É melhor chamar a polícia”, ela disse, finalmente.<br />
***<br />
“Me abrace, Lavinia, me abrace, estou com frio, ai, eu nunca senti tanto frio em toda a minha vida!”<br />
Lavinia abraçou Francine, e os policiais abriam caminho pelo capim crepitante, fachos de lanternas se moviam em todas as direções, vozes se misturavam, e a noite avançava rumo às oito e meia.<br />
“Parece dezembro. Preciso de um agasalho”, disse Francine, olhos fechados, agarrada a Lavinia.<br />
O policial disse: “Acho que já podem ir, senhoras. Terão de passar na delegacia amanhã para responder a mais algumas perguntas”.<br />
Lavinia e Francine se afastaram da polícia e do lençol sobre aquela coisa delicada em cima da grama da ravina.<br />
Lavinia sentia o coração bater alto dentro do peito e também ela estava com frio, um frio de fevereiro; havia flocos de uma neve repentina por todo o seu corpo, e a lua branqueava ainda mais seus dedos enrijecidos, e ela se lembrou de ter conversado sozinha com os policiais, enquanto Francine não parava de soluçar agarrada a ela. Uma voz perguntou de longe:<br />
“Querem que alguém as acompanhe, senhoras?”.<br />
“Não, nós damos conta”, disse Lavinia a ninguém, e continuaram andando.<br />
Passaram pela acariciante e murmurosa ravina, a ravina de sussurros e estalidos, o pequeno mundo da investigação diminuindo de tamanho atrás delas, com suas luzes e vozes.<br />
“Nunca vi ninguém morto antes”, disse Francine.<br />
Lavinia examinou o relógio como se estivesse a mil quilômetros de distância, em um braço e pulso impossivelmente distantes.<br />
“São apenas oito e meia. Vamos pegar Helen e ir para o cinema.”<br />
“O cinema!”, disse Francine abruptamente.<br />
“É do que precisamos. Temos de esquecer isso. Se formos para casa agora, lembraremos. Não é bom lembrar. Vamos ao cinema como se nada tivesse acontecido.”<br />
“Lavinia, você não fala sério!”<br />
“Nunca falei tão sério em minha vida. Agora precisamos rir e esquecer.”<br />
“Mas Elizabeth está lá atrás — sua amiga, minha amiga.”<br />
“Não podemos ajudá-la; só podemos nos ajudar. Venha.”<br />
Elas começaram a subir a encosta da ravina, pelo caminho de pedras, no escuro. E de repente, ali, barrando a passagem, muito imóvel, parado no mesmo lugar, sem vê-las, mas olhando para baixo, para as luzes em movimento e o corpo, e escutando as vozes dos policiais, estava Douglas Spaulding. Ele estava plantado ali, branco como um cogumelo, as mãos de lado, olhando fixo para o interior da ravina.<br />
“Vá para casa!”, gritou Francine.<br />
Ele não ouviu.<br />
“Você aí!”, berrou Francine. “Vá para casa, saia daqui, ouviu? Vá para casa, vá para casa, vá para casa!”<br />
Douglas virou bruscamente a cabeça, olhou para elas como se não estivessem ali. Sua boca se mexeu. Ele deu um gemido. Então, girou rapidamente e correu. Corria em silêncio, subindo as colinas distantes, penetrando a tépida escuridão.<br />
Francine chorava e soluçava e, de novo, chorava e soluçava e, ao mesmo tempo, continuava a caminhar com Lavinia Nebbs.<br />
***<br />
“Aí estão vocês! Pensei que as senhoras nunca viriam!”, disse Helen Greer, batendo o pé no degrau da escada de sua varanda. “Vocês só estão uma hora atrasadas, só isso. O que aconteceu?”<br />
“Nós...”, Francine começou.<br />
Lavinia apertou com força o braço dela.<br />
“Houve uma confusão. Alguém encontrou Elizabeth Ramsell na ravina.”<br />
“Morta? Ela estava... morta?”<br />
Lavinia assentiu. Helen ofegou e levou a mão à garganta.<br />
“Quem a encontrou?”<br />
Lavinia segurou firmemente o pulso de Francine.<br />
“Não sabemos.”<br />
As três jovens, ali, na noite de verão, entreolharam-se.<br />
“Preciso ir para casa e trancar as portas”, disse Helen, finalmente.<br />
Por fim, ela foi pegar uma blusa de frio, pois, embora ainda estivesse quente, também reclamou da súbita noite de inverno. Enquanto Helen estava ausente, Francine sussurrou freneticamente:<br />
“Por que você não contou a ela?”.<br />
“Para que afligi-la?”, disse Lavinia. “Amanhã. Amanhã haverá bastante tempo.”<br />
As três mulheres caminharam pela rua sob as árvores escuras, passando por casas que eram subitamente trancadas. Com que rapidez a notícia havia se espalhado para fora da ravina, casa a casa, varanda a varanda, telefone a telefone. Agora, ao passar, as três mulheres sentiam que olhos as fitavam através das cortinas das janelas, enquanto trancas eram fechadas com estrépito. Que estranha a noite de sorvete no palito, a noite de baunilha, a noite de sorvete cremoso em potes, de pulsos untados de loção contra mosquitos, a noite de crianças correndo, agora repentinamente puxadas para longe de suas brincadeiras e isoladas atrás de vidros, atrás de madeira, os sorvetes derretendo-se em poças de lima e morango, caídos nos lugares de onde as crianças foram arrebatadas e levadas para dentro de casa. Estranhos os cômodos quentes com gente suada, muito apertada no fundo deles, atrás de maçanetas e aldravas de bronze. Tacos e bolas de beisebol jazem sobre gramados sem marcas de pés. O traçado a giz inacabado de um jogo de amarelinha sobre o chão quente e cozido da calçada. Era como se, instantes antes, alguém houvesse previsto frio glacial.<br />
“Somos loucas de ficar fora de casa em uma noite assim”, disse Helen.<br />
“O Solitário não irá matar três moças”, disse Lavinia. “Grupos dão segurança. E, além disso, é muito cedo. Os assassinatos sempre acontecem a intervalos de um mês.”<br />
Uma sombra atravessou seus rostos aterrorizados. Um vulto assomou por detrás de uma árvore. Como se alguém tivesse desferido um golpe terrível sobre um órgão, com o punho, as três mulheres gritaram em três diferentes tons estridentes.<br />
“Peguei vocês!”, uma voz retumbou.<br />
O homem saltou na direção delas. Apareceu na claridade, rindo. Apoiou-se em uma árvore, apontando frouxamente para as moças, novamente rindo.<br />
“Olhem! Sou o Solitário!”, disse Frank Dillon.<br />
“Frank Dillon!”<br />
“Frank!”<br />
“Frank”, disse Lavinia, “se você fizer uma criancice dessas de novo, tomara que lhe encham de tiros!”<br />
“Isso é coisa que se faça!”<br />
Francine começou a rir histericamente.<br />
Frank Dillon parou de sorrir.<br />
“Me desculpem.”<br />
“Vá embora!”, disse Lavinia. “Não soube de Elizabeth Ramsell — foi encontrada morta na ravina. E você andando por aí, assustando mulheres! Não fale mais com a gente.”<br />
“Ah, então...”<br />
Elas começaram a se afastar. Ele fez menção de segui-las.<br />
“Fique bem aqui, senhor Solitário, e fique dando sustos em si mesmo. Vá dar uma olhada no rosto de Elizabeth Ramsell e veja se é engraçado. Boa noite!”<br />
Lavinia levou as outras duas pela rua cheia de árvores e estrelas; Francine segurava um lenço contra o rosto.<br />
“Francine, foi só uma brincadeira”, disse Helen, voltando-se para Lavinia. “Por que ela está chorando tanto?”<br />
“Nós lhe contaremos quando chegarmos à cidade. Vamos ao cinema, não importa o que aconteça! Para mim chega! Venham já, peguem seu dinheiro, estamos quase lá!”<br />
***<br />
A botica era uma pequena poça de ar parado em que os grandes ventiladores de madeira movimentavam ondas olorosas de arnica e tônicos e refrigerante em direção às ruas calçadas de tijolos.<br />
“Preciso de um tostão de balas de hortelã”, disse Lavinia ao boticário. O rosto dele era pálido, de feições duras, como todos os rostos que elas haviam visto nas ruas semivazias. “Para comermos no cinema”, disse Lavinia, enquanto o boticário pesava um tostão da guloseima verde, usando uma concha de prata.<br />
“As senhoritas estão mesmo bonitas esta noite. A senhorita Lavinia parecia bem-disposta essa tarde, quando entrou para tomar um chocolate batido. Tão bem-disposta e simpática que alguém indagou sobre a senhora.”<br />
“É?”<br />
“Um homem sentado junto ao balcão... Observou-a sair e me perguntou: ‘Quem é aquela?’. Ora, aquela é Lavinia Nebbs, a moça solteira mais bonita da cidade, eu disse. ‘É linda’, ele disse. ‘Onde ela mora?’.”<br />
Nesse momento, o boticário fez uma pausa, desconfortável.<br />
“O senhor não fez isso!”, disse Francine. “O senhor não lhe deu o endereço dela, espero. Não deu!”<br />
“Acho que não pensei direito. Eu disse: ‘Ah, lá em Park Street, sabe, perto da ravina’. Um comentário casual. Mas agora, à noite, depois que encontraram o corpo, segundo me contaram um minuto atrás, pensei: ‘Meu Deus, o que fiz!’”<br />
Ele entregou o embrulho, cheio demais.<br />
“Seu tolo!”, gritou Francine, e lágrimas encheram seus olhos.<br />
“Desculpe. Mas talvez não seja nada.”<br />
Lavinia estava ali com as três pessoas olhando para ela, olhando fixamente para ela. Não sentia nada. Exceto, talvez, um ligeiro formigamento de excitação na garganta. Ela entregou o dinheiro, automaticamente.<br />
“As balas são de graça”, disse o boticário, virando-se para folhear alguns papéis.<br />
“Bom, sei o que vou fazer neste mesmo instante!”, Helen saiu da botica a passos largos. “Vou chamar um táxi para nos levar para casa. Não farei parte de nenhum grupo de busca por você, Lavinia. Aquele homem não tinha boas intenções. Perguntando sobre você. Você quer ser a próxima a ser morta na ravina?”<br />
“Era só um homem”, disse Lavinia, virando-se em um lento círculo para olhar a cidade.<br />
“Frank Dillon também é um homem, mas talvez ele seja o Solitário.”<br />
Notaram que Francine não havia saído da loja junto com elas e, ao se voltarem, viram-na chegando.<br />
“Eu fiz com que ele me desse uma descrição... o boticário. Que ele me contasse como era o homem. Um estranho”, ela disse, “de terno escuro. Meio pálido e magro.”<br />
“Estamos todas exaustas”, disse Lavinia. “Eu simplesmente não vou pegar um táxi se você conseguir um. Se sou a próxima vítima, assim seja. Há tão pouca excitação na vida, especialmente para uma mulher solteira de trinta e três anos, então não se importem se eu aproveitá-la. De qualquer forma, é tolice. Não sou bonita.”<br />
“Ah, você é sim, Lavinia; você é a moça mais adorável da cidade, agora que Elizabeth está...” Francine parou. “Você mantém os homens à distância. Se pelo menos relaxasse, teria se casado alguns anos atrás!”<br />
“Pare de choramingar, Francine! Chegamos à bilheteria, estou pagando quarenta e um centavos para ver Charlie Chaplin. Se vocês duas quiserem um táxi, vão em frente. Vou me sentar sozinha e voltar para casa sozinha.”<br />
“Lavinia, você está louca; não podemos deixar que você faça isso.”<br />
Elas entraram no cinema.<br />
A primeira sessão tinha terminado, era hora do intervalo, e o auditório mal iluminado estava esparsamente ocupado. As três moças sentaram-se na fileira do meio, envolvidas pelo cheiro de polidor de metal antigo, e observaram o gerente passar através das gastas cortinas vermelhas para dar um aviso.<br />
“A polícia nos pediu que fechássemos mais cedo esta noite, para que todos pudessem ir embora em um horário decente. Por isso, vamos deixar de mostrar os filmes curtos e exibir imediatamente o de longa-metragem. A sessão terminará às onze. Aconselhamos a todos irem direto para casa. Não se demorem nas ruas.”<br />
“Isso quer dizer nós, Lavinia!”, cochichou Francine.<br />
As luzes se apagaram. A tela saltou à vida.<br />
“Lavinia”, sussurrou Helen.<br />
“O quê?”<br />
“Quando chegamos, um homem de terno escuro, do outro lado da rua, atravessou. Ele desceu pelo auditório e está sentado na fileira atrás de nós.”<br />
“Ah, Helen!”<br />
“Bem atrás de nós?”<br />
Uma a uma, as três mulheres se voltaram para olhar.<br />
Viram um rosto branco ali, tremeluzindo na claridade perversa da tela prateada. Parecia que os rostos de todos os homens flutuavam ali no escuro.<br />
“Vou chamar o gerente!” Helen subiu pelo corredor. “Parem o filme! Acendam a luz!”<br />
“Helen, volte aqui!”, gritou Lavinia, levantando-se.<br />
***<br />
Elas baixaram seus copos de refresco, cada uma exibindo um bigodinho de baunilha sobre o lábio superior, que, rindo, buscaram com as línguas.<br />
“Vêem que tolice?”, disse Lavinia. “Todo esse alvoroço por nada. Que constrangedor.”<br />
“Me desculpem”, disse Helen, com a voz sumida.<br />
O relógio marcava onze e meia. Elas haviam saído do cinema escuro, para longe da onda agitada de homens e mulheres saindo apressados pela rua, rumo a toda parte, a parte alguma, enquanto riam-se de Helen. Helen estava tentando rir de si mesma.<br />
“Helen, quando você subiu correndo aquele corredor, gritando: ‘Acendam as luzes!’, achei que eu ia morrer! Aquele pobre homem!”<br />
“O irmão do gerente do cinema de Racine!”<br />
“Eu me desculpei”, disse Helen, olhando para cima, para o grande ventilador ainda girando, girando o ar morno da noite alta, mexendo, remexendo os odores de baunilha, framboesa, hortelã e desinfetante bucal.<br />
“Não devíamos ter parado para beber estes refrescos. A polícia aconselhou...”<br />
“Ah, bobagem da polícia”, riu Lavinia. “Não tenho medo de nada. O Solitário está a quilômetros de distância agora. Ele não voltará durante semanas, e a polícia vai pegá-lo, esperem só. O filme não foi maravilhoso?”<br />
“Estamos fechando, moças.” O boticário apagou as luzes no frio silêncio de azulejos brancos.<br />
Lá fora, as ruas ficavam desertas, esvaziando-se de carros e caminhões e gente. Luzes brilhantes ainda incandesciam nas vitrines da pequena loja, onde mornos manequins levantavam mãos de cera rosadas, flamejando com anéis de diamante branco-azulados, ou pernas de cera alaranjadas e ornadas, revelando longas meias de seda. Os olhos de vidro azul dos manequins observaram as moças se afastarem, descendo a rua vazia, suas imagens tremeluzindo nas janelas como botões de flor vistos através de escuras águas correntes.<br />
“Você acha que se gritarmos eles farão alguma coisa?”<br />
“Quem?”<br />
“Os manequins, as pessoas na vitrine.”<br />
“Ah, Francine.”<br />
“Ora...”<br />
Havia mil pessoas nas vitrines, rígidas e silentes, e três pessoas na rua, os ecos seguindo-as como tiros vindos das fachadas das lojas, de um lado a outro do caminho, quando elas batiam os saltos no pavimento tostado.<br />
Uma placa de neon vermelho luzia fracamente, zumbindo como um inseto moribundo, à passagem delas.<br />
Ressequidas e brancas, as longas avenidas se estendiam à frente. Balouçantes e altas, sob um vento que tocava apenas suas copas frondosas, as árvores ladeavam as três pequenas mulheres. Vistas do alto do tribunal, elas pareciam três cardos bem ao longe.<br />
“Primeiro, vamos levá-la até sua casa, Francine.”<br />
“Não, eu levo vocês em casa.”<br />
“Não seja boba. Você mora longe, em Electric Park. Se você me levasse até minha casa, teria de voltar sozinha pela ravina. E se uma simples folha caísse em você, você estaria morta.”<br />
Francine disse:<br />
“Posso passar a noite na sua casa. Você é que é a bonita!”<br />
E então elas caminharam, afastaram-se como três vultos em roupas domingueiras por sobre um mar enluarado de gramado e concreto, Lavinia observando as árvores escuras que adejavam de um lado e de outro, ouvindo as vozes das amigas cochichando, tentando rir; e a noite parecia se apressar, elas pareciam correr, enquanto andavam devagar, tudo parecia apressado e com cor de neve quente.<br />
“Vamos cantar”, disse Lavinia.<br />
Elas cantavam:<br />
“Brilha, brilha, lua cheia...”<br />
Elas cantavam doce e tranqüilamente, de braços dados, sem olhar para trás. Sentiam a calçada quente arrefecendo sob seus pés, movendo-se, movendo-se.<br />
“Escutem!”, disse Lavinia.<br />
Elas escutaram a noite. Os grilos da noite de verão e o som distante do relógio do tribunal marcando onze e quarenta e cinco.<br />
“Escutem!”<br />
Lavinia escutou. Em uma das varandas, o balanço rangia no escuro e nele estava o sr. Terle, sem falar nada com ninguém, sozinho, fumando um último charuto. Elas viram a brasa rosada balouçando gentilmente para cá e para lá.<br />
Agora as luzes estavam sumindo, sumindo, sumiram. As luzes das pequenas casas, as luzes das grandes casas e as luzes amarelas e as luzes verdes de alerta de furacão, as velas e lampiões a óleo e as luzes das varandas e tudo o mais foi trancado em latão, e ferro e aço, tudo, pensou Lavinia, está fechado e trancado e embrulhado e coberto. Ela imaginou as pessoas em suas camas iluminadas pelo luar. E a respiração delas nos quartos da noite de verão, seguras e juntinhas. E aqui estamos, Lavinia pensou, nossos passos ao longo da calçada ressequida da noite de verão. E acima de nós as lâmpadas da rua solitária despejando sua luz, lançando uma sombra bêbada.<br />
“Chegamos, Francine. Boa noite.”<br />
“Lavinia, Helen, fiquem aqui esta noite. É tarde, quase meia-noite agora. Vocês podem dormir na sala de estar. Vou fazer chocolate quente — vai ser bem divertido!” Francine abraçava fortemente as duas.<br />
“Não, obrigada”, disse Lavinia.<br />
E Francine começou a chorar.<br />
“Ah, não de novo, Francine”, disse Lavinia.<br />
“Eu não quero que você morra”, soluçou Francine, as lágrimas escorrendo pelo rosto. “Você é tão simpática e boa, eu a quero viva. Por favor, ah, por favor!”<br />
“Francine, eu não sabia que isso havia afetado tanto você. Prometo que telefono quando chegar em casa.”<br />
“Telefona mesmo?”<br />
“E aviso que cheguei bem, sim. E amanhã faremos um piquenique em Electric Park. Com sanduíches de presunto que eu mesma farei, que tal? Você vai ver, vou viver para sempre!”<br />
“Você telefona, então?”<br />
“Prometi, não prometi?”<br />
“Boa noite, boa noite!” Correndo escada acima, entrou depressa por uma porta, que bateu e foi trancada rapidamente na mesma hora.<br />
“Agora”, disse Lavinia a Helen, “eu a levarei até sua casa.”<br />
***<br />
O relógio do tribunal bateu a hora. Os sons percorreram uma cidade que estava vazia, mais do que jamais estivera. Pelas ruas vazias e lotes vazios e gramados vazios, o som foi enfraquecendo.<br />
“Nove, dez, onze, doze”, Lavinia contou, com Helen pelo braço.<br />
“Você não se sente estranha?”, perguntou Helen.<br />
“Como assim?”<br />
“Quando penso na gente, fora de casa, aqui na calçada, debaixo das árvores, e em todas aquelas pessoas seguras, atrás de portas trancadas, deitadas em suas camas. Somos praticamente as únicas pessoas andando ao ar livre no raio de mil quilômetros, aposto.”<br />
O som da ravina, cálida, profunda e escura se aproximava.<br />
Em um minuto, elas estavam diante da casa de Helen, olhando uma para a outra durante um longo tempo. O vento soprava o cheiro da grama cortada por entre elas. A lua estava se afundando em um céu que começava a nublar.<br />
“Acho que não vai adiantar muito pedir a você que fique, Lavinia.”<br />
“Estou indo embora.”<br />
“Algumas vezes...”<br />
“Algumas vezes o quê?”<br />
“Algumas vezes acho que as pessoas querem morrer. Você agiu estranhamente a noite toda.”<br />
“Eu só não estou com medo”, disse Lavinia. “E estou curiosa, suponho. E estou usando a cabeça. Logicamente, o Solitário não deve estar por perto. A polícia e tudo o mais.”<br />
“A polícia está em casa com as cobertas até as orelhas.”<br />
“Digamos apenas que estou me divertindo, precariamente, mas com segurança. Se houvesse alguma chance verdadeira de algo me acontecer, eu ficaria aqui com você, pode ter certeza disso.”<br />
“Talvez uma parte de você não queira mais viver.”<br />
“Você e Francine. Francamente!”<br />
“Eu me sinto tão culpada. Estarei tomando chocolate quente no momento em que você chegar ao fundo da ravina e caminhar rumo à ponte.”<br />
“Beba uma xícara por mim. Boa noite.”<br />
Lavinia Nebbs desceu sozinha a rua à meia-noite, atravessando o silêncio da noite alta de verão. Ela via casas com janelas escuras e, ao longe, ouvia um cão latindo. Em cinco minutos, ela pensava, estarei segura dentro de casa. Em cinco minutos, estarei telefonando para a bobinha da Francine. Estarei...<br />
Ela ouviu a voz do homem.<br />
A voz de um homem cantando ao longe, entre as árvores.<br />
“Ó, dê-me uma noite de junho, o luar e você...”<br />
Ela apressou um pouco mais o passo.<br />
A voz cantava:<br />
“Em meus braços... com todos os seus encantos...”<br />
Descendo a rua, à fraca luz do luar, um homem caminhava lenta e casualmente.<br />
Posso correr e bater em uma destas portas, pensou Lavinia, se precisar.<br />
“Ó, dê-me uma noite de junho”, cantava o homem. Ele carregava um longo bastão em uma das mãos. “O luar e você. Ora, veja só quem está aqui! Que hora da noite para estar fora de casa, senhorita Nebbs!”<br />
“Policial Kennedy!”<br />
E então era ele, é claro.<br />
“Acho melhor acompanhá-la até sua casa!”<br />
“Não, obrigada. Eu consigo chegar lá.”<br />
“Mas a senhorita mora do outro lado da ravina...”<br />
Sim, ela pensou, mas não vou atravessar a ravina com homem nenhum, nem mesmo com um policial. Como vou saber que não é o Solitário?<br />
“Não”, ela disse. “Vou me apressar.”<br />
“Eu esperarei bem aqui”, ele disse. “Se a senhorita precisar de ajuda, dê um grito. As vozes chegam bem até aqui. Eu irei correndo.”<br />
“Obrigada.”<br />
Ela seguiu caminho, deixando-o sob uma lâmpada, cantarolando sozinho.<br />
Aqui estou, ela pensou.<br />
A ravina.<br />
Ela estava prestes a dar o primeiro dos cento e treze passos para descer a ribanceira íngreme, atravessar sete metros de ponte e subir a ladeira que levava a Park Street. E apenas um lampião a iluminar. Daqui a três minutos, ela pensou, estarei enfiando a chave na porta de minha casa. Nada pode acontecer em apenas cento e oitenta segundos.<br />
Começou a descer os longos degraus verde-escuros rumo ao fundo da ravina.<br />
“Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez degraus”, contava, sussurrando.<br />
Sentia que estava correndo, mas não estava correndo.<br />
“Quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte degraus”, ela ofegava. “Um quinto do caminho!”, anunciou para si mesma.<br />
A ravina era profunda, negra, negra! E o mundo ficava para trás, o mundo de gente em segurança na cama, as portas trancadas, a cidade, a botica, o cinema, as luzes, tudo se fora. Apenas a ravina existia e vivia, negra e imensa, ao redor dela.<br />
“Não aconteceu nada, aconteceu? Não há ninguém por aqui, há? Vinte e quatro, vinte e cinco degraus. Lembra-se daquela velha história de fantasmas que vocês contavam umas às outras quando crianças?”<br />
Ela ouvia os próprios sapatos nos degraus.<br />
“A história sobre o homem moreno chegando a sua casa e você lá em cima, na cama. E agora ele está no primeiro degrau, subindo para seu quarto. E agora ele está no segundo degrau. E agora ele está no terceiro degrau e no quarto degrau e no quinto! Ah, como vocês costumavam rir e gritar com aquela história! E agora o pavoroso homem moreno está no décimo segundo degrau e está abrindo a porta de seu quarto e agora está de pé ao lado de sua cama. ‘PEGUEI VOCÊ!’”<br />
Ela gritou. Era diferente de tudo que já ouvira, aquele grito. Nunca havia gritado tão alto assim na vida. Parou, ficou paralisada, agarrada ao corrimão de madeira. O coração explodia dentro dela. O som do coração batendo aterrorizado enchia o universo.<br />
“Ali, ali!”, ela gritava para si. “Ao pé da escada. Um homem, sob a luz! Não, agora ele se foi! Ele estava esperando ali!”<br />
Ela ficou escutando.<br />
Silêncio.<br />
A ponte estava deserta.<br />
Nada, ela pensou, segurando o coração. Nada. Boba! Aquela história que contei para mim mesma. Que tolice. O que devo fazer?<br />
As batidas de seu coração diminuíram.<br />
Devo chamar o policial — ele me ouviu gritar?<br />
Ela escutou. Nada. Nada.<br />
Vou andar o resto do caminho. Aquela história boba.<br />
Começou de novo, contando os passos.<br />
“Trinta e cinco, trinta e seis, cuidado, não caia. Ah, como sou idiota. Trinta e sete passos, trinta e oito, e nove e quarenta, mais dois são quarenta e dois — quase metade do caminho.”<br />
Imobilizou-se novamente.<br />
“Espere”, disse a si mesma.<br />
Deu um passo. Houve um eco.<br />
Deu outro passo.<br />
Outro eco. Mais um passo, apenas uma fração de instante depois.<br />
“Alguém está me seguindo”, ela sussurrou para a ravina, para os grilos pretos e sapos verde-escuros escondidos e o córrego negro. “Há alguém nos degraus atrás de mim. Não ouso me virar.”<br />
Mais um passo, mais um eco.<br />
“Toda vez que dou um passo, dão outro.”<br />
Um passo e um eco.<br />
Com a voz sumida, ela perguntou à ravina:<br />
“Policial Kennedy, é o senhor?”<br />
Os grilos ficaram em silêncio.<br />
Os grilos estavam escutando. A noite a estava escutando. Para variar, na noite de verão, os prados distantes e as árvores próximas entravam todos em animação suspensa; folha, moita, estrela e lâmina de grama cessaram seus tremores típicos e escutavam o coração de Lavinia Nebbs. E a mil quilômetros de distância, do outro lado de uma terra desolada, em uma estação ferroviária deserta, um único viajante, lendo um jornal apagado sob o bulbo exposto de uma lâmpada, talvez levante a cabeça, escute e pense: O que é isso? E decida: É só uma marmota, com certeza, batendo em um tronco oco. Mas era Lavinia Nebbs, era com toda a certeza o coração de Lavinia Nebbs.<br />
Silêncio. Um silêncio de noite de verão que se estendia por mil quilômetros, que cobria a terra como um oceano branco e umbroso.<br />
Mais depressa, mais depressa!<br />
Ela descia os degraus.<br />
Corra!<br />
Ela escutou a música. De um jeito louco, de um jeito tolo, ela escutou a grande onda de música que a assaltava, e percebeu, enquanto corria, enquanto corria em pânico e terror, que alguma parte de sua mente estava dramatizando, tomando emprestada a trilha musical turbulenta de algum drama particular, e agora a música a apressava e empurrava, cada vez mais alta, mais rápida, mais rápida, despencando e correndo rumo ao coração da ravina.<br />
“Só mais um pouco, ela rezava. Cento e oito, e nove, cento e dez degraus! O fundo! Agora, corra! Atravesse a ponte!”<br />
Ela disse às próprias pernas o que fazer, seus braços, seu corpo, seu terror; avisou a todas as partes de si mesma neste momento branco e terrível; sobre as águas turbulentas do córrego, nas tábuas da ponte, ocas, trepidantes, oscilantes, flexíveis, quase vivas, ela correu, seguida pelos passos desordenados atrás, atrás dela, com a música a seguindo também, a música estridente e ininteligível.<br />
“Ele está aí atrás, não se vire, não olhe, se você o vir, não conseguirá se mover, ficará muito assustada. Apenas corra, corra!”<br />
Atravessou correndo a ponte.<br />
“Ó, Deus, Deus, por favor, por favor, me deixe subir! Agora ladeira acima, agora entre as colinas, ó, Deus, está escuro e tudo está tão longe. Se eu gritar agora não adiantará; de qualquer modo, não consigo gritar. Aqui é o topo do caminho, aqui é a rua, ó, Deus, por favor, me deixe em segurança, se eu chegar em casa sã e salva, nunca mais saio sozinha; fui uma tola, eu admito, fui uma tola, não sabia o que era terror, mas, se o Senhor me deixar chegar em casa depois disso, nunca mais saio sem Helen ou Francine! Aqui é a rua. Atravesse a rua!”<br />
Atravessou a rua e correu para a calçada.<br />
“Ó, Deus, a varanda! Minha casa! Ó, Deus, por favor, me dê tempo de entrar e trancar a porta e eu estarei em segurança.”<br />
E ali — coisa tola de reparar... por que será que ela reparou, instantaneamente, não há tempo, não há tempo... mas ali estava... de qualquer forma, ao passar correndo —, no balaústre da varanda, o copo de limonada pela metade que ela havia abandonado há muito tempo, um ano, meia noite atrás! O copo de limonada jazendo, calmamente, imperturbavelmente, ali sobre o balaústre... e...<br />
Ela ouviu os próprios pés desajeitados pisarem a varanda e ouviu e sentiu as mãos investindo contra a fechadura e golpeando-a com a chave. Ouviu o próprio coração. Ouviu sua voz interior gritando.<br />
A chave entrou.<br />
“Destranque a porta, depressa, depressa!”<br />
A porta se abriu.<br />
“Agora, entre. Bata com força!”<br />
Ela bateu a porta.<br />
“Agora tranque, bloqueie, tranque!”, ela ofegava miseravelmente. “Tranque, tranque bem, bem!”<br />
A porta foi bem trancada e aferrolhada.<br />
A música parou. Ela voltou a escutar o próprio coração e seu som diminuindo até o silêncio.<br />
“Em casa! Ah, Deus, salva e em casa! Salva, salva e salva dentro de casa!” Ela se escorou na porta. “Salva, salva. Escute. Nem um som. Salva, salva. Ah, graças a Deus, salva e em casa. Eu nunca mais saio à noite. Vou ficar em casa. Não atravessarei aquela ravina de novo, nunca mais. Salva, ah, salva, salva e em casa, tão bom, tão bom, salva! Segura aqui dentro, a porta trancada. Espere! Olhe pela janela.”<br />
Ela olhou.<br />
“Mas não há ninguém lá! Ninguém. Não havia ninguém me seguindo. Ninguém correndo atrás de mim.” Recuperou o fôlego e quase riu de si mesma. “É claro que se um homem estivesse me seguindo, ele teria me pegado! Não consigo correr muito... Não há ninguém na varanda, nem no quintal. Que bobagem. Eu estava fugindo à toa. Aquela ravina é tão segura quanto qualquer outro lugar. Não importa, é bom estar em casa. Nossa casa é de fato o lugar melhor e mais aconchegante, o único lugar onde estar.”<br />
Ela estendeu a mão na direção do interruptor de luz e parou.<br />
“O quê?”, ela perguntou. “O quê, o quê?”<br />
Atrás dela, na sala de estar, alguém limpou a garganta.Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-58964556250682228932017-02-23T20:30:00.001-03:002017-02-23T20:30:27.277-03:00No escuro - Poesia?<br />
<br />
No escuro, não se pode ver o que não se quer sentir. Por muitos, a falta de luz chega a ser um rio que não se vê fluir. Dentro da su'alma ou de seus nervos cerebrais, por mais que tente, coibitivo será, em pensamentos e afluentes sensações de estar totalmente perdido em meio a antumbrais; Poderia eu estar louco? Bem... Quando cai em sono profundo e tive aqueles sonhos, que já esqueci, todos moribundos, foi no que pensei. Aquela voz de minha mulher, afinada e cantante, <i>- ei!</i> - de um único agudo, longínquo e um tanto astuto, somente isso lembro-me que sonhei.<br />Poderia estar certo a sentença de que sou um "algo" inexistente? De que poderia travar seus problemas em passado, um tanto, você, desamado, que está a ficar só tremendo pelos dentes?<br />Tremendo? Sim. Uma ação comum para quem tem medo. Você deseja um alto padrão de vida ou um amor duradouro, mas é preso ao fútil e inibido desejo - então, sim, assuma, você tem medo. - de tentar bater as asas e cair, ou com um milhão de respostas em infinidade, de não ter pra onde ir.<br />
<br />
Então aqui definimos o que é escuro. Certo?<br /><br />
Não sei no que está pensando, caro amigo. Poderia tentar, tentar, tentar, tentar, tentar, tentar, tentar, tetar, cansar, cansar, rancas, casar... - tanto que esqueceria de completar as letras de minhas palavras, olhando apenas para o próprio umbigo. Então dizemos aqui o significado de "ensaio", o mesmo que tentativa, mas de uma maneira esquisita e de certo modo, arbitrário.<br />
Poderia errar ao etéreo.<br />Mesmo que eu pudesse...<br />Ah....<br />Ideias sem assas -<br />De semi-térreo.<br />
<br />
Sinto que nessa última sentença eu lhe mostrei uma tela escura e lhe dei um pincel, mas não a oportunidade e muito menos a cor, que deseja ou que quer, para pintar seu próprio céu.<br />Não sei bem a função desse texto ou para quem o dirijo, entretanto... Continuarei a escrever, mesmo palavras tão absolutas de cem sentidos.<br />
Estaria eu enlouquecendo?<br />
<br />
A medida que o tempo passa você percebe que minhas quadras ficam menores. Mas é indolor pra mim, se assim concluir que sou o organismo vivo ligado ao texto. É como dar parte da minha carne e pedir que entenda a arte de uma arte de pretextos. Se eu não <b>terminar</b> uma frase...<br />Eu, estaria, enlouquecendo? - ou seria reação de "<i>isso é apenas uma fase!</i>". Geralmente as pessoas que o proferem, estão em constante crescimento? Ou estão tão errados quando os anagramas da palavra 'alma' e seus estranhos significados, que jamais estão interligados? <br /><br />
... <b>então</b>....<br /><br />Sim, essa última foi maior. E o que vem agora é ainda mais demasiado. <i>O último </i>gás de um ser do além. Ou de um adolescente, ou adulto, ou velho, ou neném.<br />
<br />
O escuro; Você apercebe as sombras dançantes e viaja do topor, mesmo não apanhando e nem com enxaqueca,<b> a</b> ausência de sentidos lhe produz grande dor.<br />
As sombras dançantes que exalam alucinação de topor, te apanham, dando-lhe enxaqueca, dando-lhe sensação de ausência, produzindo alienação de sua própria vivência.<br />Deus, me ajude, ajude-me bom Deus. Darei tudo o que eu tiver e mais um pouco, mesmo sabendo que não é o meu o que é teu, estarei preso para sempre nesse eterno breu?<br />Invento personagens, invento canções e presenças que não estão lá.<br />Digo-me para esquecer e não intervir no natural, fingir que não estou lá.<br />Poderia me fazer companhia, caro amigo imaginável. Poderia, tá?<br />Mas eu não estou lá. E você não está aqui.<br />
Vivo de imaginações.<br />Eu sou a <b>ilusão</b>.<br />
Não, digo-lhe -<br />Não.<br />
Nã<br />
o.<br />
Um poço de desejos que surge no mais profundo ápice de loucura dentro da mente. Eu não sou um demente. Que isso fique entre "a gente", do informal ao formal contundente. Meu Deus<b>,</b> eu vejo aquele sorriso no enegrecido nada, S-O-R-R-I-D-E-N-T-E!<br />A mandíbula artística de um Picasso sem mão, desenhando com a boca o que vê em sua comunhão de demônios próprios e figuras sem vida um tanto tortos.<br />
Eu viajo, sim eu viajo.<br />
<br />
Sou um escritor criando personagens. Era isso que eles queriam não é? Vertigem toma conta <b>do</b>'s meus olhos. Tremedeiras na minha mão. Retumbantes batidas no meu coração. Vivências e vereditos que eu não passei. Aquela voz me chama novamente... <i>Ei!</i><br />
Eu te amo, queria amada.<br />Mas não é minha hora, cara donzela.<br />Bela senhora.<br />
<br />
O corpo esquelético e, sorridente <b>acaveirado</b>, me abandona. Estou maltratado. Pela própria confusão de amar.<br />
<br />
Meu corpo estivai e minha alma estivai, meus pensamentos estivais.<br />
<br />
Estou morrendo.<br />
<br />
Estou sem tempo.<br />
<br />
EsTaRiA eu enlouquecendo? Ou é reflexo do <b>pesadelo</b> que continua doendo?<br /><br />
As estrofes doem o que separa sua imaginária solução que imaginaria uma emoção. Não!<br />
<br />
<b>É a chave</b> - (do fim) - que eu criei. (do fim).<br /><br />
As veias que chamam-me a atenção, são as vertentes belas da pele branca de minha esposa.<br />
<br />
Ela diz; Venha, eu sou a antítese <b>d</b>'a <b>loucura </b>e paixão;<br /><br />
Empoleirada ela está, <b>em</b> vinhas de raízes e uma luz bruxuleante paira sobre sua cabeça.<br />
<br />
O meus ases se foram, e ela se foi, pra sempre. A Deus dê, nada é realmente <b>teu</b>.<br />
<br />
A dama dos meus <b>sonho</b>s que eu a matei estando risonho.<br />
<br />
<b>Estaria eu ficando louco?</b><br />
<br />
Eu digo a bruxa, que são minhas memórias, para ir embora. <b>Sim</b>, ela também foi.<br />
<br />
A solidão que me abandonaste depois disso, me deixa maluco. Nem mesmo a morte sabe onde <b>estou</b>.<br />
<br />
Eu preciso me reanimar, <b>então</b>, busco criar outro algo.<br />
<br />
Lembro-<b>me</b> de manter o ritmo de ligações, mas estou tão... tão...<br />
<br />
Sem <b>ajuda</b>.<br />
<br />
<br />
<br />
Aqui eu te mostro o valor do escuro e lhe digo que não sou ninguém.<br />
<br />
O vento através da fechadura, ou os pedidos injuriados de <b><i>por favor!</i></b><br />
<b><i><br /></i></b>
EU sou amor. EU sou a Dor. Eu sou você. Você não sou eu. Eu não sou Deus.<br />
<br />
O semi-térreo de minha vida é o alicerce do inexistente. Os cem sentidos de minha opinião.<br /><br />
As loucuras de seu passado em um espaço escuro e remoto, não antes remexido.<br />
<br />
A solidão que encalça o teu ouvido em certos zumbidos.<br />
<br />
Os grilos que morrem.<br />
<br />
Os bebês que nascem.<br />
<br />
O escuro e o nada.<br />
<br />
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..<br />
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.<br />
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<br />
Eu não sei pra que isso serve. Já que não existo.<br />
<br />
A mensagem foi dada e a luz apagada, e eu... deixei de existir, na ausência de inexistência, eu me fui.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-53536858134528840282017-02-15T22:10:00.001-03:002017-02-21T15:19:19.317-03:00Loucura<br />
<br />
<blockquote class="tr_bq">
"<span style="font-family: "trebuchet ms" , sans-serif;">L<span style="color: #0b5394;">oucu</span>ra te<span style="color: #4c1130;">xt</span>ual é a loucura qu<span style="color: #134f5c;">e é implantada pelo escrit</span>or. Mas quem disse que ele ta<span style="color: #0c343d;">mbém não </span>é c<span style="color: #0c343d;">ontag</span>iado com isso,<span style="color: #783f04;"> tornando as </span>letras tortas em seu pensamento oblíquo, e se tor<span style="color: #660000;">nando... insano.</span>"</span></blockquote>
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
A monstruosidade começou quando eu estava na Paullinne, alimentando os peixes que ali escoravam-se. Dei esse nome ao barco pois de certo de modo, eu me sentia sozinho. Um velho de sessenta e dois anos, viúvo, sem filhos, afundado em dívidas. O monstruoso fato que me refiro foi de ver o cardume ir embora e com a maré ver chegar uma garrafa com inúmeros papéis enrolados dentro. Bateu no barco e ouvir o tintilar de vidro trincando, e por uma sorte, que agora acredito ser uma maldição, foi um trincar externo, não permitindo assim a água adentrar.<br />
Foi de imediato; saltei da rede dentro do único cômodo de um barquinho de doze metros, bati minha cabeça no batente superior da entrada deste quarto, e fui de encontro àquele som.<br />
Uma garrafinha tosca, acredito que antes era a casa de um bom rum, e agora estava estragada e velha. Assim como eu.<br />
Me chamo Tobbey Helverdy e minha esposa morreu em um acidente aéreo. Na verdade, ela entrou em um avião, e nunca mais apareceu. O avião não pousou em Pequim. O avião sumiu no ar. Deve ter uns cem metros de tamanho e ninguém notou pra onde ele foi.<br />
Por algum motivo em que segurei essa garrafa, eu lembrei de tal memória, antes incógnita nas profundezas de minha mente.<br />
Isso foi há 12 anos, em 2014. - De lá pra cá me tornei pescador e tenho pegado muitas espécies; desde enormes lulas a grandiosos crustáceos.<br />
<br />
Tirei com cuidado a rolha da garrafa. - Peguei um papel e era recôndito o que percebi, que a resma estava enumerada do 1 ao 8.<br />
Pus-me a ler aquelas opróbias palavras.<br />
<br />
A primeira folha dizia;<br />
<blockquote class="tr_bq">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">"<i> o mundo em que vives é desonroso demais, oh pescador que no mar se afoga, e na garganta sente o veneno da cobra do que a vida tirou e não devolverá mais".</i></span> </blockquote>
Me arrepiei. Aquelas palavras... Eram.... <i>Pra mim?</i><br />
Li a segunda.<br />
e dizia;<br />
<blockquote class="tr_bq">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">"<i>O rascunho do passado pode ser o portal para o futuro, assim como a semente de um fruto que se planta no mais desértico espaço, se tornará doce e maduro</i>".</span></blockquote>
<br />
A vida não faz sentido mesmo! Eu levanto minhas mãos aos céus e agradeço a Deus. Oh, rapaz... Que fabuloso achado.<br />
Não me contive. Tenho que ler outra.<br />
<br />
<blockquote class="tr_bq">
<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">"<i>Não se engane. O vício é um desejo vítreo e o desejo vítreo pode ser ilícito, e o ilícito pode ter continuidade singular ou seguir um caminho ambíguo. As rimas de um palhaço sem fala? Ou um poema pobre de um homem que só viveu desgraça?</i>"</span></blockquote>
<span style="font-family: inherit;">Eu vivi desgraça. Meu Deus essas palavras estão, por algum motivo, me fazendo pular do barco, aproveitar a água e o Sol e limpar a alma.</span><br />
Mas a terceira folha disse:<br />
<blockquote class="tr_bq">
"<span style="font-family: "helvetica neue" , "arial" , "helvetica" , sans-serif;">Você consegue acompanhar o tempo? Você quer mudar de vida agora? Ser algo, ter algo... Vai em frente, tente! Olhe no fundo da sua alma. Mas não esqueça de esquecer o escuro que há na sua mente."</span></blockquote>
Eu tentei. Naquela noite, quando você ouve alguns peixes que vão até a superfície somente para atirar água da boca e fazer um som semelhante ao chocalho da cobra, eu tive um sonho ruim. Sonhei com o mundo se tornando um papel, se dobrando em uma A4 em seus quatro lados, e se remontando em um origami sem parâmetros. Um desenho de um soldado sentado, sem olhos, sem braços, mas eu sabia que era um soldado. Ou algo semelhante a isso.<br />
De repente se tornava uma mão. Apontava pra parede e meu rosto, como se fosse uma câmera, virava pra ela. Eu via um buraco negro em formato de vórtex, sugando tudo ao seu redor. A particularidade estava no que havia dentro dele; Planetas, estrelas, luas, depois sóis, e por último um conjunto de constelações inteiras.<br />
Aquela imagem dentro do círculo que me proporcionava uma visão panorâmica dessas anomalias, também desfigurava-se em outras imagens. Como as pessoas; presidentes da república de vários países, rostos desconhecidos, familiares - todos esses com seus rostos envoltos em uma névoa cinzenta. Ficava mudando e mudando.... Algumas eram névoas rubras e/ou vermelhas. Eu não entendi bem isso.<br />
Mas foi aí que fui guinado para fora de minha anomalia sonífera. - Eu fui surpreendido por uma luz onde eu não sabia a princípio de onde vinha. Apenas estava lá.<br />
Depois de limpar os olhos na água do mar eu vi;<br />
A água do mar estava verde e os peixes estavam mortos porém brilhantes. Vi auroras boreais acima de mim formando nomes, uns que me recordo bem; minha esposa tinha bastante nomes para dar pra filhos quando tínhamos vinte e seis, mas depois de saber que não podia parir, nomeou bonecas que comprou - foram esses nomes que vi no céu. <span style="color: #ffd966;">Melissa, </span><span style="color: lime;">Johanna, </span><span style="color: #674ea7;">Elisabeth, </span><span style="color: red;">Abigail.</span><br />
Seres abissais nadavam ao redor do barco, aproveitando-se do aclaramento daquela fonte de luz espontânea para se mostrar.<br />
Um peixe colossal com uma lanterna brilhado em um vermelho vivo me alertou... Aqueles eram agentes da loucura... Nada estava ali. E então a imagem piscava e voltava, desligando e ligando. Uma hora estavam e depois não mais.<br />
Acordei na minha rede novamente, mijado. Senti vergonha. Mas na minha idade.. hã... isso bem que é normal.<br />
Um velho desfraldado.<br />
Outra luz surgia, em um tom azul idílio - esse projetava um filme nas paredes internas do quartos - meu casamento...<br />
Ela estava tão linda usando o branco com decote nos peitos. Sentia-se acanhada... Não conseguia imaginar aquilo, achava vulgar. Tinha vergonha dos seios, das pernas, e eram as partes mais formosas de seu corpo.<br />
Como ela estava linda.<br />
<br />
Acordei novamente. Não estava mijado mais. E meu relógio dizia que já se passavam três dias desde quando peguei aquela garrafa.<br />
Achei que ele tinha pifado.<br />
Lasquei uma pedra que usava como peso pra portinha do quarto, fiz duas menores. Criei fogo com elas e me decidi ler aquelas malditas páginas.<br />
Entretanto quando abri... só tinham duas páginas...<br />
Eu li a primeira e o desespero começou;<br />
<br />
- ALZTAMNEK MCNAHAZ ZHULT MANHUR ALDHAR - meus olhos se reviram, voltam, e senti meu corpo ser sugado em direção ao céu. Um feixe de luz acima gritava de tão brilhante e eu não conseguia ver seu final. - MANHUR AHAHAMANAHUR BRIKCHUMA ELT AGHRU - Eu estava cercado por seres violetas. Não tinham olhos, senão rascunhos fundos de onde eles e a boca e nariz estariam.<br />
Produziam sons para se comunicar, como os pássaros fazem. Percebi que decidiram entre si, o que iam fazer comigo.<br />
Primeiro apertaram meu braço. Depois o arrancaram e eu não senti dor. Estava anestesiado, apenas a frieza de onde era pra estar meu braço se fazia presente.<br />
Pegaram o braço sem vida e aproximaram do seus corpos. Sugado como osmose. Eles se alimentavam. Se alimentavam de mim.<br />
E a única coisa que eu pensava era em ler a última página. Tentei, com meu olhar bêbado, observar a sala ao redor e vi meu barco há alguns metros de mim. E mais deles estavam a se juntar com os que faziam de mim sua refeição. Um deles veio com o papel e apontou pro meu rosto e me indicou uma parede à minha direita. Olhei.<br />
Era a última folha, e nela havia um desenho e umas palavras que consegui ler.<br />
<br />
<div style="text-align: center;">
Pesquisa de 1992 - parceria humano-alien - como temperar um ser humano usando <i>dor, medo, frustração e transtornos mentais.</i></div>
<div style="text-align: center;">
<i><br /></i></div>
<div style="text-align: center;">
.</div>
<div style="text-align: center;">
.</div>
<div style="text-align: center;">
. Arrancaram o coração do homem e a imagem se fechou, como quem desliga uma Tv. -</div>
<div style="text-align: center;">
.</div>
<div style="text-align: center;">
.</div>
<div style="text-align: center;">
.</div>
<div style="text-align: center;">
.</div>
<div style="text-align: center;">
.</div>
<div style="text-align: center;">
.</div>
<div style="text-align: center;">
.</div>
<div style="text-align: center;">
.</div>
<div style="text-align: center;">
.</div>
<div style="text-align: center;">
.</div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: left;">
<br /></div>
<div style="text-align: left;">
<b>2026</b> - <i>Notícias locais a respeito da anomalia encontrada no lago River;</i></div>
<div style="text-align: left;">
Um homem foi encontrado nesta terça feira, na verdade, parte do que teria sido esse homem. Uma escultura modelada no papel de um ser agachado com as mãos na cabeça. E onde está o ar da questão? Bem, apenas a cabeça está na estrutura. O resto é preenchido com papel, algodão e a razão de não ter caído, é que os ossos ainda estão lá, segurando.</div>
<div style="text-align: left;">
E o estranho;<br />
O rosto do homem está com uma expressão misturada de medo, dor e amor. E como sabemos?</div>
<div style="text-align: left;">
Bem... </div>
<div style="text-align: left;">
Ele meio que está...</div>
<div style="text-align: left;">
<span style="color: #bf9000;"><br /></span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="color: #bf9000;"><br /></span></div>
<div style="text-align: left;">
<br /></div>
<div style="text-align: left;">
<br /></div>
<br />
<br />
<br />
<br />Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-51803877585724540592017-02-09T18:34:00.003-03:002017-02-09T18:35:51.050-03:00A dor do universo.<div class="MsoNormal">
<br>
<h3 style="text-align: center;">
O turbilhão de <span style="color: blue;">Dor</span>:</h3>
<br>
<div style="text-align: center;">
Tragado pelas correntes que ano após ano perfurava-se mais e
mais em seus tornozelos, Gaudnar, conseguiu sair ileso parcialmente, mas muito
danificado mentalmente. Era difícil encontrar um homem, um único, que era
responsável por trazer consigo a dor do universo. Assim como um nascimento de
um bebê onde sua genitora sente dores do parto, na criação do universo isso
também aconteceu, e Gaudnar Drenner foi esse ‘sortudo’.</div>
<div style="text-align: center;">
<br></div>
A prisão de fibras insanas ficava no alto de uma torre na constelação mais
distante que apenas o universo poderia conceber, no amontoado de buracos negros
em constante progresso de destruição.
Protegido apenas por uma espécie de campo magnético que se mostrava
resistente ao dreno negro incomensurável de doze rodeados buracos-negros.<br>
Talvez... Lá no fundo... O destino tenha pregado uma peça em nós todos, -
porque foi quando os doze sugadores de massa estelar sobrepujaram tanto,
durante tantos milhões de anos, que o tecido universal foi esticando até onde
não podia mais, deixando o centro, Gaudnar, no efeito de cama elástica: Quando
não se tem o que puxar, o ‘aspirador’ quebra, e quebrou. – catapultando a torre
cristalina e o campo magnético para outro lado da galáxia. – O destino <i>tem</i> <i>sim</i>
sido muito engraçado. Sepultando tantos milhares de pessoas boas, no mesmo ano,
no mais reverente onze de setembro;<br>
<br>
Mas lembrem-se bem da frase: <i>tudo que é
ruim pode piorar pra caralho!</i> – E tempo não põe tudo em seu devido lugar.
Algumas pessoas ainda hoje jantam sozinhas, com aquele lugar vazio que dói na
vista, de algum parente que faleceu. O tempo é o pior destruidor.<br>
<i><br></i>
<i>Você sabia, não sabia, Gaudnar?<br>
</i><br>
<i><br></i>
O cara veio parar na Terra em alguma região remota de Baltimore, sua torre, de
um estranho cristal-sem-cor, pousada no cume de uma montanha. Deixando o lugar
com um aspecto ádvena, insólito e heterótrofo. Se alimentando de raízes e
terras boas nas adjacências da cidade rural, que a natureza demorou tanto tempo
para produzir.<br>
Veio barbado com aspectos berrantes de um idoso beirando seus setenta e um. Com
os cabelos brancos como as formações nevadas, ao longe da linha do equador, no
extremo sul (ou norte) do planeta.<br>
Entretanto; os braços, longos e musculosos de algum jovem com bastante
frequência em academias ou levantamentos de peso, estavam lá, ribombando abaixo
do ombro. E as pernas, duas âncoras firmes de musculatura, rígidas e com veias
saltadas.<br>
A torre se moldava ao solo com tamanha maestria. E o seu campo magnético se
tornava assim, uma camada que realçavam as cores de limitados, a partir de
agora, pores-do-sol ao sul da torre que se encravava de frente para quem sobe a
montanha, como se em afronto. Moradores de Baltimore passaram a relatar a estranheza das madrugadas,
sucessivas de vozes aglomeradas no alto da montanha, que apelidaram de
Amaldiçoada e Sem-Retorno. Se estivesse descontente com a própria vida, podia
ir até lá, durante o inicio do crepúsculo soturno. Você não voltaria para
contar histórias. Pois muitos foram, os marinheiros que se aproximavam pela
costa, ou os próprios moradores, tentando desmistificar esses mitos. Tornando-se
assim, parte das estatísticas.</div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;">
<b><br></b>
<b>11 de novembro.</b><br>
<b><br></b></div>
<div class="MsoNormal">
Completando o ciclo perfeito de três meses desde que
adentrou os vales druídicos e pantanosos, descobrir-se-ia que a torre com vida
própria, estava não a somente matar as flores e terras, mas a aprender sobre o
terreno e adjacências. Sugando conhecimento. Ficando afiada.<br>
Gaudnar não estava mais com a aparência de setenta e um. Seu corpo respirava os 30 aparentes.<br>
Beleza custa preço.<br>
Não custa?</div>
<div class="MsoNormal">
Os moradores, que sobreviviam aos tantos, de pesca ou
comércio na encosta da praia, aperceberam, quase que tarde demais, os peixes
mortos, constantemente se tornando habituais, surgindo trazidos pelas ondas.
Também deram por falta de seus gados, árvores, e estranhamente fora de hora,
começava um período de chuva incomum.<br>
No alto da montanha, na íntegra, uma cachoeira de poluição negra e fumacenta
tomava conta em descendência. E notaram, que se aquilo continuasse, então, esse
amontoado enegrecido tomaria conta de toda a cidade. Como bons medrosos que o
povo do interior são, tomaram providências.</div>
<div class="MsoNormal">
Gaudnar
já sabia como fazer bom uso das plantas. Tinha em mente o conhecimento das
carnes de bois e vacas e o uso que se faz com seus couros. Sabia que o ano
tinha 365 dias e às vezes 366. Aprendeu o que ser o “<i>Deus</i>” dos seres humanos; seus métodos, suas crenças, e seus
‘portas-vozes’ aqui na Terra. Quase riu quando encontrou a ignorância no meio
das palavras que justificariam atrocidades bíblicas como sendo santas.<br>
Aprendeu que a fonte de energia solar é a única que provém tudo. E nada funcionaria
sem este.<br>
Compreendeu o valor nutritivo de mentes humanas, fazia algumas semanas que
estava escasso dessa iguaria, e assim;<br>
traçou seus próximos alvos.</div>
<div class="MsoNormal">
Treze
homens marcharam para a montanha, mais da metade armados, menos da metade com
pólvora e armas de monotiro dispostos a incendiar aquela construção titânica,
mas todos com medo do que poderia encontrar à frente. Achavam que era dali que
vinha tal terror. Achavam porque tinham medo de afirmar sua certeza.<br>
Flint guiava a minitropa. Vinte e sete anos e já tinha sobrevivido a guerra de
94 com seus vinte completos, com mais baixas do que o traje militar do exército
podia ter.<br>
Condecorado de guerra que caminhava para uma morte subliminar.</div>
<div class="MsoNormal">
Gaudnar assumiu a postura de Conde Drácula, pois em sua
consciência tomada, pensou que este combinara mais consigo mesmo. E tomou
atitude de transformar as paredes, as janelas, de uma torre colossal, em um
castelo de pedras e com direito a um rio negro circundando a construção – onde
uma ponte desceria aqui, alavancada por roldanas com cordas de sisal grossas. –
Deixe-os vir, para o beijo da morte. – pensou e mostrou os dentes
recém-adquiridos. Se moveu com a sombra da noite, e esperou, calmo e sucinto.</div>
<div class="MsoNormal">
Flint chegou às portas do castelo. Observou com momentâneos
calafrios na espinha, o rio obscurecido que corria com certas anomalias faciais
surgindo e imergindo. Se benzeu e rezou os credos de proteção que aprendera na
escola católica quando tinha catorze. Todos o fitaram com atenção, tentando
entender qual seria o próximo passo. E então ele disse:<br>
- Venham todos! O mal espreita à frente. Devemos tomar cuidado. Deus nos
ajudará.</div>
<div class="MsoNormal">
Eles seguiram, encontrando um cenário arcaico de anos 1770,
arremetendo ao castelo de conde Vlad; com palhas em formato de blocos, luzes a
vapor, construções de pedra lisa e/ou talhadas com nomes e desenhos estranhos.
Mesmo com a iluminação pobre, a luz da lua no alto fazia um bom trabalho.<br>
A trupe de medrosos seguiram para adiante, onde uma escada escura lhes
pareceram bastante atraente. No topo, encontraram um caixão revestido a algodão
dentro de seda, mas nenhum corpo, senão um bilhete dizendo: <i>Conde Vlad descansa em sua tumba.</i> Se
prostraram a descer novamente. Já no térreo, a luz embebida de óleo de baleia,
estava ficando fraca, a luz se escondia atrás das nuvens, era como se o mal
estivesse chegado a galopes.<br>
O que eles viram surgir foi um vulto preto no meio de inúmeros morcegos, se
erguer e ficar com uma estatura de quase dois metros, e só então perceber que o
vulto era um rapaz branco dentro de uma capa preta por fora e rubro por dentro.
Proferia palavras com um sotaque estrangeiro, meio francês, meio espanhol.<br>
- Quem ousa... Em sã consciência... Perturbar Vlad? – dizia.<br>
Todos ficaram em silêncio. Até Flint tomar as rédeas.<br>
- Eu ouso. Você é o responsável por destruir toda montanha. Matar nossos
peixes. Acabar com nossa fonte de renda. Você é um mal a ser eliminado.<br>
Gaudnar, o Vlad, se escondeu atrás da própria capa, tentando apontar que ele
não sabia da missa a reza do que acontecia ali.<br>
- Ora pois, não se faça de sonso. – Gritava uma voz tímida no meio das pessoas.<br>
- Eu? – ele deixou um olho escapar da capa. Somente um. – Você tem certeza?<br>
Flint ficou nervoso.<br>
- Ou você decide, ou você morre, e decidimos por você.<br>
Mas... eu... – ele tentou dizer em alto e bom som. Mas não conseguiu.<br>
James Hudson F., ou Flint, como todos o apelidavam, interpretou os movimentos
de Leônidas no filme <i>300</i> e jogou a
lança improvisada que segurava, bem no peito daquele ser. O mesmo caiu com os
braços abertos e desvaneceu em poeira.<br>
Todos aplaudiram. O céu se abriu. Um raio de luz pousou sobre Flint. Então uma
voz estrondosa disse:<br>
Como Moisés, você guiou seu povo para longe do mal. E está na hora de todos
Adentrarem a terra prometida.</div>
<div class="MsoNormal">
A festa não podia ser maior. E simples, pois a única coisa a
se fazer era descer as escadas do castelo onde a voz, acredito, vinda de Deus,
ordenou. Disse que o Vlad escondia o portal para a terra em seu porão. Todos
teriam de girar a maçaneta pesada de uma porta de ouro, e foi o que fizeram.
Quando se abriu..</div>
<br>
<div class="MsoNormal">
<i>Mas que lugar é este?</i><br>
Uma voz riu alto. Eles viram um sorriso se abrir no meio da escuridão. Gritaram
até a garganta secar. O que liberaram foi uma criatura que estava poupando
forças, criando figuras falsas para levá-los até onde queria. Poupado para
destruir. E foi o que fez. A criatura tinha fome. Não uma que se sacia com
carne ou vegetal. Àquela que destrói mundos inteiros e continua querendo mais.
Aquela que agora está saboreando a via láctea inteira, e depois vai pra
Andrômeda, e depois Orion, e ademais a Ursa maior. E depois metade da galáxia
tem sido engolida. E essa é a verdadeira dor do universo, que sente fome, para
criar mais dor. A Gula de Gaudnar Drenner, do terror abominável em Baltimore,
para o universo, agora, indefeso. E agora não respirava mais ares da casa dos 30. Não, não, não. Agora ele suspirava, uma nova criação, um novo nascimento de um ingênuo e inexperiente universo virulento.<br>Ele se tornou a destruição do novo.<br><br>Gaudnar se tornou o princípio de um mundo que esse bebê chama de:<br>
<br>
<span style="color: #cc0000;">A</span><span style="color: #a64d79;">-</span><span style="color: #e06666;">bo</span><span style="color: #a64d79;">-</span><span style="color: #cc0000;">mi</span><span style="color: #a64d79;">-</span><span style="color: #e06666;">ná</span><span style="color: #a64d79;">-</span><span style="color: #cc0000;">vel</span><span style="color: #a64d79;"> </span><span style="color: #e06666;">Ter</span>-<span style="color: #cc0000;">ror</span><span style="color: lime;">.</span><br>
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Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-38190454029258129872017-02-08T22:02:00.004-03:002017-02-09T18:14:59.968-03:00O garoto afogado em pesadelos<br>
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Não foi bem a chuva que o atormentou naquela madrugada, sacolejando e batendo na janela e fazendo sons de borbulho gutural na pia, onde; quando aconteciam chuvas fortes (como aquela) a água agia em refluxo no encanamento e isso explicava a estranheza.<br>Não <i>explicava</i>?<br>Não.</div>
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<br></div>
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Quando George se levantou para ver se tinha algo no banheiro. Ele se deparou com a cena que, se estivesse oito anos mais novo (e isso o deixaria com 4), acabaria com a inocência de qualquer criança.<br>Seu pai enforcado no suporte superior do box na área de banho - Sua mãe com as pernas abertas em um semi espacate, com a perna esquerda tocando a cabeça, a cabeça revirada para trás, alavancada às costas, e o tórax, rasgado desde a altura do pescoço até próximo a vagina.<br>Ele acordou.<br><i>Uffa!</i></div>
<div style="text-align: left;">
A chuva ainda batia à janela de tempos em tempos, e aparentemente, por causa do escuro espontâneo no quarto, ainda era noite. O seu peito resfolegava ar como se tivesse dado a volta em seis quarteirões antes de se deitar. Os seus olhos quase saltavam fora da caixa. <i>Mais que merdas eu vi? -</i> Pensou.</div>
<div style="text-align: left;">
Mas que <i>merdas </i>você viu?<br>A resposta era simples, curta, e sem dramatizações desnecessárias: <i>Jogos mortais</i>. O filme que sua mãe o notificou para não ver. Os pais, na idade que George tinha, sempre sabiam das coisas. E sempre eram chatos pra cacete! Você não pode fazer isso, George. Você não pode fazer aquilo, George. É perigoso George. É ruim George. Você é preguiçoso, George, não presta pra nada.<br>A voz veio do lado do seu rosto, como se uma boca estivesse colado a ele.<br>- Tá na hora de crescer... - sussurrou - <i>Pequeno George...</i><br>Um palhaço. Não. Não a merda de um engraçado e cheio de graças e burrices propositais que arrastariam gargalhadas aconchegantes. A merda de um palhaço com dentes pontiagudos e com uma língua oleosa oscilando entre cada um. Os olhos eram duas esferas oculares de gato. E a mão, que ele não tinha percebido (por que fitava o teto), tão grande quanto pés de pato de nadadores e tão estranhas quanto. Dedos descomunais. Tudo descomunal, até mesmo o rosto, que era pequeno. O palhaço <i>reverse!</i> Espera aí... Isso não veio dos jogos mortais.<br>- Não veio não, George-dooguie. - ele disse rimando - Veio da sua mente, seu <i>demente!</i><br>E antes que o garoto pudesse responder as garras dentárias do palhaço o atracaram, bem no alto da cabeça. Arrancando na ignorância. Selvageria seja seu nome, e sangue voou no vidro da janela, acima da cabeceira.</div>
<div style="text-align: left;">
<br>E lá estava ele... Acordando mais uma vez.<br>Ainda era noite, a maldita janela ainda era alvo da chuva, a pia também era malevolamente inquietante e sorrateiramente, ao que parecia estar viva.<br>Pegou na sua cabeça, não, tateou com devido cuidado para saber se estava mesmo lá. Olhou para os lados e não viu palhaços. Olhou pra baixo da cama, bravamente destemido, e também não havia nada lá.<br><i>Uffa!</i><br>George foi até o banheiro, acendeu a luz e assistiu durante um tempo a projeção da sua sombra no quarto, uma luz no vácuo que bruxuleava uma massa escura em magnitudes bizarras. Era ele ali de pé, lavando o rosto com os olhos injetados de quem teve uma péssima noite de sono, se olhando no espelho, abaixo da lâmpada de fluorescente. Um garoto gordinho com as bochechas engraçadas. Como morava em um bairro pobre; a chuva também fazia oscilação de energia, então a lâmpada fluorescente de eletrodos começou a ir e vir.<br>E os arrepios também.<br>Foi quando, sua sombra, começou a se mover no quarto. Mas George estava parado. Como pode isso acontecer?<br>- Mas que merd... - antes de poder completar a frase,e... e... e... {...} - a sombra, que vinha, obviamente como qualquer outro ser humano, de baixo dos seus dedos e se projetava até o quarto parcialmente iluminado e parcialmente escuro, o arrastou, imitando os movimentos (pelo menos essa parte era visível) de alguém puxando algo preso embaixo de uma superfície pesada. O levou até o escuro completo, quando a lâmpada parou de oscilar optando por finalmente <i>ir </i>sem<i> </i>voltar, e começou a atacá-lo ali mesmo. Porque todo mundo sabe que uma sombra fica mais forte no mundo delas, ou no ambiente preferido delas, o <i>Plena Tenebris </i>(escuro completo). </div>
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{...} O arrastou e o arranhou e o que George conseguia ver era: o absoluto e estranho, <i>nada.</i> Era atacado pelo o invisível e destroçado nas mãos, que sangravam tentando proteger o rosto, ou a barriga gordinha que estava com várias marcas na camisa que atravessava até a pele, por algo existencial e conspícuo.</div>
<div style="text-align: left;">
- <i>Deus. Me ajude...</i> - o apelo saiu tão baixo que ele próprio quase não escutou. E o que se seguiu, a resposta, veio de um coro que não conseguia ver, mas escutar.</div>
<div style="text-align: left;">
- Ele não está aqui agora, George. - disse o coro com centenas, ou, milhares de vozes reunidas.<br>E um amontoado de escuro se transformou em um ser tocável. Os olhos do garoto perceberam que estava sendo observado por dois buracos que pareciam ser olhos.<br>Quando tentou fugir para o banheiro. O turbilhão de escuro o puxou como furacão fazem com as casas em tempestades, repetindo o mesmo com ele, puxando-o <i>pedaço</i> por <i>pedaço</i>, unindo o sangue, a gordura, a pele, ao escuro tornado que ficava mais urgente. E por alguma razão desconhecidamente especial; George estava assistindo tudo aquilo como um participante em uma realidade 6d de sentimentos e sensações.</div>
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Acordou mais uma vez. Bem na hora que 'aquilo' deu a vez ao seu cérebro se juntar e ele não passava de uma escultura de ossos inerte.</div>
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<i><br></i></div>
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<i>Ele</i> acordou drenado. Suas forças se esvaindo. O peito pesava duas toneladas e os braços e pernas mais cinco. Mal conseguia respirar. Se aquilo acontecesse de novo, então, seria o fim. Não aguentaria outro <i>Round</i> com aquela sessão de pesadelos.<br>Mas o Sol já estava surgindo e como o super homem aquilo o deu forças novamente e ele se levantou.<br>O tão quentinho e brilhante <i>Sol</i>. <i>Que alívio...</i></div>
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Seu quarto era no último andar de uma casa de quatro. Ele abriu a janela e sentiu o cheiro de água suja misturada as flores que residiam à frente da sua casa. Era uma distância considerável, mas dava pra sentir sim.<br>Abriu os braços e prometeu nunca mais se envolver com terror, na vida dele, novamente.<br>Aquelas promessas mentais (como; <i>vou emagrecer próximo ano</i>. <i>Deixarei de ver vídeos eróticos na internet. Serei um homem melhor. Um pai melhor.</i>) que ele sabia que não conseguiria cumprir.<br>Terror era uma droga viciante e de graça, qualquer esquina tinha traficantes com suas mercadorias vindas em forma de livros completos, <i>dvds</i>, c<i>d</i>s, contos, curtas (para cegos, em forma de audiobook, claro).<br>Toda esquina. Todo dia... Quão acolhedor era pensar naquilo. Deixando sua mente perversa como Hannibal Lecter. Ou maluca como Jigsaw. Até mesmo inteligente como <i>Kira</i> de um desenho japonês com nome pitoresco.<br><br>Como qualquer pré-adolescente, George morreu pelo pensamento; Pois o Sol começou a se tornar negro e as nuvens de um tom rosado mesclado a púrpura doente. E seu sorriso se fechou.<br>- DE NOVO NÃO! - protestou. Mas em vão. Muitos monstros surgiam no horizonte; daqueles sem cabeça ou que se moviam com cordas, até mesmo sem rostos.Que se arrastavam, ou que grasnavam. Nominais e inomináveis. Uma apoteose animalesca de personagens inventados por uma mente tão doentia quanto o ser que agora observava tudo aquilo, imóvel e com calafrios agudos.</div>
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Se aquilo era uma bacia de água repleta de pesadelos e coisas que afrontavam a insanidade da Terra, então George Wilson Sinclair estava afogado nela até a garganta. Conseguia até sentir água (<strike><i>pesadelo</i></strike>) entrando em seus pulmões ou por qualquer abertura e fazendo estrago lá... E ouvindo os pais dizendo, o que era diariamente habitual, <i>Você não presta pra nada, George, é preguiçoso.</i></div>
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.<br><br>O garoto enlouqueceu. Se jogou do quarto andar e quebrou o pescoço enquanto sua mãe acordava para receber o carteiro à porta.<br>Tentou gritar - ao ver o sangue espichado nas paredes e à cinco metros na circunferência do que era o seu pequeno garoto, e agora era apenas a carne rosadamente avermelhada e amontada que sobrou jazendo-se em sangue - mas naquela manhã ensolarada linda e repleta de resquícios de nuvens alaranjadas de janeiro...</div>
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Foi tarde demais...</div>
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Continuar?</div>
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<span style="color: red; font-size: x-large;">S</span><span style="font-size: x-large;">/<span style="color: blue;">N</span></span></div>
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Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-50098000431553647662016-12-22T17:00:00.001-03:002016-12-22T17:00:18.690-03:00Churrasco é bom?<br />
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4<br />
3<br />
2<br />
1<br />
...<br />
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Sangue se estende pelas paredes do banheiro. Gritos são escutados no porão. <i>Quer dizer que o trabalho não acabou ainda, seu idiota!</i> - Pensa Billy, o aleijado, embora odeie esse apelido.<br />Olhos de garotinhos estão fixados atrás de grades, esperando para ver quem iria ser o próximo. Havia duas equipes de moleques entre dez e quinze anos, enjaulados em dois cubos metálicos deixando-os sofrendo ainda mais por estarem agachados lá dentro, e separados, sustancialmente na diagonal.<br />Quadros de Patty the Loadcrz estampavam o quarto com cheiro de mofo e óleo mecânico, junto com peças de carros abandonadas e cabeças de porco empalhadas. O homem era o Freddie Kruger da vida real.<br />- Como vamos sair daqui, James? - Perguntou Tommy, com seu cabelo de cuia loiro sobre os olhos e contendo choro, - Como raios vamos sair daqui? - o choro veio.<br />- Fique quieto, Tommy, fique quieto. - Disse James com sua voz o mais paterna que conseguia. Apesar de serem irmãos.<br />
- Crianças - Diz Billy, alegremente. - eu participo de um projeto social para acabar com a fome na África, e vocês - ele aponta para os garotos, por um momento fingindo esquecer o fato de que estava coberto de sangue e todos estavam assustado com a faca que pairava em uma das mãos - Vocês, sim, vocês, que vão ajudar de bom grado amigos que estão com fome, irmãos, pensem nisso, - ele acentuou bem essa parte - IRMÃOS!!!<br />
Botou o a faca entre a cintura com a barriga gorda.<br />- Isso é para diminuir nosso medo? - toma a frente, James.<br />
- Então temos um lobo zangado aqui no meio?<br />Ele puxa a faca, como um gângster saca um estilete.<br />James se retrai. Fica escondido no fundo da jaula, de cócoras.<br />- Não. Não, não. Você é só um maldito carneirinho. - Esconde a faca novamente, fazendo-a se perder no meio de banha e suor e panos, na cintura.<br />Kennan é um garoto negro que foi sequestrado do lado pobre do Brooklyn, um garotinho gordo que usava uma bandana do Run Dmc e tinha uma voz fina como a de uma garota de nove anos.<br />- O que temos aqui? - Alarga os olhos, Billy. - Uma obra de arte de último nível. - Kennan olha no fundo dos seus olhos e percebe que ele não está brincando. O pé esquerdo começa chacoalhando em um ataque de ansiedade que não tinha desde os 8, há 4 anos antes. E o gaguejo que sua fonoaudióloga tinha resolvido há dois e meio, voltou a toda pressão.<br />- Fi-fi-if-fi-fiiiffiiqififiiq - ele puxa o ar com a boca, como se em último suspiro - Fique bem lon-gede mim!<br />- Conseguem ver garotos? Vocês só comem porcaria, mas este aqui, este sabe o que é passar fome e come o que tiver e em grandes quantidades. Ou seja. - Ele dá uma virada, fitando todos os demais participantes, digna de um Oscar de melhor atuação, senão fosse uma cena de terror. - Este aqui é uma obra de arte. - Interessante como obra de arte soou tão fina e patética que poderia ter sido dito por um garoto de três anos relatando uma palavra nova que aprendeu em um desenho animado.<br />Billy abre a parte superior da jaula, com cuidado, porque ratos trâmites não davam folga.<br />- Venha cá seu monte de banha! - diz, com a mão tentando puxar Kennan pelos cabelos, mas alcançando a bandana. - Ora seu moleque de merda!<br />
Kennan olha para a escada. Ele pensa: <i>Scott Pilgrim contra o mundo</i>, eu contra a escada. - E corre em direção a ela sem olhar para trás. Toda a platéia de garotos o encoraja. <i>Vai Kennan! Vai negrinho bão! </i>tinha pessoas do interior e de toda as demais partes de Rust Hill lá. <i>Vai seu negro fodido!</i><br />E ele foi.<br />Mas... <i>Deus dá e Deus tira</i>, pensou Billy e começou a rir como uma bruxa, com as mãos no estômago gordo ele realmente parecia uma.<br />Um botão escondido na palma da mão, selou a porta metálica no alto da escada. E em ataque histérico Kennan esmurrou o portão e esperneou, gritando, e chorando. A luz que estava a frente dele foi fechada, exterminando sua esperança.<br /><i>Deixe-o ir Billy, aleijado! Deixe-o ir Billy aleijado!</i><br />E todos juntos.<br /><i>Aleijado! Aleijado!Aleijado!</i><br />A fúria não podia ter sido maior. A faca que estava na cintura foi apertada pelo cabo, aço inox sendo amassado (<i>difícil acreditar não, é?)</i> com toda a força do punho direito de Billy. Os dentes rangiam e momentaneamente os gritos foram cessando, era como se estivessem assistindo um cinema mudo de Charles Chaplin de repente. Billy puxou o braço para trás. A perna mancou em luto. O músculo do braço rígido ficou, crescentemente. E ele arremessou a faca.<br />Não era comum e nem permitido fazer isso na frente das crianças, sua mãe dizia que a carne com medo ficava menos saborosa, e ele resolveu, nesse exato momento, testar isso na prática.<br />O som estrepitado do crânio sendo perfurado com uma faca de aço inox, foi o mesmo que rasgar uma lista telefônica de uma só vez. E a chuva parecia de irrigação. O garoto a princípio não morreu; foi cambaleando a escada, um degrau por vez, e parecendo que metade do corpo de cima estava desconectado com a metade debaixo, ainda vívida. Até que, aparentemente, o cérebro se deu conta da cena, mapeou onde iria cair, <i>por favor bem pertinho de mim, </i>pensou Billy, e caiu, exatamente perto dele. Os olhos revirados. O irrigador de sangue no buraco na cabeça, ainda jorrando litros. Os garotos, aqueles que ainda tinham sonho com papai noel e fada do dente, boquiabertos e em silêncio fúnebre. Apenas o som de Zzz sendo arrastado do jorrador de sangue.<br />
<br />
No outro dia. Na África.<br />
<br />
Billy estava com um avental e um engradado atrás dele cheio de carne. Uma churrasqueira ligada e centenas de criancinhas fazendo fila para comer o Churrasco do Tio Billy. <i>O melhor e mais gostoso,</i> ele costumava ensinar o lema para os pequenos.<br />- Esse é o último churrasco, Johhny-dunkie-dooguie - Disse Billy, fazendo piada com o garotinho.<br />- Mas e o resto dos meus amigos, tio Billy? - perguntou, com as sobrancelhas baixas, triste.<br />- Não, amiguinho, este é o último desse engradado - Ele pousa a mão em cima de um dos vinte engradados, este agora vazio. - Ainda há mais dezenove caixas do tio Billy para tostar.<br />O garoto sorri indo embora, saltando e mostrando para o resto dos garotos o seu prêmio que esperou tão pacientemente para ter.<br />Depois do serviço, Billy dá uma mordidinha no seu churrasco.<br />- <i>Parece que carne medrosa a deixa mais maleável nos dentes, e mais macia com um toque de vinho. Mamãe é uma velha louca.</i> Ele ri, novamente, como uma bruxa. <i>Mamãe é uma maldita velha louca.</i><br />
<br />
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<br />
Churrasco é bom!!!!!<br /><span style="color: yellow;">:D</span> <span style="color: red;">:D</span> <span style="color: lime;">:D</span> <span style="color: cyan;">:D</span> <span style="color: blue;">:D</span> <span style="color: red;">:D</span> <span style="color: lime;">:D</span><br />
<br />Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-1407850019697685642016-04-04T18:48:00.000-03:002016-04-25T20:14:59.841-03:00O Grandioso Circo Mystic Heaven - Parte 1/2.<i><u><br /></u></i>
<i><u><br /></u></i>
<i><u>Onde o vento sopra mais alto na mente ignorante de pessoas com egos igualmente proporcionais, adentrado o desespero. Bem, eu estive lá. Sozinho? - (não sei ao certo). - Com medo? - (a palavra certa seria realmente essa?) Independente desses sentimentos frágeis, sentimentos humanos, eu estive lá. Nos fazem fracos, mas com o passar do tempo nos fazem forte, correto? - Teoria de crescimento interno, aprendi essa com meu psicólogo. Mas de qualquer forma é outra mentira que pago para ouvir, apenas para diminuir o fato ou fingir dissipar aquelas lembranças como se nunca houvessem acontecido! Eu tenho lembranças duras, sabia? Mas tudo bem, ficará sabendo agora. </u></i><br />
<i><u><br /></u></i>
<i><u>Não é um fim de ano em uma casa de veraneio, bebendo e dançando como jovens malucos que sempre acabam trabalhando em um emprego horrível e se tornando uma pessoa desprezível que corre atrás de um passado que nunca existiu, (mas poderia ter existido se não fossem tão ingenuamente ignorantes propositalmente). Justificando erros sobre erros, conhecedores da vida ou filósofos desse tempo, que julgam como se fossem os juízes, mas que na verdade, como Stephen King informalmente iria dizer em uma de suas novelas literais;"Eles não sabem de caralho nenhum".</u></i><br />
<i><u><br /></u></i>
<i><u>Duro, porém Realidade. A verdade dói, amigo, aprenda a caminhar ao lado da dor e trilhará o caminho da verdade (outra coisa de meu psicólogo que herdei, e haverá muito mais daqui pra frente).</u></i><br />
<i><br /></i>
<i>Continuando, agora para começar de fato:</i><br />
<i><u><br /></u></i>
<i><u>Longe de suas bebedeiras. Longe de suas festas medíocres, pastando um solo de gramado com algumas tumbas e algumas flores espalhadas no chão, algumas desgastadas e semi-mortas. Longe, Apenas longe. Fora de tudo isso. Há uma instalação móvel grandiosa, uma das quais seus pesadelos se tornam realidade. Uma da qual você não quer ousar pensar, e mesmo se tiver essa braveza, ficará louco muito antes de chegar a uma resposta particularmente razoável.</u></i><br />
<i><u>Gritos agudos, mais fortes e mais entonados do que os de Rob Halford - gritos de medo.</u></i><br />
<i><u>E se isso te lembrou The Great Gig In The Sky, esquece, também passam longe por que não foram fingidos e sim verdadeiros.</u></i><br />
<i><u>É lá, o núcleo de seus pesadelos, é onde eles se tornam reais.</u></i><br />
<i><u>Os grilhões arrastam no chão trazendo seu pensamento consigo e diferindo-o na parede de tijolos que circundam a casa. Construção ou demolição? Como demolir algo que se restaurará em breve?</u></i><br />
<i><u>Se não me engano, a Hidra, monstro mitológico, quando se cortavam uma de suas cabeças, outras duas nasciam no lugar. Posso garantir que a história que contarei é semelhante.</u></i><br />
<i><u><br /></u></i>
<i><u>Acredite ou não, há residentes lá. Dos quais me lembro bem. Aqueles de terno e gravata com rostos fundos e olhares desnutridos. </u></i><br />
<i><u>Sempre sabem quando alguém irá chegar; eles adivinham. Semanas de antecedência eles preparam tudo para que a Mystic Heaven - permaneça perfeita, e superficialmente falando, apenas para engana-lo dentro do buraco mais sujo que esse mundo possa ter. </u></i><br />
<i><u>Pessoas costumam ir a circos e para quê? se divertir é claro, essa seria a resposta mais óbvia. Mas me recordo bem de ignorar mágicos nas ruas por quê sempre chamei de enganação barata, nunca acreditei em magia, portanto é duro para mim agora dizer isso, </u></i><br />
<i><u><br />Aquilo não foi mágica, foi na verdade, (e teve um fundo de agonia também) - Real. </u></i><br />
<i><u>Com todos aqueles ossos abaixo de mim, eu conseguia escutar as vozes de todos eles que já caíram naquela armadilha. Uma trapaça mental tão inocente quanto a frase: "Escolha sua carta e mostre a todos, menos a mim. Eu não posso saber qual carta você escolheu". Então... Minutos depois ele acerta. Minutos depois você afunda dentro de um poço de ossos e olhos negros das almas que já foram perdidas em um simples truque de mágica. E por quê? Como eu disse, amigo, ignorância. Você tinha a vitória dentro das suas mãos, mas num passe de mágica tudo é virado contra você, e a aposta que você fez, é apenas, sua própria morte.</u></i><br />
<i><u>Me diga, como eu poderei ir adiante sem antes eu te contar tudo? Não se preocupe, são apenas fatos necessários. </u></i><br />
<i><u>Aquela paisagem sobrenatural que me refiro está longe de ser um filme thrash dos anos 60. </u></i><br />
<i><u>Apenas...</u></i><br />
<i><u><br /></u></i>
<i><u>O corvo gritando, os trompetes ressoando no ar, as cabines acendendo sua luz, as barraquinhas de comida começam a funcionar com todos aqueles cachorros quentes e algodões girando no palito finitamente esperando apenas um olho maravilhado pedir dinheiro para um dos pais para comprar. Tudo está pronto novamente para mais um show fantástico.</u></i><br />
<br />
<i><u>Então a cortina se abre de vez por mais uma noite, e revela:</u></i><br />
<i><u><br /></u></i>
<br />
<h4>
<i><u><span style="font-size: large;">O Show mais emocionante e mágico da vida de vocês.</span></u></i></h4>
<h3 style="text-align: center;">
<span style="font-size: x-small;">
Caso contrário o seu dinheiro de volta, mas esqueça isso, vai ser incrível.</span></h3>
<div style="text-align: right;">
Ass: O diretor.</div>
<div>
<i><u><br /></u></i></div>
<i><u><br /></u></i>
<i><u><br /></u></i>
<i><u><br /></u></i>
<br />
<h4 style="text-align: center;">
<strike>M</strike>ystic<i> He<strike>aven</strike></i></h4>
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<div style="text-align: right;">
1969, 10 de Dezembro, eu ainda sabia dançar. (Bird is word)</div>
<div style="text-align: right;">
¹Você não conhece sobre o pássaro não é? </div>
<div style="text-align: left;">
<br /></div>
<div style="text-align: left;">
<br /></div>
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<br /></div>
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<br /></div>
<div style="text-align: left;">
Eu andava com meu blazer (conjunto) de uma peça de roupa que paguei caro, apenas para ficar parecido com Robert Johnson² - O orgulho da nossa raça naquela época.<br />
O cara podia ser quem fosse mas conseguia tocar tão bem quanto um anjo toca uma trombeta, nunca ouvi um anjo mas ouvi Robert Johnson e acho que ele se assemelha a um. A ideia de ter um negro tocando sobre "vender a alma para o demônio por ser um sujeito pobre em busca de fama e sucesso financeiro imediato " me fazia pensar que: <i><span style="color: #666666;">eu estava na mesma merda, ou pior, ou melhor por ter um par de sapatos (um belo par, então isso me faz meio humano, não é?), ou seja: Se aquela mesma oportunidade surgisse, eu a agarraria e viveria como se fosse meu último dia na Terra.</span></i></div>
<div style="text-align: left;">
De qualquer forma se houvesse uma chance de trocar minha alma para conseguir ao menos um pão com manteiga da Summers (restaurante chique da época, e que agora se tornou uma marca de restaurantes mundialmente famosos), eu o faria (apenas para você ter uma noção de como eu não estava brincando. O mundo era uma merda, mas falaram que é das merdas que surgem moscas ou da merda que se há sucesso, hoje em dia é provado isso, mas enfim... deixa pra lá).<br />
Era meio louco pensar isso, saca? (eu não usarei isso novamente,"saca" não faz parte do meu vocabulário há quase 38 anos. Falei para me enturmar, é assim que jovens que tem a idade que eu tinha falam hoje em dia, saca? - Chega por hoje.) Mas se é louco pensar, você não deve opinar contra um jovem de 21 anos daquela época, onde o preconceito reinava como chicotes em nossas costas e era preciso apenas um olhar de um "senhorzín" (brancos) para fazer-nos tremer na base. Sendo negro você é ladrão, sendo negro você é culpado por que a sinhazinha (brancas) derrubou as compras por ser desastrada, você é também o cesto de lixo alternativo que eles usam quando não tem nenhum por perto. Jogam o lixo em cima da gente mesmo. Independente do que ele seja.<br />
Um dia um homem me bateu na rua com um porrete velho que estava metade no esgoto e metade na calçada da viela, porrete que me provocou dor e ainda sujou minha blusa branca, e se tentasse adivinhar por quê, então sua resposta passaria longe de ser:</div>
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- Apenas para impressionar as mulheres da época, como posso dizer no vocabulário atual, "dando uma de machão", e então, você acertou?<br />
Isso tem algum sentido?</div>
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Mas aquilo teve volta, ah mas teve sim.</div>
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Peguei o porrete do senhorzin e ataquei na cabeça, enquanto estava inconsciente eu mijei na sua cara. Fiquei feliz uma semana. E então ele descobriu por causa da velha Jane, ela havia visto a cena e esperou ele passar na rua novamente para contar. E assim que eu fugi da cidade e vim parar aqui em Rotten Cost "West"(atualmente há a "South" e a "wembeley one" também). Ainda moro aqui, tenho família, já tenho netos também, aqueles que passam o dia em casa diante de computadores e aparelhos telefônicos deus sabe-fazendo-o-quê, e nesse momento na Tv de tela plana (eu cresci na vida) está passando as eleições presidenciais e se o cara negro ganhar, ele será o primeiro presidente negro dos Estados Unidos.</div>
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<br /></div>
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Agora eu posso ser formal? Passei 4 anos no mestrado de letras, e já está na hora de abandonar aquele vocabulário que diariamente eu vou considerando ainda mais imundo.<br />
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<i><span style="color: #999999;">- Minhas condolências ao senhor que devolvi na mesma moeda seus atos grotescos contra mim. Eu poderia ter deixado barato, mas eu o fiz. Sua maneira de morrer fora bem mais cruel do que seus atos e os meus juntos. </span></i></div>
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<i><span style="color: #999999;">Ou seja...</span></i></div>
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<i><span style="color: #999999;">E antes que pergunte: </span></i><br />
<i><span style="color: #999999;">Eu não o matei. Digamos que... Um triturador de resíduos de pia tirou o dia de folga para brincar de sacolejar ossos e fazer uma bela chuva de "suco-de-morango bem fresco" durante um jantar especial com os filhos do "senhorzin".</span></i><br />
<span style="color: #999999;"><i>Alguém tentou consertar algo que estava ligado, apenas estava com um ossinho preso que não fazia as lâminas girarem. Então... Agora não era um ossinho só, não é?</i></span><br />
<i><span style="color: #999999;">Por conta dos detalhes básicos serem pesados demais para esta história (vai haver detalhes surreais mas não quero começar aqui) eu irei abandonar esta memória de vez por ora, considerando que a chuva vermelha fez aquela casa que ele morava ficar inabitável com moscas rodeando aquelas manchas até hoje. (Eu tentei comprá-la, e coincidentemente esta casa fica uma rua atrás da minha).</span></i><br />
<i><span style="color: #999999;">Levando em consideração tudo isso:</span></i><br />
<i><span style="color: #999999;"><br /></span></i>
<i><span style="color: #999999;">3 segundos de silêncio para ele.</span></i></div>
<br />
<i><br /></i>
<i><br /></i>
- Agora a história começa... ainda dá tempo de se arrepender e esquecer de tudo que leu e voltar para suas novelas caseiras matutinas ou tardias.<br />
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(Isso foi apenas um breve aviso)</div>
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Emilly Saint Jo:</div>
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Eu conheci o cinema de Denterson Forbes e conheci aquela rua também - A rua Emilly exalava o perfume de flores de primavera, lá não havia preconceito, e me tratavam como um verdadeiro irmão. Somente naquela rua. As demais eram repletas de policiais que criticavam você e apontavam o dedo diretamente em seu rosto esperando uma reação, e para quê? Somente para fazê-lo ser preso por agressão a autoridade, eu nunca reagi, mas vi alguns companheiros surrarem o policial até fazerem uma bela poça de sangue afundada em amassados faciais e que até os dias atuais estão morfando na cadeia, e outros foram executados na cadeira elétrica. Com direito a platéia e música clássica, bebidas também, e risadas - Aquela cidade é brutal, se me permite dizer:<br />
até hoje ela continua a ser, parcialmente talvez. - uma forma maluca de comemorar a morte de alguém; eu acho.</div>
<div style="text-align: left;">
Mas me diga que sou maluco e isso é mentira.<br />
Por favor, me diga.</div>
<div style="text-align: left;">
Preciso ouvir para me sentir humano novamente.</div>
<div style="text-align: left;">
*Risadas histericamente conturbadas e insanas, metade a metade.*</div>
<div style="text-align: left;">
Pelo menos por enquanto.<br />
(metade a metade) - Você logo entenderá essa frase.</div>
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1970, 24 de março. -</div>
<div style="text-align: right;">
Noite gelada e ventos assobiantes. E de céu <span style="color: #0b5394;">infinitamente estrelado</span><span style="color: #351c75;">.</span></div>
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Eu chutava latas pela rua Rotten Hill em meados anos 70. Eu trabalhava na fábrica de algodões do Sr. Merlbournes, e meus bolsos estavam ao menos cheios (de algodões, não, era um pouco de "din-din" mesmo) de dinheiro fofo, uma quantia que você usa hoje para comprar balas em algum mercado e não consegue se satisfazer, mas que antigamente era usado para comprar uma imensidão de itens que dava para todo o mês.<br />
e se me permitir a intromissão uma vez mais; Era algo bom.<br />
Eu quase me esqueci deste detalhe inútil: <span style="color: #999999;"><i>Eles não dançavam Surfin' bird mais, aquela dança se tornou estranha e ultrapassada, começava a era dos hippies mas eu ainda sabia dançar. E dançava escondido, aquele hit jamais morreu pra mim.</i></span></div>
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<br />
-</div>
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<br />
A estrada estava escura, iluminação baixa de postes com lâmpadas singulares faziam um cenário estranho e nada agradável, já passava da meia noite e isso piorava ainda mais as coisas. Louis Raterball me olhou e fez um gesto com a mão esquerda chamando-me, e no outro lado da rua, suas dezenas de pulseiras no braço fizeram um som semelhante a de um sino. Talvez ela tivesse descendência cigana, algo que nunca perguntei. Naquele clima, aquelas pulseiras, pareciam o tintilar dos sininhos das renas do papai noel. Eu tinha muita imaginação antes (deve ter percebido), hoje em dia perdi uma boa parte.</div>
<div style="text-align: left;">
- Venha cá, Braw! Tenho uma surpresa para você. - Eu apressei meu passo e a medida que eu chegava mais perto, o contraste da luz do bar sob a lona da qual ela estava debaixo revelava um papel dourado e iluminado.</div>
<div style="text-align: left;">
- O que há para mim? - Questionei-a, com as mãos fora dos bolsos da calça social, levando o blazer as costas em uma posição que ele não podia cair, em cima do ombro.</div>
<div style="text-align: left;">
Ela finalmente estende sua mão - Ela segurava na outra mão um ingresso para ir à um circo local.</div>
<div style="text-align: left;">
- RusszMeyer's show? - Cocei a cabeça por cima do chapéu de Camocim-preto.</div>
<div style="text-align: left;">
- Dizem que são bons na arte da comédia, dança - ela fez um pequeno movimento com as duas mãos, como se ensaboasse as costelas - expressando - Misticismo - Ela levou um das mãos ao rosto, ocultando parte dele. - E falam também que a magia - ela remexeu todos os dedos da mão - É o melhor de tudo, alertam para os forasteiros que depois de todas as atrações, nunca se deve perder o Grand Finale com o maior mágico do mundo. E isso veio de bônus embrulhado no maço de notas de dez que recebi de pagamento. Como pode ver o clima aqui está baixo e eu preciso trabalhar dobrado para arcar com as despesas do mês. - Ela estendeu a mão apontando bar adentro, e eu realmente percebi que o fluxo estava abaixo do que eu costumava ver por ali. Tentei fazer uma piadinha sobre mostrar os seios para aumentar a clientela, mas ela somente riu e interrompeu o que viria a seguir com um tapinha no meu ombro.</div>
<div style="text-align: left;">
- Por quê não vende o ingresso, certamente por "falarem que eles são tão bons assim" - fiz aspas com os dedos indicadores e médios, afagando o ar. - irão pagar uma boa ponta, e aqui diz: Premium ways. - Eu observei o ingresso buscando os dados sobre a data e horário, e fui surpreendido com o que achei, era para o próximo dia às sete. Quando o Sol começa a dizer adeus e os coelhos operários entram para em suas tocas. - Era uma frase da cidade, eu me lembro bem.</div>
<div style="text-align: left;">
- Isso é caro, é chique demais. Certamente vai ganhar uma ponta - ( se referia a "ganhar uma ponta" como muito dinheiro, uma quantia minúscula atualmente. ) - Algum ricaço branco pode querer comprar, e de acordo com a urgência, você pode ganhar bem mais do que o próprio valor. - Estiquei a mão de volta a ela. Entregando-a novamente. Ela recusou com um aceno superficial.</div>
<div style="text-align: left;">
- Observe o clima do bar de novo. - Eu já sabia como estava, mas mesmo assim obedeci. - Eu tenho cara de quem tem tempo para estender o vestido e mostrar minhas belas pernas - ela o fez, mostrando para mim como seria - para atrair homens e implorar para eles que compre um simples ingresso? - Aquilo me pareceu uma pergunta retórica, mas naquela época eu sequer sabia o que era isso. - Absolutamente não! Você sabe disso. Está aqui há pouco tempo, apesar de ser novato supera os outros daqui que não conhecem a rotina de uma mulher trabalhadora. - Ela fez um legal orgulhoso com a mão e levou o polegar até o nariz, esfregando-o como Bruce Lee fazia em seus filmes.</div>
<div style="text-align: left;">
Eu entendi a razão daquele aceno superficial pelo o que veio a seguir:</div>
<div style="text-align: left;">
- Eu entendo que você trabalha muito. - o que me fazia questionar-se a razão de ela estar quase uma da manhã parada na entrada de seu bar, se eu a visse com um cigarro, seria aceitável. Mas não vi. O que vi foi um rosto atento a ambos os lados da rua pouco iluminada, um rosto preocupado em certos pontos da rua que se mantinham ocultos na escuridão completa. Você não poderia dar um chute no que tinha ali, em quem ou no quê estavam escondidos ali.<br />
- Braw. Pode levar não quero dinheiro. Apenas leve! - ela empurrou o ar na minha frente com as mãos em forma de concha, recusando. Mas ela me conhecia. Mesmo eu sendo "principiante no jogo", e nisso eu quero dizer ser novato na cidade, não me fazia um cara amigável e a ideia que tinham sobre mim eram a de que eu poderia ser algum ladrãozinho barato, mas Louis Ratterball sabia que eu pagaria e agora eu me sinto um mágico profissional sendo enganado pelo melhor palhaço do circo.<br />
Ela estendeu o vestido revelando suas coxas grossas embrulhadas no meia-calça. Olhou para ambos os lados e para trás, certificando-se de que estávamos sozinhos ou ocultos por ora para tentar fazer o que hoje chamo de "Jogada-mestra":<br />
- Eu recuso dinheiro, mas quem sabe você não fica me devendo algo, mocinho? - Louis sussurrou em meu ouvido, e eu senti o cheiro de seus cabelos loiros e eram de uma fragrância suave e lembrava-me muito o cheiro dos morangos.<br />
Algo cresceu por dentro da minha calça social e eu já sentia arrepios na nuca.<br />
- S-Sim - gaguejei por conta da mão boba alisando ²"você-sabe-quem". - O q-qu-e quiser.<br />
- Que tal passar um tempo aqui, até amanhã de manhã? Poderá beber. E pedirei um único favor depois... - Ela diminuiu a tonalidade de sua voz - mas terá que pagar, meu bem.<br />
- S-Sim. - Disse, não me importando com a urgência que aquele favor iria ser.<br />
Ela baixou o vestido novamente, esticando-o e o amaciando com as mãos, ajeitando-o novamente.<br />
Eu senti algo úmido na cueca, mas evitei alertá-la e hoje sei que fiz certo.<br />
Me puxou pela gola da blusa branca e carregou-me até a cadeira onde sentei e comecei uma conversa com suas irmãs, não tão bonitas quando ela mas ainda sim mais bonitas que eu, e quando me dei conta já era 4:50 da manhã e garrafas de uísques e múltiplos copos grandes de cervejas estavam espalhados por toda a mesa. E parte das garotas estavam desaparecidas sem eu ter ao menos percebido seu sumiço e as que restavam estavam conversando entre si e me excluindo de grande parte do assunto, então eu percebi que o me deixava com cara de palhaço era que:<br />
<i>- Eu não bebo e ligeiramente fui enganado.</i><br />
Também eu (uma forma de dizer bom faturamento) dei lucro ao bar. Dei mais do que tinha. Essa era uma tática de não afundar no bar, primeira regra dos negócios (em lugares sujos da cidade, claro) não vai à falência quem ainda tem dinheiro, mesmo que este não esteja em suas mãos, ou seja, quando alguém te deve. Agora entendeu por que ela recusou o ingresso?<br />
O que me derrubou mesmo foram as conversas sobre sutiãs, calcinhas e experiências sexuais fantásticas, que para mim de 21 anos que nunca havia visto mais do que uma coxa grossa por dentro de uma meia-calça em toda minha vida (eu digo de vinte e cinco para trás), eram o mesmo que entrar em uma história de prazer eterno e fantasias sórdidas inimagináveis. Algo na minha calça crescia em momentos mais quentes e permanecia de pé (esperando) em momentos que eu chamo de "só conversa fiada sem ação". Eu dormi no quarto que ficava no primeiro andar do bar e por conta das poucas pessoas, ainda haviam muitos quartos disponíveis.<br />
<br />
No outro dia, exatamente ao meio dia. Paguei meu quarto e o outro quarto, para onde garotas desaparecidas fogem para aumentar ainda mais a renda do bar. Logo após olhei meus bolsos. Aquele dinheiro para-todo-o-mês havia desaparecido completamente.<br />
E algo me dizia duas coisas:<br />
No próximo mês metade da grana iria desaparecer também (ela sabia disso),<br />
e eu continuaria sem beber até os dias de hoje. (e cumpri).<br />
<br />
E também ainda devia aquele favor a ela. (Por enquanto).<br />
<br />
<br />
<br />
Permutando meus sapatos caros por uma nova quantia de dinheiro considerável, eu passei a usar um par mais vagabundo e também da cor preta, mas pelo menos eu ainda conseguia passar o mês. Isso se eu não voltasse mais naquele bar, algo que eu não iria fazer de maneira nenhuma.<br />
Havia uma coisa que eu tinha esquecido, e quando voltei para o quarto alugado da pensão Pennywolf, eu encontrei. Ao lavar meu blazer com um sabonete, do qual era oferecido pelo serviço de quarto da pensão, e fui revirá-lo do avesso algo caiu do bolso e flutuou no vento, fazendo o desenho de barco no ar até finalmente cair no chão.<br />
-<i> <span style="color: #999999;">Pura sorte, eu quase o perco.</span> </i>- Pensei consigo e guardei no bolso, mas desta vez no da calça.<br />
Revirei minhas malas com roupas e troquei apenas a blusa e o próprio blazer, enquanto dependurava o outro para secar na janela. Almocei no refeitório da pensão mesmo, não era nada sofisticado mas eu ainda podia levar o prato para comer no quarto. E perto do corredor que dá direto para os quartos, eu vi uma estante de revistas e uma delas me chamou muito a atenção, uma coincidência agradável e cara, devo admitir:<br />
- Nove e noventa e cinco por um guia de shows na cidade desse mês. Se eu não tivesse tão interessado assim e sem lugar para onde ir, então com certeza eu não ia pagar essa quantia toda. - E não ia mesmo. Mas aquele mágico de luvas brancas e bigode fino esticado para os lados como o de Charles Chaplin (porém bem mais finos e esticados sofisticamente) e uma cartola semelhante a dele também, tudo me impressionou muito e de maneira instantânea. Parecia que eu estava preso a um fio de mágica que levava diretamente ao olhar daquele homem, dentro daquela imagem, em um fundo preto e branco, meus olhos davam cor a imagem. Cores que nunca mais vi igual na minha vida (nisso eu posso dizer - Até hoje).<br />
Para um jovem de vinte e um, aquilo era um paraíso de fantasia. aludindo o desconhecido. Um dia o homem disse que as melhores coisas eram as coisas desconhecidas. Essa frase era fantástica pra mim. Eu não sabia ainda (claro),<br />
mas igualmente seria o seu show.<br />
<br />
Com o prato em mãos e tentando atrapalhadamente equilibrar o prato e em um espaço que deixei reservado, afastando todo o alimento, o copo. E logo abaixo do braço a revista e na outra mão a chave do quarto.<br />
Eu abri a porta e fechei-a levemente com as costas, empurrando devagar para não desequilibrar tudo e quebrar o que não tinha dinheiro para cobrir. Deitei na cama e deixei o suco na janela, nunca o tomo até terminar o alimento (até hoje).<br />
Abri a revista e o conteúdo era surpreendente, me dá calafrios lembrar de tudo agora. A cada garfada, a cada revirada de página, a cada palavra, a cada detalhe contado de maneira expressiva, truques e mais truques, as perguntas iam surgindo: Como ele fez? Esse cara é de outro mundo? É verdade? É apenas truque? Há dois objetos? É fantástico... Tudo é. Tudo deve ser.<br />
Viro a cabeça em 180° graus a direita.<br />
Alguém bate a porta, e algo me diz que não foi a primeira vez.<br />
<br />
Olhei atentamente a sombra por baixo da porta, de onde eu estava deitado (eu comia assim na época, lendo algo. Constantemente era o jornal). A sombra dançava e logo outra massa escura se juntava a ela e pequenos grunhidos iam se tornando uma frase legivelmente audível, e as batidas na porta iam aumentando compulsivamente ao longo dessas frases.<br />
- Há aí? guem? al aí? Há alguém aí? - Eu achei que fosse a própria porta falando comigo, não era de se estranhar já que na porta estava estampado o mapa da pensão e acima o olho mágico, ou seja, parecia um ciclope ou alguém com um tipo de deficiência visual que tinha um mono-olho.<br />
Me apressei.<br />
Puxei a maçaneta, ainda avulso, eu hesitei quando vi bem quem era.<br />
- Não pude deixar de ver que pegou uma revista no corredor, então do troco do almoço eu tomei a liberdade para retirar o valor da revista.<br />
Eu pensei comigo: "Mas o troco, eu o tenho no meu bolso."<br />
- Sim, eu agradeço. - Eu estendi a mão, mas ele se adiantou e guardou no bolso da minha camisa e apenas piscou, selando uma única frase.<br />
- Cuide bem de seu Dinheiro Braw. - O cara que vestia um suéter com um colete por cima se virou e foi embora pelo corredor, e meus olhos acompanharam apenas com uma pergunta. "Como ele sabe meu nome?"<br />
Pensei muito naquilo quando voltei para terminar a comida do prato. Algo em mim dizia que ele podia muito bem ter pego a minha ficha na recepção e ter olhado lá, escrito de maneira torta (como escrevo), <i><span style="color: #666666;">James Silvery Brawtingumn.</span></i><br />
Mas algo rejeitava a ideia e criara uma espécie de nevoeiro místico em uma atmosfera que falara bem que aquele sorriso em companhia da piscada, eram por si só bastante familiar.<br />
<br />
Depois que acabei de ler tudo e também de me fascinar pelas referências que aquele circo tinha ou na verdade não tinha: Pois eu nunca ouvi falar de uma empresa mundialmente conhecida que se chama Circus's show RnG. Ou uma empresa também mundialmente famosa que se chama Ruffus Know. Ambas as referências citadas eram sobre uma avaliação que enquadrava o circo em um dos melhores do mundo, deixando-o na classificação de nove de dez, e tinha notas de apresentações artísticas que taxavam 9.8/10, e isso ficava à frente do Circo de soleil. Bem, quando de fato terminei tudo, até as paranoias que me deixavam a mercê de decidir ir ou não ao circo, eu percebi repentinamente que minha noção de tempo havia sido burlada.<br />
Os ponteiros do relógio de girassol estampado na parede quase que saltavam, ambos, do ponteiro 6.<br />
Eu tinha 10 minutos para decidir ir ou não, já que levando em consideração que a avenida de Rotten north era a mais rápida e me dava 30 minutos de passadas suaves ou 20 de uma bela caminhada apressada. Era apenas 10 minutos entre o talvez e o não.<br />
Eu olhei uma última vez no espelho e através dele, revirada na cama, eu vejo aquela revista. O sorriso misterioso implantado com as duas mãos dentro da cartola, e uma névoa mística saindo de lá. Aquele bigode sofisticado e aquele olhar... aquele olhar elegante e ao mesmo tempo místico, pertencentes à RusszMeyer - El mago. Ele pareceu falar comigo, e eu vi, eu senti... que ele me chamava, e distraidamente eu disse sim para o espelho.<br />
Então eu fui.<br />
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<div style="text-align: center;">
<i><b><span style="font-size: x-large;">Continua</span></b></i></div>
<div style="text-align: center;">
<i><b><span style="font-size: x-large;"> ...</span></b></i></div>
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Referências:<br />
1.¹, Piadinha feita com a frase inicial da canção "<b>Surfin Bird</b>" da banda <b>The Trashmen</b>. "Todo mundo sabe que o pássaro é a palavra", tradução. Via: https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Trashmen e https://www.letras.mus.br/the-trashmen/399910/traducao.html .<br />
2.², <b style="background-color: white; color: #252525; font-family: sans-serif; font-size: 14px; line-height: 22.4px;">Robert Leroy Johnson,</b><span style="background-color: white; color: #252525; font-family: sans-serif; font-size: 14px; line-height: 22.4px;"> guitarrista e cantor norte-americano de blues. Cujo há uma lenda sobre ter vendido a alma para o demônio em um encruzilhada. Via: </span><span style="color: #252525; font-family: sans-serif;"><span style="font-size: 14px; line-height: 22.4px;">https://pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Johnson ; </span></span><br />
<br />
<br />
Reclamações, tratar com:<br />
<span style="color: magenta; font-family: "trebuchet ms" , sans-serif; font-size: x-small;"><br /></span>
<span style="color: #3d85c6; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: x-small;"><i><b>Johnny O.Brian, o maqueiro.</b></i></span></div>
<div style="text-align: right;">
<br /></div>
Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-90408682806356774122016-02-02T18:09:00.001-03:002016-02-02T18:09:23.432-03:00O fantasma<br />
<br />
<br />
<br />
<h4>
<br />― Vim porque desejo contar-lhe minha história ― disse o homem deitado no sofá
do Dr. Harper. </h4>
O homem era Lester Billings, de Waterbury, Connecticut. De acordo com os dados
anotados pela Enfermeira Vickers, tinha vinte e oito anos de idade, era empregado de uma
firma industrial em Nova York, divorciado e pai de três filhos. Todos falecidos.
― Não posso procurar um padre porque não sou católico. Não posso procurar um
advogado porque não tenho motivo algum para contratar um advogado. Tudo que fiz foi
matar meus filhos. Um de cada vez. Matei-os todos.
O Dr. Harper ligou o gravador.
Billings estava deitado reto como uma vara no sofá, sem relaxar um único
centímetro do corpo. Seus pés sobravam rigidamente sobre a beirada. A figura de um
homem suportando uma humilhação necessária. Tinha as mãos cruzadas sobre o peito,
como um cadáver. O rosto estava cuidadosamente composto. Fitava o teto liso e branco
como se visse cenas e quadros projetados nele.
― Quer dizer que realmente os matou, ou...
― Não ― um leve gesto impaciente com a mão. ― Mas fui responsável. Denny em
1967.
Shirl em 1971.E Andy este ano. Quero lhe contar tudo a respeito.
O Dr. Harper permaneceu calado. Achava que Billings parecia abatido e
envelhecido.
Os cabelos ralos, a pele descorada. Os olhos continham todos os miseráveis
segredos do uísque.
― Foram assassinados, entende? Só que ninguém acredita nisso. Se acreditassem,
tudo estaria bem.
― Por quê?
― Porque...
Billings interrompeu-se e se ergueu nos cotovelos, olhando através da sala.
― O que é aquilo? ― perguntou rispidamente, os olhos apertando-se até serem
meras fendas entre as pálpebras.
― O quê?
― Aquela porta?
― O armário embutido ― disse o Dr. Harper. ― Onde penduro o sobretudo e
guardo as galochas.
― Abra. Quero ver.
O Dr. Harper levantou-se sem uma só palavra, atravessou a sala e abriu o armário.
Lá dentro, um sobretudo castanho-amarelado pendurado num dos quatro ou cinco cabides.
Embaixo dele, um par de galochas brilhantes. O The New York Times fora
cuidadosamente enfiado numa delas. Nada mais.
― Tudo bem? ― indagou o Dr. Harper.
― Tudo bem ― replicou Billings, deixando de apoiar-se nos cotovelos e voltando à
posição anterior.
― Você estava dizendo ― disse o Dr. Harper enquanto regressava à poltrona ―
que se o assassinato de seus três filhos pudesse ser comprovado, todos os seus problemas
cessariam. Por quê?
― Eu iria para a cadeia ― replicou Billings de imediato. ― Pelo resto da vida. E
numa cadeia pode-se ver o interior de todos os quartos. De todos.
Sorriu para ninguém.
― Como seus filhos foram assassinados?
― Não tente arrancar isso de mim à força!
Billings virou-se para fitar maleficamente o Dr. Harper.
― Eu contarei, não se preocupe. Não sou um dos seus malucos passeando por aí e
fingindo ser Napoleão ou explicando que me viciei em heroína porque minha mãe não me
amava. Sei que não acreditará em mim. Não me importo. Não faz diferença. Apenas contar
será suficiente.
― Muito bem ― disse o Dr. Harper, pegando seu cachimbo.
― Casei-me com Rita em 1965 ― eu tinha vinte e um anos e ela dezoito. Estava
grávida. de Denny.
Seus lábios se crisparam num sorriso retorcido e assustador, que desapareceu num
piscar de olhos.
― Fui obrigado a abandonar os estudos e arranjar emprego, mas não me importei.
Amava-os ambos. Éramos muito felizes.
― Rita tornou a engravidar pouco depois que Denny nasceu e Shirl veio ao mundo
em dezembro de 1966. Andy nasceu no verão de 1969 e Denny já estava morto nessa época.
Andy foi um descuido. Era o que Rita dizia. Afirmava que às vezes esse negócio de controle
de natalidade não funciona direito. Creio que foi algo mais que um descuido. Filhos
prendem um homem, o senhor sabe. As mulheres gostam disso, especialmente quando o
homem é mais inteligente que elas. Não acha que é verdade?
Harper soltou um grunhido neutro.
― Não importa, porém. De todo modo, eu o amava.
Billings fez a declaração num tom quase vingativo, como se amasse o filho para
fazer raiva à mulher.
― Quem matou as crianças? ― perguntou Harper.
― O fantasma ― replicou imediatamente Lester Billings. ― O fantasma matou-as
todas.
Saía do armário e as matava.
Virou-se e sorriu.
― O senhor acha mesmo que sou maluco. Está escrito em sua cara. Mas não me
incomodo. Tudo o que desejo fazer é contar e sumir.
― Estou escutando ― disse Harper.
― Tudo começou quando Denny tinha quase dois anos e Shirl ainda era bebê. Ele
começou a chorar quando Rita o colocava na cama para dormir. Tínhamos apenas dois
quartos, entende? Shirl dormia num berço em nosso quarto. A princípio, julguei que ele
chorasse porque já não tinha uma mamadeira para levar consigo para a cama. Rita me disse
que não fizesse drama, que o deixasse levar a mamadeira e ele acabaria por deixá-la de lado
no devido tempo. Mas é assim que as crianças ficam mal acostumadas. Se formos
permissivos demais, elas se tornam mimadas. Então, fazem-nos sofrer.
Engravidam alguma pequena, sabe, ou começam a tomar tóxicos. Ou viram veados.
Já imaginou acordar um certo dia e descobrir que seu garoto ― o seu filho ― é bicha?
― Depois de algum tempo, porém, quando ele não parou, passei a colocá-lo na
cama eu mesmo. E se ele não parasse de chorar, eu lhe dava uma palmada. Então, Rita disse
que ele não parava de repetir "luz". Bem, eu não sabia. Crianças daquele tamanho, como
podemos saber o que estão dizendo? Só a mãe pode saber.
― Rita queria instalar uma luz noturna. Um daqueles abajures com o Camundongo
Mickey ou o Pateta ou algo semelhante. Não permiti. Se um garoto não aprende a perder o
medo do escuro quando ainda é pequeno, nunca mais perderá.
― De qualquer maneira, ele morreu no verão seguinte ao nascimento de Shirley.
Naquela noite, eu o coloquei na cama e ele começou a chorar imediatamente. Dessa vez,
escutei o que disse. Apontou para o armário quando falou. "Fantasma", disse o garoto.
"Fantasma, Papai."
― Apaguei a luz, fui para o nosso quarto e perguntei a Rita por que ela resolveu
ensinar ao menino uma palavra como aquela. Fiquei tentado a dar-lhe umas bofetadas, mas
não dei. Ela afirmou que nunca o ensinara a dizer aquilo. E eu a chamei de maldita
mentirosa.
― Foi um péssimo verão para mim, entende? O único emprego que consegui foi
carregar caminhões de Pepsi-Cola num armazém e passava o tempo todo cansado. Shirl
acordava e chorava todas as noites, de modo que Rita a pegava no colo para niná-la. Voulhe
contar, às vezes eu sentia ímpetos de atirá-las ambas pela janela. Meu Deus, às vezes as
crianças nos deixam loucos. Eu seria capaz de matá-las.
― Bem, a garotinha me acordou às três da manhã, bem no horário de costume.
Ainda meio adormecido, fui ao banheiro e Rita me pediu que desse uma espiada em Denny.
Respondi-lhe que ela mesmo o fizesse e voltei para cama. Já estava quase dormindo
quando ela começou a gritar.
― Levantei-me e fui até lá. O menino estava deitado de costas, morto. Branco como
farinha de trigo, exceto onde o sangue tinha... tinha afundado. Na parte posterior das pernas,
na cabeça, na bun... nas nádegas. Tinha os olhos abertos. Isso foi o pior, sabe?
Esbugalhados e vidrados, como os olhos que vemos nas cabeças empalhadas dos
troféus de caça que alguns colocam acima da lareira. Como as fotografias daqueles garotos
mortos no Vietnã. Mas um garoto americano não devia ficar assim. Morto de costas.
Usando fraldas e calcinhas de borracha, porque começara a urinar-se novamente nas
duas últimas semanas. Horrível. Eu amava aquele menino.
Billings sacudiu lentamente a cabeça e depois exibiu o mesmo sorriso contorcido e
assustador.
― Rita estava quase morrendo de tanto gritar. Tentou pegar Benny no colo e
embalá-lo, mas não permiti. Os tiras não gostam que a gente toque nas provas. Sei que...
― Você já sabia que era o fantasma, na época? ― indagou Harper em voz baixa.
― Oh, não. Naquela época, não. Mas vi uma coisa. Na ocasião, não significou
muito para mim, mas minha mente arquivou-a.
― O que foi?
― A porta do armário estava aberta. Não muito. Apenas uma fresta. Mas eu sabia
que a fechara, entende? Lá dentro havia sacos plásticos da lavanderia. Uma criança mexe
naquilo e pronto: asfixia. Sabe disso?
― Sim. O que aconteceu, então?
Billings sacudiu os ombros.
― Nós o enterramos.
Olhou morbidamente para as mãos que haviam lançado terra em três pequenos
caixões.
― Houve algum inquérito?
― Claro ― os olhos de Billings faiscaram com um brilho sardônico. Um maldito
caipira com um estetoscópio e uma maleta negra cheia de balas de hortelã e um casaco de
pele de carneiro conseguida em alguma faculdade de veterinária. Morte de berço, disse ele!
Já escutou semelhante monte de merda? O garoto tinha três anos!
― A morte de berço é muito comum durante o primeiro ano ― disse
cautelosamente Harper. ― Todavia, esse diagnóstico consta de atestados de óbito de
crianças até a idade de cinco anos, por falta de um melhor...
― Merda! ― berrou valentemente Billings.
Harper tornou a acender o cachimbo.
― Um mês depois do enterro, passamos Shirl para o antigo quarto de Denny. Rita
resistiu com unhas e dentes, mas a última palavra foi minha. Doeu-me, claro que sim. Deus,
como eu gostava de ter a garotinha em nosso quarto. Mas não devemos ser superprotetores.
Assim, mutilamos a criança. Quando eu era menino, minha mãe costumava levar-me à praia
e depois ficava rouca de tanto gritar: "Não vá tão longe! Aí é muito fundo! Tem correnteza!
Aí não dá pé!" Até mesmo mantinha-se alerta contra tubarões, juro por Deus. Hoje em dia,
nem consigo chegar perto do mar. Uma vez, quando Denny ainda era vivo, Rita me obrigou
a levar a família à praia em Savin Rock.
Fiquei enjoado como um cão. Eu sei, entende? Não devemos superproteger as
crianças.
E também não mimá-los. A vida continua. Shirl foi direto para o berço de Denny.
Jogamos o colchão de Denny no lixo. Eu não queria que minha filha pegasse
micróbios.
― Assim, um ano se passou. E uma noite, quando eu botava Shirl na cama para
dormir, ela começou a chorar e berrar. "Fantasma, Papai! Fantasma, fantasma!"
― Aquilo me sobressaltou. Era exatamente como Denny. E comecei a lembrar-me
daquela porta do armário, apenas entreaberta quando o encontramos. Tive vontade de levá-
la para nosso quarto naquela noite
― E levou?
― Não ― disse Billings, olhando para as mãos e contorcendo o rosto. ― Como eu
poderia enfrentar Rita e admitir que estava errado? Eu tinha que ser forte. Ela sempre foi tão
molenga... veja com que facilidade foi para a cama comigo quando ainda não éramos
casados.
Harper disse:
― Em compensação, veja com que facilidade você foi para a cama com ela.
Billings imobilizou-se no ato de recruzar as mãos e virou lentamente a cabeça para
encarar Harper.
― Está querendo bancar o engraçadinho?
― Certamente que não ― replicou Harper.
― Então, deixe-me contar à minha maneira ― disse Billings, irritado. ― Vim aqui
para desabafar. Para contar minha história. Não falarei de minha vida sexual, se é isso que
está querendo. Rita e eu tínhamos uma vida sexual muito normal, sem nenhuma dessas
sujeiras. Sei que algumas pessoas se excitam ao falar no assunto, mas não sou uma delas.
― Está bem ― disse Harper.
― Muito bem ― replicou Billings com nervosa arrogância. Parecia haver perdido o
fio dos pensamentos e seus olhos procuraram inquietamente a porta do armário, que estava
bem fechada.
― Gostaria que eu abrisse aquela porta? ― indagou Harper.
― Não! ― respondeu Billings depressa. Passou a mão na testa, como se tentasse
colocar as recordações em ordem. ― Para que desejaria olhar para suas galochas? ― e
soltou uma risadinha nervosa.
― O fantasma pegou Shirl também ― prosseguiu ele. ― Um mês depois. Mas algo
aconteceu antes disso. Certa noite, ouvi um barulho lá dentro. Então, ela gritou. Abri a porta
muito depressa ― a luz do corredor estava acesa ― e... ela estava sentada no berço,
chorando, e... alguma coisa se mexeu. Nas sombras, perto do armário. Alguma coisa se
esgueirou.
― A porta do armário estava aberta?
― Um pouco; só uma fresta ― respondeu Billings, umedecendo os lábios com a
língua. ― Shirl estava gritando alguma coisa a respeito do fantasma. E disse algo mais a
respeito do que me soou como "garras". Só que ela disse "galas". Crianças pequenas
encontram dificuldade com o som do "r". Rita subiu correndo e perguntou o que havia.
Respondi que a menina se assustara com as sombras dos galhos movendo-se no teto.
― Gala? ― disse Harper.
― Hem?
― Gala... Estaria ela, de algum modo, referindo-se ao armário?
― Talvez ― disse Billings. ― Poderia ser isso. Mas creio que foi "garras".
Seu olhar procurou outra vez a porta do armário. ― Garras. Garras compridas ―
sua voz sumiu num sussurro. ― Você olhou dentro do armário?
― S-sim ― disse Billings, com as mãos fortemente cruzadas sobre o peito; a força
era suficiente para deixar os nós dos dedos esbranquiçados.
― Havia alguma coisa lá dentro? Você viu o...
― Não vi nada! ― berrou bruscamente Billings.
Então, as palavras jorraram aos borbotões, como se uma rolha negra fosse retirada
da garrafa de sua alma:
― Quando ela morreu eu a encontrei, entende? E ela estava toda preta. Toda.
Engolira a própria língua e estava tão preta quanto um negro num espetáculo teatral. E
olhava para mim. Seus olhos pareciam aqueles que vemos em animais empalhados,
brilhantes e horríveis, como bolas de gude vivas, e diziam: "Ele me pegou, Papai. Você
deixou ele me pegar. Você me matou. Você ajudou a me matar..."
Sua voz foi sumindo aos poucos. Uma única lágrima, muito grande e silenciosa,
escorreu-lhe pelo lado do rosto.
― Foi uma convulsão cerebral, entende? As crianças são acometidas por ela, às
vezes.
Um sinal errado partido do cérebro. Fizeram uma autópsia no Hospital de Hartford
e disseram que, devido à convulsão, ela engolira a própria língua, morrendo asfixiada. E tive
que voltar para casa sozinho porque precisaram manter Rita no hospital, sob a ação de
sedativos. Ela estava fora de si. Tive que voltar para casa sozinho e sei que uma criança não
tem convulsões simplesmente porque o cérebro pifou. É possível amedrontar uma criança
até provocar uma convulsão. E eu tive que voltar para a casa onde ele estava.
Em seguida, murmurou:
― Dormi no sofá da sala. Com a luz acesa.
― Aconteceu alguma coisa?
― Tive um sonho ― disse Billings. ― Eu estava num quarto escuro e havia alguma
coisa que eu não conseguia... que eu não conseguia ver direito, dentro do armário. Lembrou
me uma estória em quadrinhos que li quando criança. Estórias da Cripta, recorda-se?
Jesus Cristo! Tinha um sujeito chamado Graham Innes; era capaz de atrair qualquer
coisa deste mundo ― e algumas de fora. De qualquer modo, na estória uma mulher afogou
o marido, entende? Pôs blocos de cimento nos pés dele e o atirou no poço de uma pedreira.
Só que ele voltou. Todo apodrecido, verde-escuro, e os peixes lhe tinham comido um dos
olhos; havia algas em seus cabelos. Ele voltou e matou a mulher. E quando acordei no meio
da noite, pensei que ele estava debruçado sobre mim. Com garras... garras compridas...
O Dr. Harper olhou para o relógio digital embutido em sua mesa de trabalho. Lester
Billings estivera falando durante quase meia hora.
― Quando sua esposa voltou para casa, que atitude assumiu em relação a você?
― Ela ainda me amava ― respondeu Billings com orgulho. ― Ainda queria fazer o
que eu mandava. Esse é o lugar da esposa, certo? Esse women's lib só resulta em pessoas
doentes. A coisa mais importante na vida é uma pessoa conhecer seu lugar. Sua... sua...
bem...
― Sua posição na vida?
― É isso aí! ― exclamou Billings, estalando os dedos. ― É exatamente isso. E
uma mulher deve acompanhar o marido. Oh, ela ficou um tanto desbotada, por assim dizer,
nos quatro ou cinco meses seguintes... arrastava os pés pela casa, não assistia à televisão,
não cantava, não ria. Eu sabia que ficaria boa. Quando as crianças são tão pequenas, os pais
não se apegam tanto a elas. Depois de algum tempo, é preciso abrir uma gaveta e olhar uma
fotografia para conseguir lembrar exatamente como elas eram.
― Rita queria outro filho ― acrescentou ele sombriamente. ― Eu lhe disse que era
má idéia.
Oh, não para sempre, mas durante algum tempo. Disse-lhe que era tempo de nos
recuperarmos e começarmos a aproveitarmos mutuamente. Nunca tivéramos oportunidade
de fazer isso antes. Se quiséssemos ir a um cinema, tínhamos que arranjar alguém para
cuidar das crianças. Não podíamos ir à cidade ver os Mets jogarem, a menos que os pais
dela ficassem com as crianças, pois minha mãe não queria nada conosco. Denny nasceu
pouco depois de nos casarmos, entende? Minha mãe dizia que Rita era uma vagabunda, uma
vigarista de esquina. Vigaristas de esquina, era assim que minha mãe sempre as chamava.
Não é uma piada? Uma vez ela me obrigou a sentar e falou-me das doenças que um homem
pode contrair de uma vi... de uma prostituta.
Como o ca... o pênis aparece com uma feridinha num dia e está todo podre no dia
seguinte. Ela nem mesmo compareceu ao nosso casamento.
Billings tamborilou com os dedos no peito.
― O ginecologista de Rita vendeu-lhe a idéia de usar um DIU dispositivo intra-
uterino.
Infalível, afirmou ele. Basta enfiá-lo na... no lugar da mulher e pronto. Se houver
alguma coisa lá dentro, o óvulo não consegue fertilizar-se. A pessoa nem mesmo sente que
tem alguma coisa dentro.
Ele sorriu com sombria doçura.
― Ninguém sabe se a coisa está ou não lá dentro. E no ano seguinte Rita ficou
grávida.
Que infalibilidade!
― Nenhum método de controle de natalidade é perfeito ― disse Harper. ― A pílula
tem apenas noventa por cento de eficiência. O DIU pode ser expulso por cólicas, fluxo
menstrual abundante e, em casos excepcionais, pelo esforço da evacuação.
― Sim. E também pode ser retirado.
― É possível.
― E o que acontece em seguida? Ela fica tricotando roupinhas, cantando no
chuveiro e comendo picles como uma louca. Sentando-se no meu colo para dizer que talvez
fosse pela vontade divina. Merda.
― O bebê nasceu no final do ano após a morte de Shirl?
― Exatamente. Um menino. Rita deu-lhe o nome de Andrew Lester Billings. Eu
não quis saber dele, pelo menos a princípio. Meu lema era: ela o arranjou, portanto tome
conta dele. Sei como isto pode soar, mas o senhor precisa compreender que passei por maus
bocados.
― Mas acabei gostando dele, entende? Em primeiro lugar, foi o único de nossa
prole que saiu parecido comigo. Denny se parecia com a mãe e Shirl não se parecia com
ninguém, exceto, talvez, minha avó Ann. Mas Andy era minha imagem escarrada.
― Eu ia brincar com ele no cercado quando chegava em casa do trabalho. Ele
agarrava meu dedo, sorria e gargarejava. Com apenas nove semanas de idade o garoto já
sorria para o velho pai. Acredita?
― Então, certa noite, lá estou eu saindo de uma farmácia com um brinquedo para
pendurar no berço do garoto. Eu! As crianças não apreciam brinquedos até terem idade
suficiente para dizer "muito obrigado" este sempre foi o meu lema. Mas lá estava eu,
comprando aquela bugiganga e, de repente, compreendendo que o amava mais que aos
outros. Nessa época eu tinha outro emprego, muito bom, vendendo brocas de perfuração da
Cluett & Sons. Dei-me muito bem e, quando Andy completou um ano, nós nos mudamos
para Waterbury. A velha casa trazia muitas recordações desagradáveis.
― E tinha armários demais.
― Aquele ano seguinte foi o melhor para nós. Eu daria todos os dedos da mão
direita para tê-lo de volta. Oh, a guerra no Vietnã continuava e os hippies ainda andavam
sem roupa por aí, os negros faziam algazarra, mas nada disso nos incomodava. Morávamos
numa rua tranqüila, com bons vizinhos. Éramos felizes ― resumiu Billings. ― Uma vez,
perguntei a Rita se ela não estava preocupada. O senhor sabe, o azar anda por toda parte. Ela
respondeu que não se preocupava por nossa causa. Disse que Andy era especial. Que Deus
erguera uma muralha de proteção em volta dele.
Billings fitou morbidamente o teto.
― O ano passado não foi tão bom. Algo na casa mudou. Passei a deixar as botas no
corredor, porque já não gostava de abrir a porta do armário embutido. Pensava sempre: ora,
e se o fantasma estiver lá dentro? E começava a imaginar que ouvia barulhos esquisitos,
como se algo negro e verde, molhado, se mexesse lá dentro.
― Rita indagou se eu andava trabalhando demais e passei a ser ríspido com ela,
como nos velhos tempos. Chegava a ficar enjoado por ter que deixá-los sozinhos em casa ao
ir para o trabalho, mas alegrava-me precisar sair. Deus me perdoe, mas eu ficava satisfeito
por sair. Comecei a pensar, sabe, que o fantasma se perdeu de nós durante algum tempo
quando nos mudamos. Foi obrigado a caçar-nos, esgueirando-se pelas ruas à noite e talvez
se arrastando pelos esgotos. Farejando-nos. Demorou um ano, mas encontrounos.
Quer Andy e me quer, também. Comecei a pensar: talvez quando pensamos
bastante tempo em alguma coisa e acreditamos nela, ela se tome real. Talvez todos os
monstros de que tínhamos medo em criança, Frankenstein, o Lobisomem e Mamãe, fossem
reais. Bastante reais para matarem meninos que todos acreditavam terem caído em buracos,
morrido afogados em lagos ou simplesmente desaparecido. Talvez...
― Está esquivando-se de alguma coisa, Sr. Billings?
Billings passou muito tempo calado; dois minutos se escoaram, pelo relógio digital.
Então, ele disse abruptamente:
― Andy morreu em fevereiro. Rita não estava em casa. Recebera um chamado do
pai. A mãe dela sofrera um acidente de automóvel no dia seguinte ao Ano Novo e estava à
morte. Rita tomou um ônibus naquela mesma noite.
― A mãe não morreu mas esteve em perigo de vida durante muito tempo: dois
meses.
Contratei uma mulher ótima, que ficava com Andy durante o dia. E ficávamos
juntos à noite. E as portas dos armários embutidos estavam sempre se abrindo.
Billings umedeceu os lábios com a língua.
― O garoto dormia no meu quarto. É curioso, também. Uma vez, quando ele tinha
dois anos, Rita me perguntou se eu desejava mudá-lo para outro quarto. Spock ou algum
daqueles outros charlatães alega que é prejudicial às crianças dormirem com os pais,
entende? Diz que causa traumas relativos ao sexo e tudo o mais. Mas nunca fazíamos sexo a
menos que o garoto estivesse dormindo. E eu não queria mudá-lo de quarto.
Tinha medo, depois do que aconteceu a Danny e Shirl.
― Mas mudou-o, não é mesmo? ― indagou o Dr. Harper.
― Sim ― respondeu Billings com um sorriso doente e amarelo. Mudei-o.
Outro silêncio. Billings pareceu lutar contra ele.
― Tive que mudar! ― bradou finalmente. ― Tive! Tudo estava bem enquanto Rita
ficou em casa, mas depois que ela partiu o fantasma se tornou atrevido. Começou a... ―
Billings rolou os olhos para Harper e exibiu os dentes num sorriso selvagem. ― Oh, você
não vai acreditar. Sei o que pensa: sou mais um maluco para seus registros. Sei disso, mas
você não esteve lá, seu maldito bisbilhoteiro.
― Uma noite, todas as portas da casa se escancararam. De manhã, levantei-me e
encontrei um rastro de lama e sujeira no corredor, entre o armário embutido dos casacos e a
porta da frente. O fantasma saíra? Entrara? Não sei! Juro por Deus, não sei! Discos
arranhados e cobertos de lama, espelhos quebrados... e os barulhos... os barulhos...
Passou a mão pelos cabelos.
― Eu acordava às três da manhã, olhava para a escuridão e dizia a princípio: "É
apenas o relógio." Mas, além disso, escutava algo que se movia furtivamente. Contudo, não
furtivamente demais, pois queria que eu escutasse. Um barulho úmido e escorregadio, como
algo escorrendo no ralo da cozinha. Ou estalidos, como garras arranhando levemente o
corrimão da escada. E eu fechava os olhos, sabendo que era ruim escutar aquilo, mas pior
seria ver...
― E sempre tinha medo de que os ruídos cessassem durante algum tempo e, depois,
uma gargalhada explodisse em meu rosto, ou um hálito com cheiro de repolho podre, e
mãos me apertassem a garganta.
Billings estava pálido, trêmulo.
― Portanto, mudei Andy de quarto. Sabia que o fantasma iria buscá-lo, entende?
Por que ele era o mais fraco. E foi o que aconteceu. Logo na primeira noite, o garoto gritou
de madrugada e, finalmente, quando tive cojones para entrar no quarto, encontrei-o em pé
na cama, berrando: "Papai... fantasma... quero ir com Papai, ir com Papai."
A voz de Billings ficou muito aguda, como a de uma criança; ele deu a impressão
de murchar no sofá.
― Mas eu não pude ― continuou, no mesmo tom agudo e trêmulo. Não pude. E
uma hora mais tarde escutei outro grito. Um grito horrível, gorgolejante. E compreendi o
quanto eu o amava, pois corri para o quarto e nem mesmo acendi a luz. Corri, corri, corri...
Oh, meu Jesus, o fantasma o pegara; sacudia-o, como um cão sacode um trapo... Pude ver
algo horrível, com ombros curvados e cabeça de espantalho... Senti um cheiro terrível, como
o de um camundongo morto numa garrafa vazia... E escutei...
A voz de criança morreu aos poucos. De repente, voltou ao tom adulto:
― Escutei o pescoço de Andy partir-se ― a voz era fria, inexpressiva. ― Um
barulho semelhante ao do gelo se quebrando sob um patinador durante o inverno.
― Então, o que aconteceu?
― Oh, eu fugi ― respondeu Billings na mesma voz fria e inexpressiva. ― Fui para
um restaurante que ficava aberto a noite inteira. Que tal isso como exemplo de covardia?
Corri para o restaurante e tomei seis xícaras de café. Depois, voltei para casa. O dia
já raiava. Chamei a polícia antes mesmo de subir. Andy estava caído no chão, fitando-me.
Acusando-me. Um filete de sangue lhe escorria do ouvido. Só uma gota, na
verdade. E a porta do armário estava aberta ― só uma fresta.
A voz se calou. Harper olhou para o relógio digital. Cinqüenta minutos haviam
transcorrido.
― Marque hora com a enfermeira ― disse ele. ― Na realidade, marque várias
consultas. Às terças e quintas estará bem?
― Só vim contar minha história ― disse Billings. ― Desabafar, Menti à polícia,
entende?
Disse-lhes que o garoto devia ter tentado sair do berço durante a noite... Eles
engoliram.
Claro que engoliram. Era o que parecia. Mas Rita sabia. Rita... finalmente... sabia...
Cobriu os olhos com o braço direito e começou a chorar.
― Sr. Billings, temos muito sobre que conversarmos ― disse o Dr. Harper após um
intervalo. ― Creio que poderei remover parte do seu sentimento de culpa, mas antes é
preciso que o senhor deseje livrar-se dele.
― O senhor não acredita que eu deseje? ― exclamou Billings, tirando o braço dos
olhos vermelhos, inchados, magoados.
― Ainda não ― replicou Harper tranqüilamente. ― Terças e quintas?
Após prolongado silêncio, Billings resmungou:
― Maldito charlatão. Está bem. Está bem.
― Marque hora com a enfermeira, Sr. Billings. E passe um bom dia.
Billings riu ocamente e saiu depressa do consultório, sem olhar para trás.
A mesa da enfermeira estava vazia. Um pequeno aviso colocado sobre o mataborrão
dizia: "Voltarei num minuto."
Billings deu meia-volta e entrou no consultório.
― Doutor, a enfermeira...
A sala estava vazia.
Mas a porta do armário embutido estava aberta. Só uma fresta.
― Ótimo ― disse a voz dentro do armário. ― Ótimo.
As palavras soavam como se tivessem passado entre lábios cheios de algas
marinhas apodrecidas.
Billings permaneceu pregado ao chão quando a porta do armário se escancarou.
Sentiu vagamente um calor nas pernas ao urinar-se.
― Ótimo ― disse o fantasma, saindo do armário com andar trôpego.
Ainda trazia a máscara do Dr. Harper na mão descamada, de garras compridas.Anonymousnoreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-1846042852390360762015-11-20T13:50:00.001-03:002015-11-20T13:50:13.796-03:00Posto de parada -<br />
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<br />
Ele imaginava que, em algum lugar entre Jacksonville e Sarasota,<br />
tinha feito uma versão literária do velho truque “Clark Kent trocando de roupa na cabine telefônica”, mas não sabia bem onde ou como. O que sugeria que não foi assim tão dramático. Então será que tinha importância afinal?<br />
Às vezes ele dizia a si mesmo que não, que essa história toda de Rick Hardin/John Dykstra não passava de uma armação, pura conversa de assessoria de imprensa, igual a Archibald Bloggert (ou qualquer que tivesse sido o seu nome real) atuando como Cary Grant ou Evan Hunter (cujo nome de batismo era Salvatore sabe-se lá o quê) escrevendo como Ed McBain. E esses caras tinham servido de inspiração para ele... juntamente com Donald E. Westlake, que escrevia romances policiais baratos sob o nome Richard Stark, e K. C. Constantine, que era na verdade... bem, ninguém sabia ao certo, não é mesmo? O mesmo acontecia com o misterioso Mr. B. Traven, que escrevera O Tesouro de Sierra Madre. Ninguém sabia ao certo, e isso era grande parte da diversão.<br />
Nome, nome, o que há num simples nome?<br />
Quem, por exemplo, era ele na viagem que fazia duas vezes por semana de volta para Sarasota? Era Hardin quando saiu do Pot o’ Gold em Jax, é claro, sem dúvida. E seria Dykstra quando entrasse em sua casa à beira do canal na Macintosh Road, obviamente. Mas quem era ele na Rota 75, enquanto seguia de cidade em cidade sob as luzes brilhantes da autoestrada? Hardin? Dykstra? Ninguém? Será que havia algum momento mágico em que o lobisomem literário que ganhava uma grana preta se transformava de volta no professor de inglês inofensivo cuja especialidade era poetas e romancistas americanos do século XX? E teria isso importância, desde que estivesse em dia com Deus, a Receita Federal e um ou outro jogador de futebol americano que por ventura fizesse um dos dois cursos de introdução que ele dava?<br />
Nada disso tinha importância ali, logo ao sul de Ocala. O importante era que ele precisava mijar como um cavalo de corrida, fosse quem fosse. Tinha bebido duas cervejas a mais do que o seu limite habitual no Pot o’ Gold (talvez três) e colocado o controle de velocidade do Jaguar em 105 km/h, pois não queria ver nenhuma luz estroboscópica vermelha no seu retrovisor naquela noite. Ele podia ter comprado o Jag com livros escritos sob o pseudônimo Hardin, mas era como John Andrew Dykstra que vivia a maior parte de sua vida, e seria sobre esse nome que a lanterna brilharia se lhe pedissem a carteira de motorista. E Hardin pode ter bebido as cervejas no Pot o’ Gold, mas, se um patrulheiro rodoviário da Flórida sacasse o temido bafômetro de seu estojinho de plástico azul, seriam as moléculas intoxicadas de Dykstra que iriam parar dentro das entranhas inteligentes da bugiganga. E, numa noite de quinta-feira de junho, ele seria presa fácil independentemente de quem fosse, pois todos os turistas haviam voltado para Michigan e ele estava praticamente sozinho na I-75.<br />
Mesmo assim, havia um problema fundamental em relação à cerveja que qualquer estudante de graduação entendia: o contrato que você faz com ela não é de compra, é de aluguel. Por sorte, havia um posto de parada a apenas 10 ou 11 quilômetros ao sul de Ocala, e lá ele daria um jeito naquilo.<br />
Enquanto isso, no entanto, quem era ele?<br />
Certamente tinha vindo a Sarasota 16 anos antes como John Dykstra, e era com esse nome que lecionara Inglês no campus de Sarasota da FSU desde 1990. Então, em 1994, decidiu parar de dar cursos de verão e em vez disso se arriscar a escrever um romance de mistério. Não havia sido ideia sua. Ele tinha um agente em Nova York, não um dos figurões, mas um cara honesto o suficiente e com um histórico aceitável, que conseguira vender quatro dos contos do seu novo cliente (escritos como Dykstra) para várias revistas literárias que pagaram umas poucas centenas de dólares. O nome do agente era Jack Golden e, embora fosse todo elogios para os contos, ele considerava os cheques que resultaram deles “uma merreca”. Havia sido Jack quem apontara que todos os contos publicados por John Dykstra tinham “uma boa linha narrativa” (que, até onde Johnny sabia, no dialeto dos agentes literários significava enredo) e sugerira que seu novo cliente poderia fazer 40 mil ou 50 mil dólares de uma só vez escrevendo romances de mistério de 100 mil palavras.<br />
— Você poderia fazer isso em um verão se conseguisse pendurar o chapéu em algum lugar e metesse a cara — disse ele para Dykstra em uma carta. (Eles ainda não tinham progredido para o telefone e o fax àquela altura.) — E seria o dobro do que você ganha dando aula nos cursos de junho e agosto lá na Universidade de Mangrove. Se quiser tentar, meu amigo, a hora é essa... antes de arranjar uma esposa e dois filhos e meio.<br />
Não havia esposa em potencial alguma no horizonte (assim como não havia agora), mas Dykstra entendera o que Jack queria dizer; arriscar a sorte não ficava mais fácil à medida que você envelhecia. E mulher e filhos não eram as únicas responsabilidades que uma pessoa assumia com o passar silencioso do tempo. Sempre havia a sedução dos cartões de crédito, por exemplo. Cartões de crédito enchem o casco do seu navio de cracas e fazem você ir mais devagar. Cartões de crédito são agentes da norma e trabalham em favor de uma vida sem surpresas.<br />
Quando o contrato dos cursos de verão chegou em janeiro de 1994, ele o devolveu sem assinar para o chefe de departamento com um pequeno bilhete explicativo: Pensei que seria melhor eu tentar escrever um romance este verão.<br />
A resposta de Eddie Wasserman tinha sido cordial, porém firme: Tudo bem, Johnny, mas não posso garantir que a vaga estará disponível no próximo verão. A pessoa que assume o curso sempre tem o direito de recusar primeiro.<br />
Dykstra chegara a pensar no assunto, mas não por muito tempo: àquela altura, tinha uma ideia. Melhor ainda, tinha um personagem: O Cão, pai literário dos Jaguares e das casas na Macintosh Road, estava esperando para nascer, e Deus abençoe o seu coração homicida.<br />
À sua frente ele via a seta branca na placa azul que reluzia sob os seus faróis, a rampa que saía da estrada fazendo uma curva para a esquerda e os postes com lâmpadas de sódio de alta potência. Elas iluminavam de tal forma o asfalto que a rampa parecia parte de um palco de teatro. Ele ligou a seta, desacelerou para 65 km/h e saiu da interestadual.<br />
Na metade da subida, a rampa bifurcava: caminhões e trailers para a direita, quem estivesse dirigindo um Jaguar, seguir reto. O posto de parada ficava 50 metros depois da bifurcação, um prédio baixo de blocos de concreto que também parecia um palco sob as luzes fortes. O que seria ele em um filme? Uma base de lançamento de mísseis no cafundó do Judas, sendo que o sujeito no comando sofre de algum tipo de doença mental cuidadosamente escondida (mas progressiva). Ele vê russos por toda parte, russos saindo das malditas paredes... ou então terroristas da Al Qaeda, o que provavelmente estaria mais na moda. Os russos já não serviam mais para vilões em potencial, a não ser que estivessem traficando drogas ou prostitutas adolescentes. E, de todo modo, o vilão não tem importância, é tudo fantasia, mas ainda assim o dedo do cara está coçando para apertar o botão vermelho, e...<br />
E ele precisava mijar, então, por favor, guarde a imaginação na gaveta por um tempo, obrigado. Além do mais, não havia lugar para o Cão numa história dessas. O Cão era mais um guerreiro urbano, como ele havia dito no Pot o’ Gold mais cedo naquela noite. (Boa frase, por sinal.) Mas a ideia do comandante louco da base de mísseis tinha o seu encanto, não tinha? Um cara bonitão... adorado pelos colegas... parece perfeitamente normal por fora.<br />
Havia apenas um carro no estacionamento amplo àquela hora, um daqueles PT Cruisers que ele sempre achava engraçados — pareciam carrinhos de gângster de brinquedo da década de 1930.<br />
Ele estacionou quatro ou cinco vagas depois do PT Cruiser, desligou o motor e então parou para dar uma conferida rápida no estacionamento deserto antes de sair. Não era a primeira vez que parava ali ao voltar do Pot, e certa vez tinha ao mesmo tempo achado graça e ficado apavorado ao ver um crocodilo se arrastando pelo asfalto vazio em direção aos pinheiros do outro lado do posto, parecendo um pouco um homem de negócios velho e acima do peso a caminho de uma reunião. Não havia crocodilo naquela noite, de modo que ele saiu, apontando seu chaveiro por sobre ombro e apertando o botão para trancar as portas do carro. Naquela noite, seria apenas ele e o sr. PT Cruiser. O Jag soltou um gorjeio obediente e por um instante ele viu sua sombra no breve lampejo dos faróis... mas de quem era ela? De Dykstra ou de Hardin?<br />
De Johnny Dykstra, decidiu ele. Hardin tinha sumido àquela altura, deixado para trás a 50 ou 60 quilômetros dali. Porém aquela tinha sido a sua noite de fazer a breve (e em sua maior parte cômica) apresentação pós-jantar para o restante dos Florida Thieves, e ele achava que o sr. Hardin havia feito um belo trabalho, terminando com a promessa de mandar o Cão atrás de qualquer pessoa que não contribuísse generosamente com a instituição beneficente daquele ano, que calhava de ser a Sunshine Readers, uma organização sem fins lucrativos que fornecia textos e artigos em formato de áudio para acadêmicos cegos.<br />
Ele atravessou o estacionamento até o prédio, os saltos de suas botas de caubói clicando no asfalto. John Dykstra jamais usaria jeans desbotados e botas de caubói em um evento social, especialmente se ele fosse o palestrante do evento em questão, mas Hardin era um carro envenenado de modelo bem diferente. Ao contrário de Dykstra (que se melindrava com facilidade), Hardin não dava muita bola para o que as pessoas achavam da sua aparência.<br />
O edifício do posto de parada era dividido em três partes: o banheiro feminino à esquerda, o banheiro masculino à direita e um grande átrio no meio, com um balcão onde você podia apanhar panfletos sobre diversas atrações do centro e do sul da Flórida. Havia também máquinas de salgadinhos, duas máquinas de refrigerante e um dispenser automático de mapas que exigia um número ridículo de moedas. Ambos os lados da entrada baixa de blocos de concreto estavam cobertos de cartazes de crianças desaparecidas que sempre deixavam Dykstra arrepiado. Quantas das crianças naquelas fotos, ele sempre se perguntava, estariam enterradas no solo úmido e arenoso dos Glades ou alimentando os crocodilos daquela região pantanosa? Quantas cresciam acreditando que os vagabundos que as raptaram (e de quando em quando as molestavam ou prostituíam) eram seus pais ou mães? Dykstra detestava olhar para seus rostos desarmados e inocentes ou pensar no desespero que havia por trás dos valores absurdos das recompensas — 10, 20, 50 mil dólares, 100 mil (a última, por uma menina loira e sorridente de Fort Myers que tinha desaparecido em 1980 e que estaria no começo da meia-idade, se é que ainda estava viva... o que quase certamente não era o caso). Havia também um aviso informando ao público que era proibido remexer os latões de lixo, e outro dizendo que demorar mais de uma hora naquele posto de parada era proibido — ÁREA VIGIADA PELA POLÍCIA.<br />
Quem iria querer se demorar aqui?, pensou Dykstra, escutando a brisa noturna farfalhar por entre as palmeiras. Um louco, eis quem iria querer. Uma pessoa para a qual um botão vermelho começaria a parecer atraente à medida que os meses e anos tediosos passavam ao som de caminhões de 16 rodas na faixa de ultrapassagem à uma da madrugada.<br />
Ele dobrou em direção ao banheiro masculino e então se deteve no meio de um passo quando ouviu de repente uma voz de mulher, um pouco distorcida pelo eco, mas espantosamente próxima, vir de trás dele.<br />
— Não, Lee — disse ela. — Não, querido, não faça isso.<br />
Ouviu-se um tapa, seguido por um baque, um baque abafado de carne. Dykstra se deu conta de que estava escutando o som inconfundível de maus-tratos. Ele chegava a ver a marca vermelha da mão no rosto da mulher e sua cabeça, apenas ligeiramente amortecida pelos cabelos (loiros? pretos?), batendo contra a parede de azulejos bege. Ela começou a chorar. As lâmpadas de sódio eram fortes o bastante para Dykstra ver que seus braços tinham ficado arrepiados. Ele começou a morder o lábio inferior.<br />
— Tu é uma puta de merda.<br />
A voz de Lee era monótona, sonora. Era difícil saber por que dava para notar de cara que ele estava bêbado, pois cada palavra era articulada à perfeição. Mas dava, porque você já ouviu homens falando assim antes — em estádios de beisebol, em feiras de variedades, às vezes através de uma parede fina (ou do teto) de motel tarde da noite, com a lua já baixa no céu e os bares já fechados. A metade feminina da conversa — será que se podia chamar aquilo de conversa? — podia estar bêbada também, embora parecesse mais assustada.<br />
Dykstra ficou parado ali, no limiar de um hall de entrada, encarando o banheiro masculino, suas costas viradas para o casal no banheiro das mulheres. Ele estava nas sombras, cercado dos dois lados por cartazes de crianças desaparecidas que farfalhavam baixinho, como folhagens de palmeira, sob a brisa noturna. Ficou esperando no mesmo lugar, torcendo para aquilo parar por ali. Mas é claro que não parou. Os versos de um cantor qualquer de música country lhe vieram à cabeça, sem sentido e agourentos: “Quando eu descobri que não prestava, já estava rico demais para tomar jeito.”<br />
Ouviu-se outro tapa polpudo e outro grito da mulher. Houve um instante de silêncio, e então a voz do homem voltou a ressoar, e dava para notar que, além de estar bêbado, ele era ignorante; por conta da maneira como dizia tu é em vez de você é. Era possível saber um monte de coisas a respeito dele, na verdade: que costumava se sentar nos fundos da sala durante as aulas de Inglês no ensino médio; que bebia leite direto da embalagem quando chegava em casa do colégio; que abandonou a escola antes de se formar; que arranjou o tipo de trabalho em que precisava usar luvas e carregar um estilete no bolso de trás da calça. Não se devia fazer esse tipo de generalizações — era como dizer que todos os negros tinham ginga de nascença e todos os italianos choravam na ópera —, mas ali no escuro, às 11 da noite, cercado por cartazes de crianças desaparecidas que por algum motivo eram sempre impressos em papel rosa, como se essa fosse a cor dos desaparecidos, você sabia que era verdade.<br />
— Tu é uma putinha de merda.<br />
Ele tem sardas, pensou Dykstra. E a pele sensível ao sol. A pele queimada faz com que ele pareça sempre nervoso, e normalmente é assim mesmo que ele está. Ele bebe Kahlúa quando está com a carteira recheada, como se diz, mas no geral bebe cer...<br />
— Lee, pare — disse a voz da mulher. Ela estava chorando àquela altura, implorando, e Dykstra pensou: Não faça isso, moça. Você não sabe que só piora as coisas? Não sabe que quando ele vê aquele filete de ranho pendendo do seu nariz isso só serve para deixá-lo mais irritado ainda? — Pare de me bater, não agu...<br />
Whap!<br />
E então outro baque e um grito agudo, quase um latido fino, de dor. O velho sr. PT Cruiser a estapeou outra vez com força o bastante para sua cabeça bater contra a parede de azulejos do banheiro, e como era mesmo aquela piada antiga? Por que a cada ano são 300 mil casos de maus-tratos contra a mulher nos Estados Unidos? Porque elas... não... aprendem... porra.<br />
— Tu é uma puta.<br />
Esse era o evangelho de Lee naquela noite, direto da Segunda Epístola aos Bebadonicenses, e o que era assustador naquela voz — o que Dykstra achou completamente aterrorizante — era a falta de emoção. Raiva teria sido melhor. Raiva teria sido mais seguro para a mulher. Raiva era como um gás flamejante — uma faísca poderia acendê-lo e consumi-lo em uma explosão rápida e espalhafatosa —, mas aquele cara era... meticuloso. Não bateria nela de novo e então pediria desculpa, talvez começando a chorar ao fazê-lo. Talvez tivesse feito isso em outras noites, mas não naquela. Naquela noite ele estava interessado na explosão mais demorada. Ave-Maria cheia de graça, me ajude a sair dessa enrascada.<br />
O que eu faço agora? Qual é a minha função aqui? Será que tenho alguma?<br />
Ele certamente não entraria no banheiro masculino para dar a longa e preguiçosa mijada que pretendia e estava louco para dar; seu saco estava encolhido como duas pedrinhas duras e a pressão nos rins tinha se espalhado tanto pelas suas costas quanto pelas pernas. Seu coração estava acelerado no peito, esmurrando-o a uma passada rápida que provavelmente se tornaria uma corrida ao som do próximo golpe. Só conseguiria mijar novamente dali a uma hora, por maior que fosse a sua vontade, e mesmo assim o xixi sairia em uma série de jatinhos insatisfatórios. E Deus, como ele gostaria que essa hora já tivesse passado, como gostaria de estar na estrada, a 100 ou 110 quilômetros dali!<br />
O que você vai fazer se ele bater nela de novo?<br />
Outra questão surgiu: o que ele faria se a mulher desse no pé e o sr. PT Cruiser fosse atrás dela? Havia apenas uma saída do banheiro feminino, e John Dykstra estava bem no meio dela. John Dykstra com as botas de caubói que Rick Hardin usara em Jacksonville, onde de duas em duas semanas um grupo de escritores de mistério — muitos deles mulheres gorduchas de terninhos pastel — se reunia para discutir técnicas narrativas, agentes, vendas e fofocar uns sobre os outros.<br />
— Lee-Lee, não me machuque, está bem? Por favor, não me machuque. Por favor, não machuque o bebê.<br />
Lee-Lee. Jesus chorou.<br />
Ah, e ainda tem mais; mais essa para completar. O bebê. Por favor, não machuque o bebê. Bem-vindo ao canal A Vida como Ela É.<br />
O coração disparado de Dykstra pareceu afundar alguns centímetros no peito. Ele tinha a sensação de estar parado naquele pequeno limiar de bloco de concreto há pelo menos vinte minutos, mas quando olhou para o relógio não ficou surpreso ao ver que nem mesmo quarenta segundos se haviam passado desde o primeiro tapa. Prova da natureza subjetiva do tempo e da estranha velocidade do pensamento quando a mente é colocada sob pressão sem aviso. Ele já havia escrito diversas vezes sobre as duas coisas. Imaginava que a maioria dos — abre aspas, fecha aspas — escritores de mistério tivesse feito o mesmo. Quando chegasse novamente a sua vez de palestrar para os Florida Thieves, talvez ele pudesse escolher isso como assunto e começar lhes contando sobre o incidente. E sobre como teve tempo para pensar em Segunda Epístola aos Bebadonicenses. Embora achasse que talvez fosse um pouco pesado para suas confraternizações quinzenais, um pouco...<br />
Uma perfeita rajada de golpes interrompeu essa linha de pensamento. Lee-Lee tinha surtado. Dykstra escutou o som peculiar daqueles golpes com o assombro de um homem que compreende estar ouvindo sons dos quais jamais se esquecerá, não efeitos sonoros de cinema, mas um som de punhos batendo em um travesseiro de penas, surpreendentemente suave — na verdade, quase delicado. A mulher gritou uma vez de surpresa e outra de agonia. Depois disso, se viu reduzida a gritinhos ofegantes de dor e medo. Lá fora no escuro, Dykstra pensou em todos os anúncios públicos de tevê que já havia visto sobre prevenção da violência doméstica. Eles não faziam menção a isso, a como você conseguia ouvir o vento nas palmeiras em um ouvido (e o farfalhar dos cartazes de crianças desaparecidas, não nos esqueçamos disso) e aqueles pequenos grunhidos de dor e medo no outro.<br />
Ele ouviu o barulho de pés se arrastando no piso de azulejo e soube que Lee (Lee-Lee, era como a mulher o chamara, como se um apelido carinhoso pudesse acalmar sua fúria) estava se aproximando. Como Rick Hardin, Lee usava botas. Os Lee-Lees do mundo geralmente preferiam calçar Georgia Giants. E mulheres mais novas. A mulher estava de tênis cano baixo, branco. Ele sabia.<br />
— Puta, puta de merda, eu te vi falano com ele, mostrano os peito pra ele, tu é uma puta mermo...<br />
— Não, Lee-Lee, eu nunca...<br />
O som de outro golpe, e então uma expectoração rouca que não era nem masculina nem feminina. Um barulho de golfada. No dia seguinte, quem quer que limpasse aqueles banheiros encontraria vômito secando no chão e em uma das paredes de azulejo do toalete feminino, mas Lee e sua mulher ou namorada já estariam longe, e para o faxineiro seria apenas outra sujeira para limpar, a história do vômito ao mesmo tempo obscura e desinteressante, e o que Dykstra deveria fazer? Meu Deus, será que ele tinha coragem de entrar lá? Se não tivesse, Lee talvez acabasse de bater nela e se desse por satisfeito, mas se um estranho interferisse...<br />
Ele mataria a nós dois.<br />
Mas...<br />
O bebê. Por favor, não machuque o bebê.<br />
Dykstra cerrou os punhos e pensou: merda de canal A Vida como Ela É!<br />
A mulher ainda vomitava.<br />
— Para com isso, Ellen.<br />
— Não consigo!<br />
— Não? Então tá bom. Eu faço você parar. Sua... puta.<br />
Outro whap! pontuou aquele puta. O coração de Dykstra se afundou mais ainda. Ele não achava que aquilo fosse possível. Dali a pouco estaria batendo na sua barriga. Se ao menos pudesse incorporar o Cão! Em um conto isso daria certo — ele vinha inclusive pensando sobre identidade antes de cometer o grande erro de entrar naquele posto de parada, e se aquilo não era o que os manuais de literatura chamavam de prenúncio, então o que seria?<br />
Sim, ele poderia se transformar no seu matador, entrar no banheiro feminino, cobrir Lee de porrada e depois seguir seu caminho. Como Shane naquele filme antigo com Alan Ladd.<br />
A mulher vomitou novamente, com o som de uma máquina transformando pedras em cascalho, e então Dykstra soube que não iria incorporar o Cão. O Cão era faz de conta. Aquela era a realidade, se desenrolando bem ali na sua frente como a língua de um bêbado.<br />
— Faz isso de novo pra você ver só — incitou Lee, e dessa vez havia algo de mortífero em sua voz. Ele estava se preparando para ir até o fim. Dykstra estava certo disso.<br />
Eu vou testemunhar no julgamento. E quando me perguntarem o que fiz para impedir, vou falar que não fiz nada. Vou falar que fiquei escutando. Que eu memorizei a cena. Que fui testemunha. E então vou explicar que é isso que escritores fazem quando não estão escrevendo.<br />
Dykstra pensou em correr de volta para o Jag — sem fazer barulho! — e usar o telefone no painel para ligar para a polícia estadual. Bastava discar *99. Era o que diziam as placas de mais ou menos 15 em 15 quilômetros: EM CASO DE ACIDENTE, DISQUE *99 NO SEU CELULAR. Só que nunca havia um policial por perto quando você precisava. O mais próximo naquela noite estaria em Bradenton ou talvez Ybor City e, quando ele chegasse ali, aquele pequeno rodeio de sangue estaria acabado.<br />
Então uma série de soluços pastosos, entremeados por sons baixos de sufocamento, começou a vir do banheiro feminino. A porta de uma das cabines bateu. A mulher sabia que Lee estava falando sério com tanta certeza quanto Dykstra. O simples fato de ela vomitar novamente bastaria para ele explodir. Ele partiria como um louco para cima dela e terminaria o serviço. E se eles o apanhassem? Segundo grau. Não premeditado. Em 15 meses ele poderia estar solto e saindo com a irmã mais nova dela.<br />
Volte para o carro, John. Volte para o carro, sente atrás do volante e saia daqui. Comece a trabalhar na ideia de que isso nunca aconteceu. E certifique-se de não ler o jornal ou assistir à tevê pelos próximos dois dias. Vai ajudar. Faça isso. Agora. Você é um escritor, não um lutador. Você tem 1,80m, pesa 73,5 quilos, tem um ombro ruim e a única coisa que pode fazer aqui é piorar a situação. Então volte para o carro e faça uma pequena oração para qualquer Deus que exista olhar por mulheres como Ellen.<br />
E ele chegou a dar meia-volta antes de um pensamento lhe vir à cabeça.<br />
O Cão não era real, mas Rick Hardin era.<br />
Ellen Whitlow, de Nokomis, tinha caído em cima de uma das privadas e aterrissado na tampa com as pernas abertas e a saia levantada, exatamente como a puta que era, e Lee foi andando atrás dela, pretendendo agarrá-la pelas orelhas e começar a socar sua cabeça idiota contra o azulejo. Já estava farto daquilo. Iria lhe ensinar uma lição que ela jamais esqueceria.<br />
Não que esses pensamentos tenham passado pela sua cabeça de alguma forma coerente. O que havia em sua mente àquela altura era basicamente uma vermelhidão. Debaixo dela, por cima dela, infiltrando-se nela havia uma voz cantada que parecia a de Steven Tyler, do Aerosmith: Esse bebê não é meu mesmo, não é meu, não é meu, você não vai colocar ele nas minhas costas, sua puta de merda.<br />
Ele deu três passos, e foi então que uma buzina de carro começou a soar ritmada em algum lugar ali perto, estragando o ritmo dele, estragando sua concentração, tirando-o de dentro da sua cabeça, fazendo-o olhar em volta: Uón! Uón! Uón! Uón!<br />
Alarme de carro, pensou ele, olhando da entrada do banheiro feminino para a mulher sentada na privada. Da porta para a puta. Começou a cerrar os punhos de indecisão. De repente, apontou para ela com o indicador direito, a unha longa e suja.<br />
— Se você se mexer, está morta, sua piranha — falou para ela, encaminhando-se para a porta.<br />
O banheiro era bem iluminado e o estacionamento do posto também, mas no hall entre as duas alas do prédio estava escuro. Por um instante ele ficou cego, e foi então que algo o atingiu bem no alto das costas, impulsionando-o para a frente em uma corrida atabalhoada que o levou apenas dois passos adiante antes de ele tropeçar em alguma outra coisa — uma perna — e cair estatelado no concreto.<br />
Não houve pausa, não houve hesitação. Uma bota lhe chutou a coxa, congelando o músculo grande dela, e então bem no alto da sua bunda de calça jeans, quase na base das suas costas. Ele começou a se arrastar...<br />
Uma voz acima dele falou:<br />
— Não role de barriga para cima, Lee. Estou com uma chave de roda nas mãos. Continue de barriga para baixo, ou eu vou afundar sua cabeça com ele.<br />
Lee ficou deitado onde estava com as mãos estendidas para a frente, quase se tocando.<br />
— Venha pra cá, Ellen — disse o homem que lhe batera. — Não temos tempo a perder. Saia daí agora.<br />
Fez-se um silêncio. Então a voz da puta, trêmula e pastosa:<br />
— Você machucou ele? Não machuque ele!<br />
— Ele está bem, mas se você não sair agora mesmo, vou machucá-lo feio. Não vou ter escolha. — E, depois de uma pausa: — E a culpa vai ser sua.<br />
Enquanto isso, o alarme do carro ressoava sua ladainha noite adentro: Uón! Uón! Uón! Uón!<br />
Lee começou a virar a cabeça no chão. Doía. Com o que aquele desgraçado tinha batido nele? Foi chave de roda o que ele disse? Não conseguia lembrar.<br />
A bota acertou sua bunda outra vez. Lee gritou e baixou o rosto de volta para o chão.<br />
— Saia daí, moça, ou vou abrir a cabeça dele! Estou sem escolha aqui!<br />
Quando ela falou de novo, estava mais perto. Sua voz vacilava, mas já pendia para a indignação:<br />
— Por que você fez isso? Não precisava fazer isso!<br />
— Eu liguei para a polícia do meu celular — falou o homem parado em cima dele. — Tinha um policial perto do quilômetro 200. Então nós temos dez minutos, talvez um pouco menos. Sr. Lee-Lee, é você ou ela quem está com a chave do carro?<br />
Lee teve que pensar para responder.<br />
— Ela — disse ele por fim. — Ela falou que eu estava bêbado demais pra dirigir.<br />
— Está certo. Ellen, vá lá pra fora, pegue o PT Cruiser e saia daqui. Não pare até chegar a Lake City, e se você tiver nessa cabeça o cérebro que Deus deu a um pato, também não vai voltar quando chegar lá.<br />
— Não vou deixar ele com você! — Agora ela soava bastante irritada. — Não com você carregando essa coisa na mão.<br />
— Ah, vai sim. Vai agora mesmo ou então eu arrebento ele, e feio.<br />
— Seu malvado!<br />
O homem riu, e o som assustou mais Lee do que a voz falada do sujeito.<br />
— Vou contar até trinta. Se você não estiver saindo do posto rumo ao sul até eu acabar, arranco a cabeça dele de cima dos ombros. Vou fazer de conta que ela é uma bola de golfe.<br />
— Você não pode...<br />
— Faça isso, Ellie. Faça isso, querida.<br />
— Você ouviu — disse o homem. — Seu ursão de pelúcia quer que você vá. Se quiser deixá-lo acabar de te cobrir de porrada amanhã à noite, e o bebê também, pouco me importa. Não vou estar por perto amanhã à noite. Mas agora já acabei o que tinha que fazer com você; então coloque esse rabo pra andar, sua idiota.<br />
Essa foi uma ordem que ela entendeu, dada em uma linguagem que ela conhecia, e Lee viu suas pernas nuas e sandálias cruzarem seu campo de visão rebaixado. O homem que o passara para trás começou a contar em voz alta:<br />
— Um, dois, três, quatro...<br />
— Rápido, porra! — gritou Lee, e a bota atingiu seu traseiro, mas de leve daquela vez, dando-lhe uma balançada em vez de um chute. Enquanto isso, Uón! Uón! Uón! noite adentro. — Coloque esse rabo pra andar!<br />
Diante dessas palavras, suas sandálias começaram a correr. Sua sombra correu atrás delas. O homem tinha chegado a vinte quando o motorzinho de máquina de costura do PT Cruiser deu partida, e a trinta quando Lee viu seus faróis traseiros dando ré pelo estacionamento. Lee esperou que o homem começasse a bater e ficou aliviado quando ele não fez isso.<br />
Em seguida, o PT Cruiser pôs-se a descer a pista de saída e o som do motor começou a desaparecer, e então o homem parado em cima dele falou com uma espécie de perplexidade.<br />
— Agora — disse o homem que o passara para trás —, o que eu vou fazer com você?<br />
— Não me machuque — disse Lee. — Não me machuque, moço.<br />
Assim que os faróis traseiros sumiram de vista, Hardin trocou a chave de roda de mão. Suas palmas estavam suadas e ele quase o deixou cair. Isso teria sido ruim. A chave de roda teria feito um barulho alto ao bater no chão, e Lee se teria levantado num piscar de olhos. Ele não era tão grande quanto Dykstra imaginara, mas era perigoso. Já havia provado isso.<br />
Sei, perigoso para mulheres grávidas.<br />
Mas não era assim que devia pensar. Se o velho Lee-Lee se levantasse, aquele se tornaria um jogo totalmente diferente. Conseguia sentir Dykstra tentando voltar, querendo discutir essa e talvez outras questões. Hardin o afastou para longe. Aquela não era a hora ou o lugar para um professor universitário de Inglês.<br />
— Agora, o que eu vou fazer com você? — disse ele, perguntando com uma perplexidade sincera.<br />
— Não me machuque — falou o homem no chão. Ele usava óculos. Essa foi uma grande surpresa. Nem Hardin nem Dykstra tinham de maneira alguma visualizado aquele homem de óculos. — Não me machuque, moço.<br />
— Já sei. — Dykstra teria dito Tive uma ideia. — Tire seus óculos e coloque-os do seu lado.<br />
— Por que...<br />
— Guarde a saliva e obedeça.<br />
Lee, que usava uma Levi’s desbotada e uma camisa de botão (àquela altura puxada de dentro da calça atrás e pendendo sobre o seu traseiro), começou a tirar seus óculos de armação de metal com a mão direita.<br />
— Não, com a outra mão.<br />
— Por quê?<br />
— Não me faça perguntas. Apenas obedeça. Tire os óculos com a mão esquerda.<br />
Lee tirou os óculos estranhamente delicados e os colocou no chão. Hardin pisou neles na mesma hora com o salto de uma das botas. Ouviu-se um pequeno estalo e o estilhaçar delicioso de vidro.<br />
— Por que você fez isso?<br />
— Por que você acha? Está com uma arma ou coisa parecida?<br />
— Não! Meu Deus, não!<br />
E Hardin acreditava nele. Se tivesse, seria uma arma de caça no porta-malas do PT Cruiser. Mas achava que até isso era difícil. Parado diante do banheiro feminino, Dykstra havia imaginado um peão de obra enorme. Aquele cara parecia um contador que malhava três vezes por semana na academia.<br />
— Acho que vou voltar para o meu carro agora — falou Hardin. — Desligar o alarme e dar o fora daqui.<br />
— Sim. Sim, por que você não faz is...<br />
Hardin voltou a colocar o pé sobre a bunda do homem num gesto de advertência, dessa vez balançando-o de um lado para outro de forma um pouco mais brusca.<br />
— Por que você não cala a boca? O que achava que estava fazendo com ela lá dentro, afinal?<br />
— Ensinando uma porra de uma lição para aque...<br />
Hardin o chutou no quadril com quase toda a força que tinha, contendo-se um pouco no último segundo. Mas só um pouco. Lee gritou de dor e medo. Hardin ficou espantado com o que havia acabado de fazer e com a maneira como o fizera, totalmente sem pensar. O que o espantava mais ainda era o fato de querer fazer de novo, e com mais força. Gostou daquele grito de dor e medo, poderia ouvi-lo de novo sem problemas.<br />
Então o quanto ele era diferente de Lee da Latrina, caído ali com a sombra do hall de entrada correndo pelas suas costas em uma diagonal negra como piche? Não muito, ao que parecia. Mas e daí? Aquela era uma pergunta chata, que dava pano demais pra manga. Outra muito mais interessante lhe veio à cabeça. O quão forte ele poderia chutar o velho Lee-Lee na orelha esquerda sem sacrificar a precisão em prol da força? Bem no meio da orelha, pá-pum. Ele também se perguntava que tipo de som aquilo faria. Seu palpite era de que seria um som satisfatório. É claro que ele poderia matar o homem ao fazer isso, mas qual seria a gravidade dessa perda para o mundo? E quem jamais saberia? Ellen? Grande bosta.<br />
— É melhor calar a boca, companheiro — disse Hardin. — Essa seria a melhor maneira de agir no momento. Simplesmente calar a boca. E, quando o policial chegar aqui, você pode contar a ele qualquer merda que quiser.<br />
— Por que você não vai embora? Vá embora e me deixe em paz. Já quebrou meus óculos, não está de bom tamanho?<br />
— Não — falou Hardin com sinceridade. Ele pensou por um segundo. — Quer saber de uma coisa?<br />
Lee não lhe perguntou o que era.<br />
— Vou andar bem lentamente até o meu carro. Se quiser, levante e venha atrás de mim. A gente resolve isso cara a cara.<br />
— Tá, sei! — Lee soltou uma risada lacrimosa. — Não consigo ver porra nenhuma sem meus óculos!<br />
Hardin empurrou o seu para cima sobre o nariz. Não sentia mais vontade de mijar. Que coisa estranha!<br />
— Olhe para você — disse ele. — Olhe só para você.<br />
Lee deve ter escutado alguma coisa na sua voz, pois Hardin notou que ele começava a tremer sob o luar prateado. Porém, não disse nada, o que era provavelmente sensato diante das circunstâncias. E o homem parado em cima dele, que nunca tinha entrado em uma briga na vida antes disso, nem quando cursava o ensino médio, nem durante o fundamental, compreendeu que aquilo tinha de fato acabado. Se Lee tivesse uma arma, talvez tentasse acertá-lo pelas costas enquanto ele estivesse indo embora. Mas, caso contrário, não faria nada. Lee estava... qual era mesmo a palavra?<br />
Subjugado.<br />
O velho Lee-Lee estava subjugado.<br />
Hardin teve um lampejo de inspiração.<br />
— Anotei o número da sua placa — disse ele. — E sei o nome de vocês. O seu e o dela. Estarei de olho no jornal, seu babaca.<br />
Nada vindo de Lee. Ele ficou apenas deitado de barriga para baixo, com seus óculos quebrados cintilando sob o luar.<br />
— Boa noite, babaca — falou Hardin. Ele andou até o estacionamento e saiu guiando dali. Shane em um Jaguar.<br />
Ele se sentiu bem por dez minutos, talvez 15. Tempo bastante para ver se tinha algo de interessante no rádio e então decidir colocar o disco da Lucinda Williams no CD player. Então, de repente, seu estômago estava na garganta, ainda cheio do frango com batatas que tinha comido no Pot o’ Gold.<br />
Ele parou no acostamento, estacionou o Jaguar, começou a sair e então se deu conta de que não havia tempo para aquilo. Apenas se inclinou para fora com o cinto de segurança ainda preso e vomitou no asfalto ao lado da porta do motorista. Seus dentes batiam uns nos outros.<br />
Faróis surgiram e deslizaram na direção dele. Eles desaceleraram. Dykstra primeiro achou que fosse um policial, finalmente um policial. Eles sempre apareciam quando você não precisava, quando não os queria. Seu segundo palpite — uma certeza fria, na verdade — era que se tratava do PT Cruiser, Ellen no volante, Lee-Lee no banco do carona, agora ele próprio com uma chave de roda no colo.<br />
Porém era apenas um Dodge velho cheio de moleques. Um deles — um garoto com cara de idiota e provavelmente ruivo — botou o rosto cheio de espinhas, do tamanho de uma lua, para fora da janela e gritou:<br />
— Vomita no péééé! — Isso foi seguido por gargalhadas, e o carro acelerou estrada afora.<br />
Dykstra fechou a porta do motorista, recostou a cabeça, fechou os olhos e esperou a tremedeira diminuir. Depois de algum tempo, ela diminuiu e seu estômago sossegou. Ele percebeu que estava com vontade de mijar novamente e interpretou isso como um bom sinal.<br />
Então pensou na vontade que teve de chutar Lee-Lee na orelha — com quanta força? que som faria? — e tentou forçar sua mente em outra direção. Pensar sobre como quis fazer aquilo o deixou enjoado de novo.<br />
Sua mente (que em geral o obedecia) se voltou para o comandante daquela base de mísseis lá em Lonesome Crow, Dakota do Norte (ou talvez fosse em Dead Wolf, Montana). O que estava enlouquecendo em segredo. Vendo terroristas atrás de cada moita. Empilhando panfletos mal escritos no armário, passando madrugadas a fio diante da tela do computador, explorando os becos paranoicos da internet.<br />
E talvez o Cão estivesse a caminho da Califórnia para fazer um serviço... de carro em vez de avião porque está com algumas armas especiais no porta-malas do seu Plymouth Road Runner... e então o carro enguiça...<br />
Certo. Certo, aquilo era bom. Ou poderia ficar, se burilasse mais um pouco. E ele ainda tinha achado não haver lugar para o seu matador na imensidão vazia do coração da América. Mas isso era pensar pequeno, não é mesmo? Porque, dependendo da situação, qualquer um poderia acabar em qualquer lugar, fazendo qualquer coisa.<br />
A tremedeira passou. Dykstra voltou a ligar o motor do Jag e pegou a estrada. Em Lake City, encontrou um posto de gasolina com loja de conveniência 24 horas e parou nele para esvaziar a bexiga e encher o tanque (depois de correr os olhos pelo posto e pelas quatro bombas de gasolina em busca do PT Cruiser e não vê-lo). Então dirigiu o resto do caminho, com seus pensamentos de Rick Hardin na cabeça, e entrou na sua casa de John Dykstra em frente ao canal. Ele sempre ligava o alarme contra ladrões antes de sair — era a coisa mais prudente a fazer —, e o desligou antes de acioná-lo novamente para o resto da noite.Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-39500790507404916232015-11-11T22:57:00.001-03:002015-11-11T22:57:11.880-03:00Uivos da madrugada - <br />
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Há muito sangue no chão e as sirenes policiais estão ecoando à distância. Moradores saem de suas devidas residências, atônitos, chocados.<br />
Um carro se encontra em chamas na rua 7 no cruzamento com a rua 9, mas logicamente o sangue não vêm de lá, mas sim dos pedaços de carne que voaram e caíram no chão debatendo-se como se fosse uma carne de anfíbio que acabara de entrar no fogo com óleo quente.<br />
Detetive McFaless já estara com um pé fora do departamento de polícia de Helmirtis, mas como todo bom policial ele não pode sair até resolver alguns assuntos pendentes em seu gabinete, não que fossem uma obrigação com o governo e ele sabia bem disso, mas ele realmente queria fazê-lo pois senão o fizesse aqueles assuntos iam ser empurrados para calouros (apelido de novos policiais que se agregam a academia, mas que somente estão lá pelo o dinheiro, nada mais e nada menos), portanto eles também não iriam atrás de resolver...<br />
- Esses jovens não sabem da parte boa de ser policial - ele pensa, e olha pra um deles que chegavam perto do corpo e fingia anotar algo em um bloco de notas, McFaless observara bem para a caneta e conseguia ver que não estava aberta, ele fingia anotar algo com a tampa. Então continua. - Não se dá ao trabalho ao menos de tirar a tampa da caneta e fazer uma boa cena de mentira. Como eu disse... Eles não sabem.<br />
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Perto dos seus cinquenta e fazendo serviços como detetive há quase vinte e cinco ele sabia realmente o que procurar na cidade. Dentro de seu sobretudo marrom que na madrugada próxima das 2h e 30mim realmente parecia preto-tosco, ele estara fitando todos da rua afim de encontrar algum "ladrãozinho-barato" que depois de cometer o crime permanecia camuflado nas redondezas somente para "não chamar a atenção", o que na mente do Det.Hetter MacFaless era uma bobagem, isso não acontecia com ele no comando, pois ele sabia bem como os ladrões fazia, os quase vinte e cinco anos foram cruéis com ele mas ainda sim o fizeram esperto.<br />
Ele vai fazendo uma lista mentalmente de todos que ele reconhecia e de outros rostos que ele considerava simples demais ou estranho demais.<br />
- O casal da casa 97, Sr e Sra. Wool. A senhora de idade da casa 21, mãe do lenhador que tinha uma loja de penhores na cidade pela qual só aparece para recolher os lucros. Betty Simpson uma prostituta local que se vestia bem e morava em uma casa que um ovo era mais confortável. Casa... - Ele tenta se lembrar com dois dedos na cabeça, coçando as sobrancelhas. - 56. Fim da rua, ou início se ele você viesse do condado de Liberfort e optasse por obter rotas rápidas ao centro da cidade, era totalmente discutível que passasse pela rua 7, e analisando a situação. aquelas pessoas daquele carro estavam nessa trajetória - Ele diz chutando a placa que também voara na explosão e que viera parar próxima ao acostamento onde ele estava de pé. - Como eu disse. - 0987 - CONDADO LIBERFORT, a placa branca dizia. - Ele buscara algo para certificar-se de que não eram da polícia também, porquê caso fossem... então o assassino devia ser um mafioso que devia ter ficado puto da vida com alguns cassinos ou ponto de drogas fechados , trazendo assim prejuízo para seus bolsos. Mas a placa dizia por si só, não era tudo mas era o suficiente para dizer que o dono do carro não era nenhum policial, as placas da policia contém um adereço especial do que nos outros carros, embaixo da localização fica a sigla do departamento pelo qual ele pertence, escrito de forma desapercebida para fazer os carros se camuflarem no meio dos outros.<br />
Ele prossegue com sua analise mental:<br />
- Dianna Thomas, viúva e mãe de quatro garotos, uma mulher excepcional que você se enganaria se não a conhecesse e falasse que ela estava na casa dos vinte, quando na verdade está na casa dos quarenta ou cinquenta como o detetive. E os Foster, apenas um casal simples que zela pela rua que mora, e não tem mais nada a detalhar. O resto eram rostos comuns mas não demais. Ele tenta buscar mais afundo com os olhos abaixo do chapéu social feltro marrom também.<br />
Ele visualiza Vincent Cury. Um trombadinha local que sempre tentava dar uma de esperto. Ele está de pé ao lado de um casal e seus dois filhos, como se fizesse parte da família. Todos estão de um lado da pista ao outro, como não havia fluxo de carros por ali na madrugada, então não havia problemas. Então ele anda por cima da calçada e vai desviando por entre todos, e vai andando declinavelmente fazendo um percurso circular afim de pegá-lo por trás.<br />
Ele se aproxima e consegue ouvir no meio da multidão fervorosa que mantinham-se comunicando-se entre si, sussurros vindos de Vincent, era como se o cara tivesse uma doença mental. Sua testa soava forte, e cada gota parecia um pouco de alma que iria embora do sujeito. O detetive põe a mão em seu ombro. Vincent torna a estar mais nervoso ainda, e agora seus joelhos tremem, desequilibrando-se.<br />
- Vincent, não me diga que tem algo a ver com isso ou que presenciou porquê de toda forma você sempre está "na hora errada e no lugar errado" - ele diz lembrando do que ele sempre costumava dizer nos interrogatórios, fazendo aspas com os dedos mostrando ênfase. - Dessa vez eu juro que saio da polícia com você segurando um decreto de prisão perpétua. - ele diz apertando seu ombro e pressionando cada vez mais forte, sucessivamente a cada palavra dita.<br />
- E-eu? - sua voz trêmula transforma sua garganta em um tubo com uma bola de basquete presa dentro. - Ma-ma-mas eu vi.<br />
Det. MacFaless já sabia que sim, apenas tinha que fazer vista-grossa para não perder a moral em cima de trombadinhas como Vincent. Mesmo agora quando seu corpo estará quase 1/2 de sair do departamento.<br />
- O que necessariamente você v... - Ele diz interrompido pela sirene do carro de bombeiros. E logo atrás o rabecão local. - Bem venha comigo. - ele o puxa pela gola da camiseta branca. Vincent o segue desajeitadamente.<br />
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No canto da pista de outra rua, a 9 , longe de todos aquele rostos assustados, está MacFaless com uma mão no ombro de Cury. Olhando diretamente nos seus olhos, mesmo Vincent Cury não conseguir retribuir por causa da sombra que a luz do poste criava em seu chapéu ocultando seus olhos, ele olhava para onde achara que estava os olhos.<br />
- Então filho... Comece.<br />
Vincent desvia o olhar. Outro carro dos bombeiros passa com as sirenes no máximo, e dobra na rua 7. - Talvez ambos os moradores tivessem ligado para o corpo de bombeiros e então mandaram dois carros ao mesmo local achando que era incêndios distintos. - MacFaless pensa, e então aperta ainda mais o ombro do cara, fazendo-o fazer uma careta.<br />
Com seus olhares ainda no final da rua além dos carros, de forma nostálgica ele começa.<br />
- Eu estava procurando o que fazer, sabe? Sem nenhum um puto no bolso o sujeito pira. - ele diz levando as mãos a cabeça de forma à fazer gestos simbolizando loucura. - Todos estavam nas suas casas e os poucos que estavam do lado de fora, ao me ver, entraram rapidamente. Eu sabia que era provável que eu voltasse pra casa com fome, ou talvez sóbrio, um ou outro parece cruel, saca? - MacFaless apenas meneia a cabeça que sim mas pensa: cruel é um cara trabalhar o mês inteiro e você vir e o roubar. Ele gesticula um movimento com a cabeça para ele continuar.<br />
- Eu já estava perto da rua 6, perto da casa daquela véia maluca que estava me encarando com o telefone em mãos, provavelmente ligando para o filho caipira vir me pegar. - MacFaless observa-o e pensa que por enquanto ainda faz sentido o que ele fala, a casa da Sra. Melbourne realmente é próxima ao cruzamento da 7 com a 6.<br />
Vincent se interrompe e tosse, não uma de quem está engasgado, mas sim de quem anunciava uma gripe cheia ou então ele podia preparar o caixão por causa de uma possível tuberculose.<br />
- Então eu percebo um carro me seguindo, é estranho, por quê eu não o percebi? Aquela rua me conhece você me conhece, eu só roubo quando alguém dá mole... - Det. MacFaless complementa:<br />
- Por quê quem arrisca não petisca, algo assim.<br />
- Sim, você pegou. - Ele pisca para aquela sombra acima da boca embarbada, onde ele acha que os olhos estão. Então continua:<br />
- Então levando em consideração as bebidas e um pouco de maconha que estou devendo ao Sr. B - MacFaless lembra desse apelido, Ibrahim Colvitck, o traficante do outro bairro que sempre que fora pego alegava problemas mentais e era solto por conta do juiz acreditar.<br />
- Aquele carro devia ser ele tentando me pegar, mas eu me lembro de dizer que eu ia pagar na outra semana. Ou eu estava muito doido? - Ele, com um olhar de questionação, observa o poste e alguns mosquitos rodeando a luz, dividindo-a.<br />
- Não... eu acho que eu disse sim.<br />
- Diga o que eu quero ouvir, Vincent. - Ele solta as mãos dos ombros dele e agora está de braços cruzados encostado no poste, o qual quem estivesse vindo de longe achara que ele fizesse parte dele.<br />
Vincent ajeita a camisa e começa a olhar para os lados, apavorado, suando litros em poucos segundos novamente.<br />
- Porra... - Ele deixa sair e percebe que de alguma forma o detetive o olhou feio. - Ele vai me pegar...<br />
- Quem vai te pegar Vincent? Me dê um nome ou eu te prendo como cúmplice e toda aquela merda vai para sua ficha.<br />
- Não senhorzinho.... eu estou cooperando. - Ele emburrece o rosto, como um garoto de doze anos faz ao abrir uma caixa de presente no seu aniversário e ver que não ganhou nenhum videogame e sim peças de roupas. - Eu digo, sob uma condição. E aí?<br />
Hetter MacFaless se perguntou quando ele começou a ter opiniões próprias ou cláusulas nas palavras, a ponto de querer negociar condições.<br />
- Bem... eu não negocio com bandido em hipótese alguma, principalmente com você, mas prometo livra-lo de algumas coisas sim. - Ele descruza os braços e aponta para Vincent. - Se por sua vez me ajudar, certo?<br />
Vincent parece insatisfeito e se lembra do que sua mãe disse, sua mãe bêbada: <i><span style="color: #cccccc;">Ou vai, ou racha.</span></i><br />
Não era bem aquilo que ele queria para si no momento mas era melhor do que ser fodido por trás sem ter culpa no cartório.<br />
- Certo! - Ele pisca tentando parecer amigável.<br />
- Então. Continue. - Sua mãos balançam desajeitadamente por causa da manga colada no sobretudo. (ele percebeu que estava um pouco acima do peso.)<br />
- Eu parei e percebi que eles também pararam. Fiquei de pé no poste e inacreditavelmente Deus enviou do céu um cigarro, eu pisei em um e me abaixei para pegar, atrás da lata de lixo, como eu sempre ando com meu isqueiro eu acendi. - Ele o tira do bolso e mostra para MacFaless, o acendendo, mostrando que ainda estava em funcionamento. - Daí eu acendi ainda abaixado e me levantei dando a primeira tragada, notei uma arma para fora do carro e me escondi atrás lata de lixo de novo, acho que tive uma recaída.<br />
- Uma recaída? - Ele lembrou de como Vincent era, e aparentemente as contradições tinham começado.<br />
- Eu tinha dado uns tapinhas antes, acho que já posso dizer isso para você não é? - Ele cospe no chão ao lado do próprio pé. - Afinal, já não é segredo para ninguém.<br />
- Realmente não é.<br />
Vincent continua, ainda brincando com a roda acionadora do isqueiro. O que faz Hetter se perguntar o quão legal seria se uma fagulha caísse em sua camisa branca e começasse a pegar fogo, ele não o ajudaria, era o castigo por seu mau.<br />
- Eu então no chão comecei a ligar o meu estado "<i>Foda-se geral"</i>, então me levantei e comecei a dar o dedo, era como estar no piloto automático de seu próprio corpo. É reconfortante.<br />
- Talvez seja, talvez não. Mas isso ainda não vem ao caso.<br />
- Ainda não é... - Ele diz acendendo uma chama e observando o detetive por entre ela. - Ainda...<br />
- Continue. - A chama se apaga no vento forte.<br />
- Então eu naquele momento desejei aos infernos que aquele carro sumisse, saca? eu não queria morrer, afinal de contas quem quer? Eu sabia que fiz errado e que estavam me perseguindo, podia não ser mas quem arrisca... - MacFaless o interrompe com a palma da mão esticada, e balançando como um sinal de "<span style="color: #666666;"><i>Já chega dessa frase por hoje".</i></span><br />
- Pois é. Então uma sombra reacendeu do bueiro atrás do carro, posso ser um drogado mais ainda tenho a visão boa. Que engraçado. Ainda.<br />
Hetter sai da penumbra do poste, saindo de sua camuflagem ele dá alguns passos até Vincent. Os gritos do outro lado da rua ecoam, talvez essa tenha sido a hora que começavam a tirar os restos mortais do carro e a população, sanguinária talvez, começasse a enlouquecer como em shows de rock, e também alguns começavam vômitos ou desmaios ao ver as cenas, como no mesmo tipo de show.<br />
- Eu não vim até aqui perder meu tempo com você, Vincent. Se tentar me fazer de bobo eu também fodo você, e o faço com força.<br />
- Não estou brincando... Por Deus eu não estou Hetter. Eu sei o que vi. - Agora o suor começava a cair de verdade pelo rosto.<br />
- O que você usou Vincent?<br />
- Apenas maconha senhor. Apenas isso.<br />
- Tem certeza?<br />
Mas antes que ele pudesse responder, suas pernas babeiam, e aquela tela de água encardida cai no chão, como se uma força espiritual o tivesse derrubado. Hetter sequencia alguns tapas no seu rosto. Mas então ele acorda e fala fragilmente com uma voz entorpecida.<br />
- Só isso, eu juro. vá até... o... centro.<br />
- O que fazer no centro.<br />
Seus olhos já estão quase fechados, e ele sabia que duraria para reabri-los novamente. Então ele solta algo baixo demais, que ele acha que conseguiu ouvir.<br />
- Eva, sabe... tudo sobre... iss.. - Seus olhos fecham.<br />
Hetter bate no seu rosto levemente, apenas alguns tapinhas inúteis. Ele o deixou no chão. A palma de sua mão abre e de dentro rola um isqueiro para o chão. Hetter o pega.<br />
Acende um charuto e anda pela rua 9 até voltar para a rua 7.<br />
Como ele pensou...<br />
Os legistas estavam enrolando os corpos em um papel brilhante, quando a morte se dava por queimaduras assim, esse era o procedimento padrão.<br />
Um dos legistas levanta o braço do chão para juntar a um dos corpos.<br />
<i style="color: #999999;">- Já é cinco para as três da manhã</i> - Ele pensa olhando para o relógio abaixo do sobretudo.<br />
<span style="color: #444444;"><i>E a multidão vai a loucura.</i></span><br />
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<br />
Eva Mensfield, uma mulher tão drogada quanto Vincent Cury, a diferença é que ao menos Vincent tem suas horas sóbrias e ela era uma viagem cerebral etérea ao infinito.<br />
Ele deixa aquela cena aos calouros e aprendizes de detetives. Afinal eles são como cachorros com dor de barriga, apenas procurando um lugar para defecar em cima e enquanto eles não acham (o que não durará tanto tempo), Hetter deve resolver esse caso por si só.<br />
Ele olha o relógio de novo.<br />
- Como as horas passam rápido. São três e vinte e não deu tempo para fumar um charuto inteiro. - Ele pensa andando por entre todos novamente mas agora em direção a rua 6 para ir andando "cortando" e chegar mais rapidamente ao centro. Uma taurus.40 estava em um dos bolsos internos dentro do sobretudo marrom, e presa ao cinto na parte de trás uma eagle que não fora presente do departamento (ele comprou à parte), esta a qual ele somente usaria em situações extremas.<br />
Andando com as mãos nos bolsos laterais do sobretudo e com um passo firme ele imagina que se não estivesse enferrujado ou com mal de alzheimer adiantado, então:<br />
Eva Mensfield poderia ser encontrada num lugar que ela chamava de "paraíso-cósmico" onde ela fingia ler a mão dos outros em troca de algumas moedas, o que para ele essa bobagem de misticismo é apenas um rótulo politicamente correto para dizer que você é um drogado com sérios problemas mentais.<br />
Hetter já se encontrava na rua 12 e indo em direção ao centro, poucos quarteirões para chegar aos arredores dos portões do"paraíso-cósmico", a rua estava solitária e o vento uivava. O sobretudo balançava, então ele pára. Está sentindo uma velha sensação de infância - aquela de estar andando sozinho e sentir-se ser observado. Ele olha por cima do próprio olho pelo canto dos olhos, não havia nada ali, então ele se vira por completo.<br />
A rua estava deserta e alguns gatos estavam correndo atrás de ratos, eles cruzavam a rua correndo sem fazer nenhum barulho e então se perdia de vista na penumbra em alguns pontos escuros da cidade, Hetter MacFaless vê um gato preto com um olho de cada cor, e no canto de sua boca há um pequeno rabo, ele encara Hetter em sinal de defesa vendo o homem de marrom como uma possível ameaça a seu alimento. Seus pêlos se arrepiam e Hetter consegue ver, ele cospe o cadáver morto do rato no chão, desmembrado, e corre em disparada ao outro lado da pista se perdendo na escuridão.<br />
Ele fica parado observando a escuridão e se perguntando o que mais há escondido por lá.<br />
Fitas a boca do rato aberta, e então volta ao seu caminho.<br />
E o vento uiva.<br />
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O detetive Hetter MacFaless observa do lado de fora o fluxo de pessoas saindo de dentro do atual intitulado "Paraíso-Cósmico", sempre olhando suas mãos e os que saim em dupla conversando sobre algo que ouviu sobre seu próprio futuro. <span style="color: #999999; font-style: italic;">Baboseira de misticismo.</span> - Ele torna a lembrar. Então entra.<br />
No cartaz há uma foto de uma mulher de cabelos loiros acentuados por uma cor branca de velhice, e embaixo ao que desrespeitava essa mulher dizia: "Mãe Eva, a primeira e única no mundo. Vá em frente e descubra o seu futuro." E logo mais abaixo há um painel onde letras estavam emolduradas dentro de luzes roxas, "<i style="color: #666666;">Apenas alimentando aquele misticismo bobo"</i> ele pensa, e no painel dizia:<br />
"<strike>E</strike>u <strike>S</strike>ei <strike>Q</strike>ue <strike>H</strike>á <strike>A</strike>lgo <strike>Q</strike>ue <strike>V</strike>ocê <strike>D</strike>eseja <strike>S</strike>aber, só precisa perguntar."<br />
As luzes se apagam e reacendem, programadas para fazer isso de minutos em minutos.<br />
Do lado de fora ele observa os drogados do outro lado, apenas olhando torto para ele e escondendo algumas coisas em seus bolsos ou sacolas, alguns até jogavam (algo que ele sabia bem do que se tratava) pelo bueiro. Era bom saber que um policial ainda era temido.<br />
Eles se levantam e esquecem alguns calçados pelo chão. Então correm para outro lado.<br />
E Hetter com as mãos nos bolsos apenas entra.<br />
<br />
- Se não é o bom homem do governo, sei que está armado, mas por favor não use esses instrumentos mortais aqui, eu peço por favor. - Aquela voz feminina de quem era uma fumante veterana e que por motivos não-tão-convencionais havia parado, diz.<br />
Ele olha para o próprio corpo e então saí da própria surpresa.<br />
- Você me conhece e sabe que sempre ando armado, então não venha com esse papo.<br />
- E eu também sei que você anda com outra escondida aí, eu digo, além da arma do governo?<br />
Hetter fica sem palavras por alguns segundos, mas se lembra de técnicas mágicas que foram ensinadas em um programa do canal da tv por assinatura que ele raramente conseguia assistir todo sem dormir.<br />
- Você errou querida.<br />
- Eu sei que sim. - ela responde. - Quando vai me dar dinheiro para que eu possa responder suas perguntas? - Ela diz. A mesa se abre no meio e outra surge do chão. Revelando por sua vez uma bola de cristal magnetizada, com vários raios elétricos passando dentro.<br />
- Primeiro responda. Depois o dinheiro. - Ele faz um som com o isqueiro de Vincent dentro do próprio bolso, e soa como se fosse o gatilho da arma.<br />
- Por favor, nã... - Ele a interrompe:<br />
- Então eu posso começar?<br />
- Sim. - Ela diz calmamente. - <span style="color: #666666;"><i>Isso ela não pôde prever, ótimo, é bom estar certo.</i> -</span> ele pensa consigo.<br />
- Vincent me disse que você sabe de algumas coisas estranhas que estão acontecendo por aqui. - Ele lembra da rotina que sempre segue: Para seguir o que um trombadinha fala, para ele estar certo de algo, então aquilo devia ter acontecido mais de uma vez. Então valerá a pena procurar. Ele se recorda do desaparecimento e reaparição do casal Morrigane da rua Brigde para a última rua que faz fronteira com a cidade vizinha, a rua Twin-sands, primeiro curtindo dentro do carro próximo à praia, e depois desmembrados próximo ao bueiro (era como se alguém estivesse filtrando o sangue, limpando a sujeira toda), apenas... lá.<br />
- Você diz do casal que sumiu há algumas semanas?<br />
- Também, eu acho.<br />
- Você não sabe não é? - Ela diz se inclinando na direção dele.<br />
- Sim, sei mas eu somente vim até aqui por quero sua assinatura de testemunha... - Ele diz e ri ironicamente.<br />
- A escuridão foi revelada. O que estava quieto agora está perturbado. Há um monstro na cidade, e aqueles que andam sozinhos com desejos imundos em suas mentes são caçados e limpados do mundo, para sempre.<br />
MacFaless se pergunta que tipo de merda ele se meteu, não por quê achava que aquilo de alguma forma estava certo, mas sim por quê eram dois drogados falando a mesma coisa. O que parcialmente o faz sentir-se bobo.<br />
Ele dá as costas para Eva. Caminha em direção a porta perdido em pensamentos de raciocínios lógicos. Então ele a ouve.<br />
- O próximo desta noite é você Hetter Mac-Faless! - Ela diz apontando para ele. E Hetter apenas acompanha com o canto dos olhos e a mão girando a maçaneta lentamente. - Onde estão minhas moedas. Ela deixa passar algo.<br />
- Você me responderia, e então eu te pagaria, como você apenas continuou essa fantasia. Não tem pagamento.<br />
- Esse seu jeito mesquinho condenou você. Apenas por quê acha que é detetive pode tudo?<br />
- Eu posso tudo. - ele sussurra e sai da sala.<br />
Atrás dele Eva entra em convulsão em silêncio.<br />
Ele não vê e não percebe, apenas sai pensando:<br />
-<span style="color: #666666;"><i> Eu sei que posso.</i></span><br />
<span style="color: #666666;"><i><br /></i></span>
<span style="color: #666666;"><i><br /></i></span>
<span style="color: #666666;"><i><br /></i></span>
Ele volta para a sua casa, certo de que iria deixar isso para os calouros, afinal não tinha nada de produtivo. Hetter cruza de volta para a rua 12 e ela está novamente e estranhamente deserta. Onde o rato se encontrava agora havia um gato e atrás dele, quase oculto, o rato comendo um glóbulo amarelo e observando MacFaless, olhares famintos. O gato ainda estara vivo e miava em um tom que não se parecia nada com um miado, era algo gutural, era um som alto mas ninguém se atrevia a olhar pelas janelas o que fazia ele pensar que todos estavam em seus décimos sonhos.<br />
Hetter anda através da calçada e pensa "<span style="color: #666666;"><i>Mas que Mer#$ foi essa que acabei de ver?"</i></span><br />
Mas seus pensamentos são novamente apagados por um raciocínio lógico que preservara desde que entrou para a polícia.<br />
- O casal Morrigane já tinham passagens por posse de drogas, o que me faz pensar que tudo o que aconteceu foi uma vingança do crime organizado. - É quase que uma certeza, ele sabe.<br />
- E tudo o que deve ter acontecido naquele carro, possivelmente, foi o mesmo. E mesmo se não for? quem se importa? eu vou sair antes de enlouquecer... como minha avó falava: <span style="color: #666666;"><i>Antes tarde do que nunca.</i></span><br />
Então anda pelo umbral da cidade. Cruzando a rua 6, deserta, e entrando nos trilhos novamente na rua 7. Também está deserta. Nenhum pio da cidade, e ele olha para o relógio mas este também parou de funcionar, fechando o horário 3h40mim.<br />
Não parecia a rua que um acidente havia acontecido, devia haver ao menos uma janela com as luzes acessas. Mas não há. Não há nada. Ninguém no meio da rua abraçado ou chorando, não há ninguém sentado nas fachadas ou luzes emitidas da tv. Apenas o nada.<br />
Ele pára e observa o rastro no chão. Ainda há um braço lá. O que o faz pensar no que realmente estava acontecendo. Hetter MacFaless anda pela calçada e pisa em algo metálico se abaixa e:<br />
- Put$ Merd#! - Ele sussurra. Era a placa do carro. Aquilo tudo devia ter sumido dali quando a perícia forense chegou.<br />
<br />
Ele olha para trás, não em direção a rua 9 mas de onde ele viera, e há um carro lá. Não há sinal de vida lá dentro, mesmo ele se sentindo mal como se alguém tivesse tomando sua alma. Sua barriga embrulha e então o carro acelera lentamente, uns 2km/h talvez.<br />
Seu passo acelera e o batimento começava a martelar. Sua testa está pingando de suor, e tudo aquilo estava acontecendo sem ele sequer dar conta. "<i style="color: #666666;">É como estar no piloto automático de seu próprio corpo. É reconfortante" </i>- Ele vê Vincent de pé dentro de sua mente, dizendo-lhe.<br />
Ele vira para dobrar na nove e o tempo começara a acelerar.<br />
Rua 9 então a 1, depois a 4, então de volta a 7 e novamente virando a 9, e isso continua em um loop infinito, até ele cair no chão. Seu chapéu gira lentamente em direção ao bueiro e se perde lá dentro.<br />
Os gatos saem da área escura. Não somente um ou dois, nem mesmo dezenas, mas milhares. Todos miando em um vocal gutural. Todos sem seus olhos. Vincent está lá no meio sendo devorado pela escuridão.<br />
Os ratos também estão lá, são poucos em comparação com os gatos. A cidade estava silenciosa.<br />
Hetter é levado para o meio e aquilo provoca um arrepio que era como se alguém tivesse injetado gelo em seus ossos. O gelo no começo da espinha passando até o final.<br />
Lá na escuridão você conseguiria ouvir um som de mastigação. E também um som de ossos palitando-se por entre os dentes. Sem nenhum grito ou berro de pavor.<br />
<br />
A cidade naquela madrugada estava silenciosa.<br />
<br />
<br />
Todos estavam se pondo a voltar para a escuridão e se ocultar durante toda a noite, e por quanto tempo? bem eu não sei.<br />
<br />
Mas você consegue ouvir os gatos brigando por ratos ou os mosquitos batalhando por um lugar na luz, eles também sentem medo.<br />
<br />
Um som de sacos de ossos ainda é ouvido por lá como se fosse um tipo de troféu.<br />
<br />
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E o vento...<br />
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<strike><span style="color: #cc0000; font-family: Times, Times New Roman, serif; font-size: x-large;">Continua a uivar </span></strike></h2>
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<span style="color: #351c75;"><strike>Boa noite - </strike></span></h3>
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Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-61963113457020461052015-11-09T18:52:00.003-03:002015-11-09T18:52:54.746-03:00Eu sou o umbral da porta - Stephen king, Short-Story - Sombras da noite - "Night Shift"<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Richard e eu estávamos sentados em minha varanda, olhando por cima das dunas
para o golfo. A fumaça de seu charuto espalhava-se preguiçosamente no ar, mantendo os
mosquitos a uma distância segura. A água era um frio azul-turquesa, o céu um azul mais
profundo, mais real. Uma combinação agradável.
― Você é o umbral da porta ― repetiu Richard, pensativo. ―― Tem certeza de
que matou o menino? De que não foi um sonho?
― Não foi sonho. E também não o matei ― já lhe disse isto. Eles mataram. Eu sou
o umbral da porta.
Richard suspirou:
― Você o enterrou?
― Sim.
― Lembra-se do local?
― Sim.
Enfiei os dedos no bolso do peito e peguei um cigarro. Minhas mãos eram
desajeitadas em seu invólucro de bandagens. Coçavam abominavelmente.
― Se quiser ver, tem que pegar o buggy. Não pode rolar isto indiquei-lhe minha
cadeira de rodas ― na areia.
O buggy de Richard era um Volkswagen `59 com pneus enormes. Ele o usava para
apanhar madeira trazida pela maré. Desde que se aposentara de seu negócio imobiliário em
Maryland, morava em Key Caroline e fazia esculturas em troncos trazidos pelo mar, que
vendia a preços vergonhosos aos turistas de inverno.
Tirou uma baforada do charuto e olhou para o golfo.
― Ainda não. Quer me contar mais uma vez?
Suspirei e tentei acender o cigarro. Ele me tirou os fósforos da mão e acendeu para
mim.
Puxei duas tragadas, inalando profundamente a fumaça. A coceira em meus dedos
era de enlouquecer.
― Muito bem -declarei. ― A noite passada, às sete horas, eu estava aqui, olhando
para o golfo e fumando, exatamente como agora, e...
― Recue um pouco mais no tempo ― pediu ele.
― Recuar mais?
― Conte-me a respeito do vôo.
Sacudi a cabeça.
― Richard, já repetimos isso muitas vezes. Não há nada...
O rosto vincado e enrugado era tão enigmático quanto uma de suas esculturas.
― Talvez você se recorde ― disse ele. ― Agora, talvez se lembre.
― Você acha?
― É possível. E quando terminar, podemos procurar a sepultura.
― A sepultura ― repeti.
A palavra tinha um som oco, horrível, mais sombrio que qualquer coisa, ainda mais
sombrio que todo aquele oceano através do qual Cory e eu velejáramos cinco anos antes.
Escuro, escuro, escuro.
Por baixo das bandagens, meus olhos fitaram cegamente a escuridão que os
curativos impunham. Coçavam.
Cory e eu fomos colocados em órbita pelo Saturno 16, que todos os comentaristas
chamavam de Foguete Empire State Building. Era um enorme animal, realmente. Fazia o
velho Saturno 1-B parecer um brinquedo e era lançado de um bunker de concreto com
sessenta metros de profundidade ― tinha que ser, para evitar que arrasasse totalmente Cabo
Kennedy.
Fizemos órbitas em torno da Terra, verificando todos os nossos sistemas, e depois
acionamos os propulsores. A caminho de Vênus. Deixamos um Senado em polvorosa,
discutindo um projeto de orçamento para posteriores explorações do espaço e um bando de
pessoas da NASA rezando para que encontrássemos alguma coisa ― qualquer coisa.
― Não interessa o quê ― gostava de dizer Don Lovinger, o menino prodígio
particular do Projeto Zeus, quando tomávamos umas e outras. Vocês têm todos os
aparelhos, além de cinco câmeras, especiais de TV e um lindo telescópio com zilhões e
zilhões de lentes e filtros. Encontrem um pouco de ouro ou de platina. Ainda melhor,
encontrem alguns adoráveis homenzinhos azuis para nós estudarmos, usarmos e nos
sentirmos superiores.
Qualquer coisa. Até mesmo o fantasma de Howdy Doody já seria um começo.
Cory e eu estávamos ansiosos por atender, se possível. Nada funcionara em favor do
programa de profunda exploração espacial. De Borman, Anders e Lovell, que entraram em
órbita ao redor da Lua em `68 e encontraram um mundo vazio e ameaçador que parecia
areia suja na praia, a Markhan e Jacks, que pousaram em Marte onze anos depois para
encontrarem uma vastidão árida de areia congelada e uns poucos liquens raquíticos, o
programa de profunda exploração espacial fora um dispendioso fracasso. E houve baixas:
Pedersen e Lederen, subitamente lançados em órbita eterna em tomo do Sol quando tudo
deixou de funcionar no antepenúltimo vôo Apolo. John Davis, cujo pequeno observatório
espacial foi perfurado por um meteoróide em um acidente cujas possibilidades eram uma
em mil. Não, o programa espacial não ia nada bem. Ao que tudo indicava, a órbita de Vênus
seria nossa última oportunidade de dizer: "Viram como tínhamos razão? "
Dezesseis dias de viagem de ida ― comemos um bocado de alimentos
concentrados, jogamos um bocado de buraco, trocamos um resfriado para lá e para cá ― e
sob o ponto de vista técnico foi uma sopa. Perdemos um conversor de umidade do ar no
terceiro dia, ligamos o sobressalente e isto foi tudo, excetuando alguns detalhes sem
importância, até a reentrada da atmosfera terrestre. Vimos Vênus crescer de uma estrela a
uma lua em quarto-crescente e, finalmente, uma bola de cristal leitoso, trocamos piadas com
o Controle Huntsville, escutamos fitas de Wagner e dos Beatles, cuidamos de experimentos
automatizados que tratavam de tudo, desde medidas do vento solar até navegação no
espaço. Efetuamos duas correções do curso, ambas infinitesimais, e no nono dia Cory saiu
da nave para bater no DESA escamoteável até que este resolveu funcionar. Nada de
extraordinário até que...
― DESA ― repetiu Richard. ― O que é isso?
― Um experimento que não deu certo. Jargão da NASA para designara Deep Space
Antenna, uma antena para uso no espaço longínquo ― irradiávamos impulsos de alta
freqüência para quem estivesse interessado em escutar-nos ― respondi, esfregando os dedos
nas calças, sem resultado; na verdade, a coceira deu a impressão de piorar. ― É a mesma
idéia do radiotelescópio na West Virginia ― você sabe, o que escuta as estrelas.
Só que em vez de escutarmos nós transmitíamos, primordialmente para os planetas
mais afastados: Júpiter, Saturno, Urano. Se existe alguma vida inteligente por lá, devia estar
cochilando.
― Só Cory saiu
― Sim. E se trouxe consigo alguma praga interestelar, a telemetria não revelou.
― Mesmo assim...
― Não interessa ― interrompi, irritado. ― Só o aqui e agora importam. Mataram o
menino ontem à noite, Richard. Não foi agradável ver... ou sentir. A cabeça dele... explodiu
― como se alguém lhe tivesse retirado o cérebro e colocado uma granada de mão no
interior do crânio.
― Termine a estória ― disse ele.
Soltei uma risada oca.
― O que há para contar?
Entramos em órbita excêntrica em torno do planeta. Era radical e se deteriorava;
quinhentos e doze por cento e doze quilômetros. Isto na primeira volta. Nossa segunda volta
foi ainda mais alta, com o perigeu mais baixo. Tínhamos um máximo de quatro órbitas.
Fizemos todas quatro. Demos uma boa olhada no planeta. Tiramos também mais de
seiscentas fotos e só Deus sabe quantos metros de filme.
A camada de nuvens é composta por partes iguais de metano, amônia, poeira e
merda voadora. O planeta inteiro parece o Grand Canyon num túnel de vento. Cory calculou
a velocidade do vento em cerca de mil quilômetros por hora perto da superfície. Nossa
sonda funcionou durante toda a descida e pifou de repente. Não vimos vegetação nem sinal
de vida. O espectroscópio indicou apenas traços dos minerais valiosos. E isso era Vênus.
Nada, absolutamente nada ― exceto que me causava medo. Era como circularem tomo de
uma casa assombrada em pleno espaço exterior. Sei o quanto isto parece anti-científico, mas
quase me borrei de medo até nos afastarmos de lá. Creio que se um de nossos foguetes não
se desligasse, eu cortaria o pescoço durante a descida. Não é como a Lua. A Lua é deserta
mas, de algum modo, anti-séptica. O mundo que vimos era diferente, completamente
diferente de tudo que alguém já viu. Talvez seja uma boa coisa existir aquela camada de
nuvens. Era como um crânio completamente descarnado ― eis o melhor que consigo
descrever.
No caminho de volta, ouvimos que o Senado votara o corte pela metade do
orçamento espacial. Cory fez um comentário sobre "parece que estamos de volta ao negócio
de satélites meteorológicos, Arde". Mas fiquei quase alegre. Talvez nosso lugar não seja lá.
Doze dias depois, Cory morreu e eu fiquei aleijado para o resto da vida. Perdemos
toda a nossa sorte na descida. O pára-quedas não funcionou. Que acha disso, como uma
pequena ironia da vida? Passamos mais de um mês no espaço, fomos mais longe que
qualquer outro ser humano já conseguiu ir e tudo terminou daquela maneira porque algum
sujeito estava com pressa de fazer um intervalo para o café e não dobrou direito o páraquedas,
causando um embaraço nas linhas.
Batemos com força. Um cara que estava num helicóptero disse que a nave parecia
um bebê gigantesco caindo do céu, trazendo atrás de si a placenta. Perdi os sentidos quando
batemos.
Voltei a mim quando me carregavam pelo convés do Portland Nem mesmo tiveram
oportunidade de enrolar o tapete vermelho sobre o qual deveríamos passar. Eu sangrava.
Sangrava e era levado às pressas para enfermaria, passando sobre um tapete
vermelho que não parecia tão vermelho quanto eu...
― ... Passei dois anos no hospital de Bethesda. Deram-me a Medalha de Honra,
muito dinheiro e esta cadeira de rodas. Vim para cá no ano seguinte. Gosto de assistir à
subida dos foguetes.
― Eu sei ― disse Richard, fazendo uma pausa antes de acrescentar: Mostre-me
suas mãos.
― Não ― minha resposta foi muito rápida e áspera. ― Não posso permitir que eles
vejam. Já lhe disse.
― Já se passaram cinco anos ― disse Richard. ― Por que agora, Arthur? É capaz
de me dizer?
― Não sei. Não sei! Talvez o que seja tenha um longo período de gestação. Ou
quem mesmo pode dizer que o contraí lá no espaço? Seja lá o que for, pode haver entrado
em mim em Fort Lauderdale. Ou aqui mesmo, nesta varanda, pelo que sei.
Richard suspirou e olhou para o mar, agora avermelhado pelo sol de final da tarde.
― Estou tentando, Arthur; não quero pensar que você esteja perdendo o juízo.
― Se for preciso, mostrar-lhe-ei minhas mãos ― repliquei, o que me custou grande
esforço. ― Mas só se for preciso.
Richard se levantou e pegou sua bengala. Parecia velho e frágil.
― Vou buscar o buggy. Procuraremos o menino.
― Obrigado, Richard.
Ele caminhou em direção à esburacada estrada de terra que levava à sua cabana ―
eu podia ver o telhado acima da Grande Duna, que se ergue por quase todo o comprimento
de Key Caroline. Acima do mar, na direção do Cabo, o céu assumira uma feia coloração de
ameixa e o som da trovoada longínqua me chegou aos ouvidos.
Eu não sabia o nome do rapaz, mas via-o de vez em quando, caminhando ao longo
da praia ao anoitecer, com a peneira sob o braço.
Estava quase negro de tão tostado pelo sol e só usava um surrado par de jeans
cortadas à altura das coxas. Na extremidade oposta de Key Caroline existe uma praia
pública e um jovem empreendedor talvez consiga.ganhar até cinco dólares nos melhores-
dias, peneirando a areia à procura de moedas perdidas. Ocasionalmente, eu lhe acenava e ele
respondia com outro aceno, ambos neutros, desconhecidos mas irmãos, moradores
permanentes da ilha em contraposição aos turistas esbanjadores que dirigiam Cadillacs e
falavam em voz alta. Imagino que morasse no pequeno vilarejo agrupado em tomo da
agência dos correios, cerca de oitocentos metros além de minha casa.
Quando ele passou aquela tarde, já fazia uma hora que eu estava na varanda,
imóvel, observando. Eu retirara as bandagens um pouco antes. A coceira se tornara
intolerável e sempre melhorava quando eles podiam ver com seus próprios olhos.
Era uma sensação como nenhuma outra no mundo ― como se eu fosse um portal
ligeiramente entreaberto através do qual eles observassem um mundo que odiavam e
temiam. Mas o pior era que eu também podia ver, de certo modo. Imagine sua mente
transportada para uma mosca caseira, uma mosca que olhasse para seu rosto com mil olhos.
Então, talvez você consiga começar a entender por que motivo eu mantinha minhas mãos
envoltas em bandagens, mesmo quando não existia ninguém por perto para vê-Ias.
Tudo começou em Miami. Eu tinha negócios lá com um homem chamado
Cresswell, investigador do Ministério da Marinha. Ele vem checar-me uma vez por ano ―
pois já estive o mais próximo que qualquer pessoa pode chegar do material secreto referente
ao nosso programa espacial. Não sei o que ele procura; um brilho furtivo em meus olhos,
talvez, ou uma letra vermelha em minha testa. Só Deus sabe por que. Minha pensão é tão
grande a ponto de ser quase embaraçosa.
Cresswell e eu estávamos sentados na varanda de seu quarto de hotel, bebericando
drinques e discutindo o futuro do programa espacial americano. Era cerca de três e meia.
Meus dedos começaram a coçar. Não foi nem um pouco gradual. Ligou-se de repente, como
uma corrente elétrica. Mencionei o fato a Cresswell.
― Então, você pegou alguma planta venenosa naquela ilhota escrofulosa ― disse
ele, sorrindo.
― A única vegetação existente em Key Caroline são os palmitos repliquei. ―
Talvez seja a coceira dos sete anos.
Olhei para minhas mãos. Perfeitamente normais. Mas coçavam.
Mais tarde, assinei o mesmo documento de sempre ("Juro solenemente que não
recebi nem revelei e divulguei informações que...") e dirigi meu carro de volta à ilha. Tenho
um velho Ford equipado com freio e acelerador operados à mão. Eu o adoro ― faz com que
me sinta autosuficiente.
É um longo trajeto pela Rodovia 1 e, quando saí da auto-estrada e peguei a rampa
de saída para Key Caroline, eu estava quase louco. Minhas mãos coçavam
inacreditavelmente. Se você já passou pelo sofrimento da cicatrização de um corte profundo
ou de uma incisão cirúrgica, talvez faça alguma idéia do tipo de coceira a que me refiro,
tinha a impressão de que coisas vivas rastejavam e me perfuravam a carne.
O sol quase desaparecera no horizonte e examinei cuidadosamente as mãos à luz do
painel. Agora, as pontas dos dedos estavam vermelhas, em pequenos círculos perfeitos logo
acima da parte carnuda onde estão as impressões digitais, nos locais onde ficamos com
pequenos calos ao tocarmos violão. Também existiam círculos vermelhos de infecção no
espaço entre a primeira e segunda juntas de cada dedo, inclusive o polegar, e na pele entre a
segunda junta e a mão. Apertei os dedos da mão direita contra os lábios e retirei-os
depressa, com repentino nojo. Uma sensação de atônito horror surgiu-me na garganta,
lanuda e asfixiante. A carne onde os pontos vermelhos tinham surgido estava quente, febril,
e o resto parecia macio, mole e frio, como a polpa de uma maçã apodrecida.
Levei o resto do caminho procurando convencer-me de que realmente pegara algum
tipo de urticária, em algum lugar. Contudo, no fundo de minha mente havia outro
pensamento terrível. Quando criança, tive uma avó que passou os últimos dez anos de vida
isolada do mundo num quarto do andar superior. Minha mãe lhe levava as refeições e seu
nome era um assunto proibido para nós. Posteriormente, vim a saber que ela sofria da
moléstia de Hansen ― lepra.
Quando cheguei em casa, telefonei para o Dr. Flanders, no continente. Fui atendido
pela secretária eletrônica. O Dr. Flanders estava fazendo um cruzeiro de pesca, mas se fosse
urgente o Dr. Ballanger estaria às ordens. O Dr. Flanders regressaria no máximo até a tarde
seguinte.
Desliguei num movimento vagaroso e, depois, disquei para Richard. Deixei o
telefone chamar uma dúzia de vezes antes de desligar. Depois disso, permaneci indeciso
durante algum tempo. A coceira piorava. Parecia emanar da própria carne.
Rolei minha cadeira de rodas até a estante de livros e peguei a velha enciclopédia
médica que eu possuía há anos. O livro se mostrou enlouquecedoramente vago. Poderia ser
tudo, ou nada.
Recostei-me e fechei os olhos. Podia escutar o velho relógio de navio funcionando
na prateleira do outro lado da sala. Ouvi o ronco longínquo de um jato que se dirigia a
Miami. E o leve sussurro de minha própria respiração.
Continuei a olhar para o livro.
A percepção do fato foi lenta, mas, de repente, atingiu-me de modo assustador. Eu
tinha os olhos fechados, mas, ainda assim, continuava a olhar para o livro. O que eu via era
a versão difusa e monstruosa, distorcida, em quatro dimensões, de um livro. E, a despeito de
tudo, a imagem era inconfundível.
E não era eu o único que o olhava.
Abri bruscamente os olhos, sentindo um aperto no coração. A sensação diminuiu
um pouco, mas não inteiramente. Eu estava olhando para o livro, vendo as letras e
diagramas com meus próprios olhos, uma experiência cotidiana perfeitamente normal; mas
também via-o de um ângulo diferente, inferior ― via-o com outros olhos. Via não um livro,
mas uma coisa estranha, algo de forma monstruosa e intenção ominosa.
Ergui lentamente as mãos para o rosto, tendo a fantasmagórica visão de minha sala
transformada numa casa de horror.
Gritei.
Havia olhos observando-me através de fendas na carne de meus dedos. E, enquanto
eu olhava, a carne se dilatava e murchava, à medida que eles abriam implacavelmente
caminho em direção à superfície.
Mas não fora isto que me fizera gritar. Eu olhara para meu próprio rosto e vira um
monstro.
O buggy apareceu no topo da colina e Richard o freou junto à varanda. O motor
acelerado roncava e pipocava. Rolei minha cadeira de rodas pelo plano inclinado à direita
dos degraus normais e Richard me ajudou a embarcar.
― Muito bem, Arthur ― disse ele. ― A festa é sua. Para onde vamos?
Apontei na direção da água, onde a Grande Duna finalmente começa a descer.
Richard meneou afirmativamente a cabeça. As rodas traseiras derraparam, jogando areia, e
partimos. Eu costumava espicaçar Richard por causa da maneira pela qual dirigia o buggy,
mas não me dei o trabalho de fazê-lo naquela noite. Tinha muito mais em que pensar ― e
sentir: eles não queriam o escuro e eu podia senti-los esforçando-se por ver através das
bandagens, impelindo-me a retirá-las.
O buggy saltava e rugia pela areia em direção ao mar, parecendo quase decolar do
topo das dunas menores. À esquerda, o sol se punha no horizonte com uma glória sangrenta.
Bem à nossa frente, no horizonte, as pesadas nuvens de trovoada se encaminhavam
para nós. Os relâmpagos iluminavam o céu e os raios caíam no oceano.
― À sua direita ― disse eu. ― Perto daquele abrigo.
Richard freou o buggy, espalhando areia, ao lado das ruínas apodrecidas do abrigo
de troncos e folhas de palmeira. Estendeu a mão para trás e pegou uma pá. Fiz uma careta
ao ver isso.
― Onde? ― indagou ele, sem expressão.
― Bem ali ― apontei para o local.
Ele saltou e andou vagarosamente pela areia até o local, hesitou um instante e logo
enterrou a pá na areia. Pareceu-me que ele cavou durante longo tempo. A areia que jogava
por cima do ombro com a pá parecia úmida. As nuvens ameaçadoras estavam mais escuras,
mais altas, e o mar parecia raivoso e implacável à sombra delas e ao brilho refletido do
crepúsculo.
Muito antes que Richard parasse de cavar, compreendi que ele não encontraria o
garoto.
Eles o haviam removido dali. Eu não colocara bandagens nas mãos na noite
anterior, de modo que eles conseguiram ver e agir. Se foram capazes de me usar para matar
o menino, poderiam usar-me para removê-lo, mesmo enquanto eu dormia.
― Não há menino algum, Arthur.
Richard jogou a pá suja de areia na parte traseira do buggy e sentou-se
fatigadamente ao volante. A tempestade que se aproximava lançava sombras curvas e
movediças ao longo da areia. A brisa que se tornava mais forte jogava ruidosamente areia na
lataria enferrujada do buggy. Meus dedos coçavam.
― Eles me usaram para removê-lo ― disse eu, obtusamente. ― Estão assumindo o
controle, Richard. Estão forçando a porta, um pouco de cada vez. Uma centena de vezes por
dia eu me vejo diante de algum objeto perfeitamente familiar ― uma espátula, um quadro,
até mesmo uma lata de ervilhas ― sem fazer idéia de como cheguei ali, estendendo as
mãos, mostrando-o a eles, vendo-o como eles o vêem, como uma obscenidade, como algo
monstruoso e grotesco...
― Arthur ― interrompeu Richard. ― Não, Arihur. Não fale nisso.
Na obscuridade, seu rosto demonstrava desânimo e compaixão.
― Diante de alguma coisa, você disse. Remover o corpo do menino, você disse.
Mas você não pode andar, Arthur. Está morto da cintura para baixo.
Toquei o painel do buggy.
― Isto também está morto. Mas quando você entra nele, é capaz de fazê-lo andar.
Seria capaz de fazê-lo matar. Ele não poderia deter você, mesmo que quisesse ― repliquei,
ouvindo minha própria voz erguer-se histericamente. ― Sou o umbral da porta, será que
você não consegue entender? Eles mataram o menino, Richard! Eles removeram o corpo!
― Acho melhor você consultar um médico ― replicou ele em voz baixa. ― Vamos
voltar.
Vamos...
― Verifique! Verifique o menino, então! Descubra...
― Você disse que nem mesmo sabia o nome dele.
― Ele devia ser do lugarejo. É um povoado pequeno. Pergunte...
― Falei com Maud Harrington pelo telefone, quando fui buscar o buggy. Se alguém
neste estado tem o nariz mais comprido que o de Maud, eu não conheço. Perguntei se ela
ouviu falar no filho de alguém, que não voltou para casa na noite passada. Ela respondeu
que não.
― Mas ele é do local! Tem que ser!
Richard estendeu a mão para a chave de ignição, mas eu o detive. Ele se virou para
fitar-me e comecei a desenrolar as bandagens de minhas mãos.
Sobre o golfo, a trovoada murmurava e rugia.
Não fui ao médico nem tornei a telefonar para Richard. Passei três semanas com as
mãos envoltas em bandagens sempre que saía de casa. Três semanas esperando cegamente
que aquilo desaparecesse. Não era um procedimento racional; sou capaz de admitir isto. Se
eu fosse um homem inteiro, que não precisasse de uma cadeira de rodas em lugar das
pernas, ou que levasse uma vida normal com uma ocupação normal, eu talvez fosse
consultar o Dr. Flanders ou procurasse Richard. Poderia tê-lo feito, se não fosse pela
lembrança de minha avó, isolada, virtualmente encarcerada, sendo devorada viva pela
própria carne infectada. Portanto, mantive um silêncio desesperado e rezei para acordar
algum dia de manhã e descobrir que tudo fora um pesadelo.
E, pouco a pouco, eu os sentia. Eles. Uma inteligência anônima. Eu nunca
realmente tentei imaginar como eles eram ou de onde tinham vindo. Era irrelevante. Eu era
o umbral deles, sua janela para o mundo. Recebia deles suficiente feedback para sentir sua
repulsa e horror, para saber que nosso mundo era muito diferente do seu. Feedback
suficiente para sentir-lhes o ódio cego. Não obstante, eles observavam. Sua carne estava
entranhada na minha. Comecei a perceber que me usavam, realmente me manipulavam.
Quando o menino passou, erguendo a mão em seu costumeiro aceno neutro, eu
tinha acabado de decidir entrar em contato com Cresswell através de seu telefone no
Ministério da Marinha. Richard tinha razão a respeito de uma coisa: eu tinha certeza de que
fora contaminado no espaço ou naquela estranha órbita de Vênus. A Marinha me estudaria,
mas não me transformaria num monstro. Eu não mais precisaria acordar na escuridão cheia
de rangidos e abafar um grito ao senti-los observar, observar, observar.
Voltei as mãos para o menino e dei-me conta de que não as enrolara nas bandagens.
Na luz fraca do crepúsculo, pude ver os olhos que observavam silenciosamente. Eram
grandes, dilatados, com íris cor de ouro. Certa vez eu esbarrara um deles contra a ponta de
um lápis e sentira a dor angustiante subir pelo braço. O olho deu a impressão de fitar-me
com um ódio contido que era pior que a dor física. Não esbarrei novamente.
E agora, eles observavam o menino. Sentia mente desviar-se. Um momento depois,
meu controle desapareceu. A porta estava aberta. Cambaleei pela areia em direção ao
menino, minhas pernas movimentando-se sem nervos, como uma tábua ao sabor das ondas.
Meus olhos pareceram fechar-se a passei a ver apenas através daqueles olhos estranhos ―
vi um monstruoso panorama marinho de alabastro, encimado por um céu semelhante a um
imenso manto cor de púrpura; vi um barraco inclinado, em ruínas, que poderia ter sido a
carcaça de alguma desconhecida criatura carnívora; vi uma criatura abominável que se
movia, respirava e carregava sob o braço um objeto de madeira e arame, um objeto
construído de ângulos retos geometricamente impossíveis.
Imagino o que ele pensou, aquele pobre menino sem nome com a peneira sob o
braço e os bolsos estofados com um conglomerado de moedas sujas de areia perdidas pelos
turistas, o que ele pensou ao ver-me cambalear em sua direção com as mãos estendidas
como um maestro cego regendo uma orquestra lunática, o que ele pensou quando o que
restava de luz incidiu em minhas mãos, vermelhas, rachadas e brilhantes com sua carga de
olhos, o que ele pensou quando as mãos fizeram aquele brusco movimento no ar, logo antes
de sua cabeça explodir.
Eu sei o que pensei.
Pensei que espiava pela borda do universo e via as labaredas do próprio inferno.
O vento fustigava as ataduras, transformando-as em bandeiras drape. jantes,
enquanto eu as desenrolava As nuvens tinham escondido o que restava do crepúsculo e as
dunas estavam escuras, cobertas de sombras. As nuvens pareciam correr e fervilhar acima
de nós.
― Precisa prometer-me uma coisa, Richard ― declarei, acima do barulho do vento.
― Você deve correr caso pareça que eu possa tentar... machucá-lo. Está entendendo?
― Sim.
Sua camisa aberta no pescoço chicoteava com o vento. O rosto estava sério,
decidido, e seus olhos eram pouco mais que órbitas no escuro.
A última atadura caiu.
Olhei para Richard. E eles olharam para Richard. Vi um rosto que conheço há cinco
anos e passei a amar. Eles viram um monolito vivo, distorcido.
― Você os vê ― disse eu, em voz rouca. ― Agora, você os vê.
Ele recuou involuntariamente. Seu rosto foi invadido por súbito e incrédulo pavor.
Um relâmpago iluminou o céu. Os trovões andavam entre as nuvens e o mar se tornara mais
negro que o próprio Estige.
― Arthur...
Como ele era hediondo! Como podia eu ter convivido com ele, falado com ele? Não
era uma criatura, mas uma pestilência muda. Ele era...
― Fuja! Fuja, Richard!
E ele fugiu. Correu em saltos enormes. Transformou-se num andaime de encontro
ao céu ameaçador. Minhas mãos se ergueram, voando sobre minha cabeça num gesto
gritante e estranho, os dedos estendidos na direção da única coisa que me era familiar
naquele mundo de pesadelo ― as nuvens.
E as nuvens responderam.
Houve o risco enorme, branco-azulado, de um raio que pareceu ser o final do
mundo.
Atingiu Richard, envolvendo-o. A última coisa de que me lembro é o cheiro elétrico
de ozônio e o odor de carne queimada.
Quando acordei, estava placidamente sentado em minha varanda, olhando na
direção da Grande Duna. A tempestade passara e o ar estava agradavelmente fresco. Havia
uma fina fatia de lua. A areia era virginal nem o menor sinal de Richard ou do buggy.
Olhei para minhas mãos. Os olhos estavam abertos, mas esgazeados. Eles estavam
exaustos. Dormiam.
Eu sabia muito bem o que precisava ser feito. Antes que a porta se abrisse ainda
mais, tinha que ser trancada. Para sempre. Eu já podia notar os primeiros sinais de alteração
estrutural nas mãos. Os dedos começavam a encurtar-se... e a mudar.
Havia uma pequena lareira na sala e, na estação, eu costumava acender um fogo
contra o frio úmido da Flórida. Acendi um agora, agindo depressa. Não fazia idéia de
quando eles despertariam para o que eu estava fazendo.
Quando o fogo pegou bem, saí até o tambor de querosene e embebi ambas as mãos.
Eles acordaram imediatamente, gritando em agonia. Quase não consegui chegar de volta à
sala ― e à lareira.
Mas cheguei.
Isso ocorreu há sete anos.
Ainda estou aqui; ainda observo os foguetes subirem. Têm sido mais numerosos,
ultimamente. Este é um governo com mentalidade espacial. Até mesmo já se fala em novas
sondas tripuladas para Vênus.
Descobri o nome do menino, embora não faça diferença. Ele pertencia realmente ao
lugarejo. Mas a mãe esperava que ele passasse a noite em casa de um amigo, no continente,
e só deu alarme na segunda-feira seguinte. Richard... bem, todo mundo achava Richard um
sujeito esquisito. Desconfiam que ele tenha ido para Maryland ou se amasiado com alguma
mulher.
Quanto a mim, sou tolerado, embora goze também de grande reputação por
excentricidade. Afinal, quantos ex-astronautas escrevem regularmente a seus representantes
eleitos, em Washington, sugerindo que o dinheiro da exploração do espaço poderia ser
melhor empregado em outras coisas?
Dou-me bem com estes ganchos no lugar das mãos. Sofri dores horríveis durante
um ano ou mais, mas o corpo humano é capaz de adaptar-se a quase tudo. Aprendi a
barbear-me com eles e até mesmo a dar o laço nos sapatos. E, como podem ver, minha
datilografia é correta e fácil. Não espero encontrar qualquer dificuldade para enfiar o cano
da espingarda na boca e puxar o gatilho.<br />
<br />
Pois tudo começou outra vez, há três semanas.
Há um perfeito círculo de doze olhos dourados em meu peito.Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-82680635414152552222015-11-08T16:33:00.002-03:002015-11-08T16:33:54.202-03:00A saideira - Stephen king's Night Shift - Sombras da noite<br />
Passavam quinze minutos das dez horas e Herb Tooklander estava pensando em
fechar a casa quando o homem de sobretudo elegante e rosto branco de olhos esbugalhados
entrou de repente no Tookey's Bar, que fica na parte norte de Falmouth. Era dez de janeiro,
exatamente a época em que o pessoal está aprendendo a viver confortavelmente com todas
as promessas de Ano-Novo que quebraram e lá fora soprava uma violenta tempestade do
nordeste. Havia caído quinze centímetros de neve antes do anoitecer e a nevasca continuava
feia e forte desde então. Por duas vezes Tookey vira Billy Larribee passar na elevada cabine
do trator de limpar neve da prefeitura e, na segunda vez, correra até lá para levar-lhe uma
cerveja ― um ato de caridade, como diria minha mãe, e meu Deus sabe que ela gastou um
bocado de dinheiro com cerveja de Tookey no seu tempo. Billy informou que estavam
conseguindo manter o trânsito livre na estrada principal, mas as secundárias estavam
bloqueadas e deveriam continuar assim até a manhã seguinte. A rádio de Portland previa
mais trinta centímetros de neve e um vento de sessenta e cinco quilômetros por hora para
empilhá-la.
Apenas Tookey e eu estávamos no bar, escutando o vento uivar nos beirais e
observando-o fazer o fogo dançar na lareira.
― Tome uma saideira, Booth ― diz Tookey. ― Vou fechar.
Serviu uma para mim e outra para ele. Foi então que a porta se abriu e o tal
desconhecido cambaleou para dentro do bar com neve até nos ombros e no cabelo, como se
tivesse rolado em açúcar de confeiteiro. O vento soprava atrás dele uma cortina de neve fina
como poeira.
― Feche a porta! ― berrou Tookey para ele. ― Será que nasceu num celeiro?
Nunca vi um homem parecer tão apavorado. Era como um cavalo que tivesse
passado a tarde inteira comendo urtigas. Seus olhos rolaram na direção de Tookey e ele
disse:
― Minha mulher... minha filha...
Então, caiu ao chão, completamente sem sentidos.
― Nossa Mãe! ― exclamou Tookey. ― Quer fechar a porta, Booth, por favor?
Obedeci e foi uma dificuldade empurrar a porta contra o vento. Tookey estava
apoiado num joelho, erguendo a cabeça do sujeito e dando-lhe palmadinhas nas bochechas.
Aproximei-me e constatei de imediato que era um caso grave. A cara do sujeito
estava muito vermelha, mas tinha manchas cinzentas aqui e acolá; quando a gente passou os
invernos no Maine desde que Woodrow Wilson era Presidente, como é o meu caso, sabe
que aquelas manchas cinzentas são queimaduras produzidas pelo enregelamento.
― Desmaiou ― disse Tookey. ― Apanhe conhaque atrás do bar, está bem?
Fui buscar o conhaque e voltei. Tookey abrira o sobretudo do homem. Este
recobrara ligeiramente os sentidos: tinha os olhos meio abertos e murmurava algo baixo
demais para que conseguíssemos entender.
― Encha a tampa da garrafa ― disse Tookey.
― Só isso? ― perguntei.
― Esse troço é dinamite ― replicou Tookey. ― Não faz sentido sobrecarregarmos
o carburador do cara.
Enchi a tampa com conhaque e olhei para Tookey. Ele meneou a cabeça,
confirmando:
― Direto na goela.
Derramei a bebida na boca do sujeito. Foi algo digno de ser visto. Ele estremeceu da
cabeça aos pés e começou a tossir. O rosto ficou ainda mais vermelho. As pálpebras, que
estavam a meio-pau, abriram-se como persianas de janela. Fiquei um tanto alarmado, mas
Tookey limitou-se a sentá-lo como um enorme bebê e dar-lhe palmadas nas costas.
O homem começou a ter vômitos secos e Tookey deu-lhe uma palmada mais forte.
― Agüente firme ― disse ele ao desconhecido. ― O conhaque está caro.
O sujeito tossiu um pouco mais, mas a tosse diminuiu aos poucos. Examinei-o bem
pela primeira vez. Homem da cidade, no duro, e de algum lugar ao sul de Boston, pelo meu
palpite. Usava luvas de pelica, caras mas finas. Era provável que existissem outras daquelas
manchas cinzentas em suas mãos e ele teria sorte se não perdesse um ou dois dedos. Usava
um sobretudo realmente elegante; um casaco de trezentos dólares, no mínimo.
Suas botas eram pequenas e finas, mal-chegando aos tornozelos, e comecei a
imaginar em que estado se achariam seus pés.
― Melhor ― disse ele.
― Muito bem ― replicou Tookey. ― Pode vir até o fogo?
― Minha mulher e minha filha ― disse o homem. ― Estão lá fora... na tempestade.
― Pela maneira como você entrou aqui, não pensei que estivessem em casa
assistindo à televisão ― comentou Tookey. ― Pode nos contar tão bem perto do fogo
quanto sentado aí no chão. Ajude aqui, Booth.
O cara ficou em pé mas soltou um pequeno gemido e seus lábios se contorceram de
dor.
Tornei a pensar nos pés dele e tentei imaginar por que motivo Deus tinha que fazer
idiotas da cidade de Nova York tentarem dirigir automóvel no sul do Maine durante o auge
de uma tempestade do nordeste. E perguntei com meus botões se a mulher e a filha estariam
melhor agasalhadas que ele.
Levamos o homem para perto da lareira e o sentamos numa cadeira de balanço que
fora o lugar favorito da Sra. Tookey até morrer, em '74. A Sra. Tookey era responsável pela
maior parte da fama do bar, que fora objeto de reportagens na Down East e no Sunday
Telegram, tendo sido citado até mesmo no suplemento dominical do Globe de Boston.
Na verdade, era mais uma taverna que um bar, com seu amplo assoalho de tábuas
corridas, presas com cavilhas em vez de pregos, o bar feito com madeira de bordo, o velho
teto de vigas aparentes como as de um celeiro e a enorme lareira de pedra. Depois da
publicação do artigo na Down East, a Sra. Tookey começou a meter certas idéias na cabeça,
querendo mudar o nome do local para Estalagem do Tookey ou Pousada do Tookey, e
confesso que seria um toque mais colonial, mas prefiro simplesmente o velho nome de Bar
do Tookey ― Tookey's Bar. Uma coisa é ser pedante no verão, quando o estado fica cheio
de turistas; mas é completamente diferente no inverno, quando a gente tem que negociar
com os vizinhos. E houvera muitas noites de inverno, como esta, que Tookey e eu tínhamos
passados juntos, sozinhos, bebendo uísque escocês e água ou apenas algumas cervejas. A
minha Victoria faleceu em 73 e o bar do Tookey era um bom lugar para se ir, onde existiam
vozes suficientes para abafar o tique-taque do relógio da morte que se aproximava da hora
marcada mesmo que fôssemos apenas Tookey e eu, já bastava. E eu não me sentiria da
mesma maneira se o local se chamasse Pousada do Tookey. Pode parecer loucura, mas é
verdade.
Colocamos o tal sujeito diante da lareira e ele começou a tremer ainda mais que
antes.
Abraçou os joelhos e seus dentes chocalhavam. Algumas gotas de muco
transparente lhe pingavam do nariz. Creio que ele estava começando a compreender que
mais quinze minutos lá fora seriam o bastante para matá-lo. Não é a neve, é o fator de frio
resultante do vento. Rouba todo o calor da gente.
― Onde saiu da estrada? ― perguntou Tookey.
― D-d-dez qu-qu-quilômetros ao s-s-sul d-d-daqui ― respondeu o desconhecido.
Tookey e eu nos entreolhamos e, de repente, fiquei frio. Dos pés à cabeça.
― Tem certeza ― quis saber Tookey. ― Andou dez quilômetros pela neve?
O cara assentiu com a cabeça.
― Verifiquei o odômetro quando atravessamos a cidade. Eu estava seguindo
instruções... indo visitar minha cunhada... em Cumberland... nunca estive por aqui antes...
somos de Nova Jersey...
Nova Jersey. Se existe alguém mais puramente idiota que um novaiorquino, é um
sujeito de Nova Jersey.
― Dez quilômetros ― insistiu Tookey. ― Tem certeza?
― Sim, bastante certeza. Encontrei a rampa de saída, mas estava bloqueada pela
neve... estava...
Tookey o agarrou pelas lapelas. Ao brilho trêmulo do fogo, seu rosto parecia pálido
e tenso, dez anos mais velhos que os seus sessenta anos.
― Dobrou à direita?
― Sim, dobrei à direita. Minha mulher...
― Viu uma placa?
― Placa? ― repetiu o cara, olhando inexpressivamente para Tookey e limpando a
ponta do nariz. ― Claro que vi. Estava nas minhas instruções: tome a Avenida Jointner
através de Jerusalem's Lot até a rampa de acesso 295.
Olhou de mim para Tookey e vice-versa. Lá fora, o vento assoviava e uivava e
gemia nos beirais.
― Não era isso, moço?
― Lot ― disse Tookey tão baixo que mal o escutei. ― Oh, meu Deus...
― O que está errado? ― quis saber o forasteiro, erguendo a voz. Não acertei?
Quero dizer, a estrada estava coberta de neve, mas pensei .. se existe uma cidade por aqui,
os tratores estarão trabalhando e... então, eu...
Simplesmente deixou a frase morrer.
― Booth ― disse-me Tookey em voz baixa. Vá telefonar. Chame o xerife.
― Claro, isso mesmo ― disse aquele idiota de Nova Jersey. ― O que há de errado
com vocês, afinal? Parece que viram um fantasma.
Tookey replicou:
― Não existem fastasmas em Lot, moço. Disse a elas para permanecerem no carro?
― Claro ― respondeu o sujeito, mostrando-se ofendido. ― Não sou maluco. Bem,
ninguém poderia provar, pelo menos para mim.
― Como se chama? ― indaguei. ― Tenho que dizer ao xerife.
― Lumley. Gerard Lumley.
Ele continuou a conversar com Lumley e eu atravessei o salão até o telefone. Levei
o fone ao ouvido e não escutei nada. Um silêncio mortal. Bati no gancho duas vezes.
Ainda assim, nada.
Voltei para perto da lareira. Tookey servira outra dose de conhaque para Gerard
Lumley e esta desceu pela garganta dele muito melhor.
― Ele não estava? ― indagou Tookey.
― O telefone está mudo.
― Diabo! ― exclamou Tookey.
Trocamos um olhar. Lá fora, o vento soprava neve contra as vidraças.
Lumley olhou de Tookey para mim e vice-versa.
― Bem, nenhum de vocês dois tem carro? ― perguntou ele, com a voz novamente
cheia de ansiedade. ― Elas precisam deixar o motor ligado para que a calefação funcione.
Eu tinha apenas um quarto de tanque de gasolina e levei duas horas e meia para... Ouçam:
querem fazer o favor de responder?
Levantou-se e agarrou o peito da camisa de Tookey.
― Moço ― disse Tookey ―, creio que suas mãos perderam o juízo.
Lumley olhou para a mão, encarou Tookey e largou a camisa.
― Maine ― sibilou ele entredentes, fazendo a palavra soar como um insulto à mãe
de alguém. ― Muito bem ― acrescentou ―, onde fica o posto de gasolina mais próximo?
Devem ter um reboque...
― O posto de gasolina mais próximo fica em Falmouth Center, a cinco quilômetros
daqui, seguindo pela estrada.
― Obrigado ― disse o forasteiro, levemente sarcástico, encaminhando-se para a
porta e abotoando o sobretudo.
― Mas não estará aberto ― aduzi.
Ele se voltou vagarosamente e nos encarou.
― De que está falando, velho?
― Está querendo lhe dizer que o posto de gasolina em Falmouth Center pertence a
Billy Larribee e Billy saiu para dirigir o trator de limpar a neve, seu maldito idiota ―
explicou Tookey, paciente. ― Agora, por que não volta para cá antes de estourar uma veia
do pescoço?
Ele voltou, parecendo aturdido e amedrontado.
― Está me dizendo que não podem... que não existe...?
― Não estou lhe dizendo nada ― replicou Tookey. ― Você é quem está falando o
tempo todo. Se parar de falar por um minuto, poderemos pensar no problema.
― O que há nessa cidade, Jerusalem's Lot? ― quis saber Lumley. Por que a estrada
estava interrompida? Por que não havia luzes?
Eu disse:
― Jerusalem's Lot foi incendiada há dois anos.
― E nunca a reconstruíram? ― perguntou ele. ― Por que a estrada estava
interrompida? Por que não havia luzes?
― Parece que não ― disse eu, olhando em seguida para Tookey. Que vamos fazer a
respeito disso?
― Não podemos deixar as mulheres lá ― declarou ele.
Aproximei-me de Tookey. Lumley se afastara para olhar pela janela a noite
tempestuosa.
― E se as apanharam? ― perguntei.
― Pode ser ― disse Tookey. ― Mas não temos certeza. Minha Bíblia está na
prateleira.
Você tem aí sua medalha do Papa?
Tirei o crucifixo da camisa e mostrei a ele. Nasci e fui criado protestante, mas a
maioria dos moradores das redondezas de Jerusalem's Lot usa algum objeto católico ― um
crucifixo, uma medalha de São Cristóvão, um rosário ou algo semelhante. Porque há dois
anos, durante um sombrio mês de outubro, Jerusalem's Lot enveredou pelo mau caminho.
As vezes, tarde da noite, quando havia apenas alguns fregueses assíduos reunidos em torno
da lareira de Tookey, a conversa girava sobre o assunto. E a maior parte do que se diz a
respeito é verdade. As pessoas de Jerusalem's Lot começaram a desaparecer. Primeiro,
apenas algumas; depois, outras mais; depois, um grupo inteiro.
As escolas fecharam. A cidade ficou deserta durante quase um ano. Oh, algumas
poucas pessoas se mudaram para lá, a maior parte delas idiotas de outros estados, como
aquele belo espécime que agora tínhamos nas mãos ― atraídas pelo baixo preço das
propriedades, suponho. Mas não duraram muito. Muitas delas se mudaram um ou dois
meses depois de terem chegado. As outras... bem, elas desapareceram. Então, a cidade se
incendiou, queimando-se até os alicerces. Foi no final de um longo outono de seca.
Dizem que o fogo começou perto da Marsten House, na colina que dominava a
Avenida Jointner, mas ninguém sabe o que provocou o incêndio. Até hoje ninguém sabe.
Depois disso, as coisas melhoraram por algum tempo. Depois, recomeçaram.
Apenas uma vez escutei mencionarem a palavra "vampiros". Um maluco motorista
de caminhão de transporte de madeira, chamado Richie Messina, de Freeport, estava no
Tookey naquela noite, já tendo tomado umas e outras.
― Jesus Cristo! ― gritou o brutamontes, que tinha pelo menos dois metros e
setenta de altura em suas calças de lã, camisa quadriculada e botas de couro. ― Por que
vocês têm tanto medo de falar. Vampiros! É isso que todos estão pensando, não é mesmo?
Jesus Cristo num carrinho puxado a cavalo! Sabem o que existe lá em Salem's Lot? Querem
que eu lhes diga? Querem?
― Diga logo, Richie ― disse Tookey.
Fez-se um profundo silêncio no bar. Podia-se ouvir o fogo crepitar na lareira e, lá
fora, a leve chuva de novembro batendo nas vidraças.
― A palavra é sua ― acrescentou Tookey.
― O que existe lá é o básico bando de cães selvagens ― declarou Richie Messina.
É isso aí. Isso e um bando de velhas que gostam de uma boa estória de fantasmas. Ora, por
oitenta dólares eu sou capaz de ir lá e passara noite naquela casa mal-assombrada, ou no que
resta dela e que tanto preocupa vocês. Bem que tal? Alguém quer apostar?
Mas ninguém queria. Richie era um fanfarrão e ficava violento quando bebia
demais.
Ninguém derramaria lágrimas em seu velório, mas nenhum de nós desejava que ele
fosse a Salem's Lot depois do escurecer.
― Vocês todos que se fodam! ― vociferou Richie. ― Tenho uma espingarda
quatorze no meu Chevrolet e ela é capaz de deter qualquer coisa em Falmouth, Cumberland
ou Jerusalem's Lot! E é para lá que eu vou agora.
Saiu do bar como um furacão, antes que alguém pudesse dizer uma palavra.
Ninguém falou durante algum tempo. Então, Lamont Henry disse em voz muito baixa:
― Santo Deus! Esta é a última vez que alguém terá visto Richie Messina.
E Lamont, metodista convicto desde o colo da mãe, fez o Sinal da Cruz.
― Ele curará o pileque e mudará de idéia ― disse Tookey, embora parecesse
inquieto. ― Voltará na hora de fecharmos, dizendo que tudo não passou de brincadeira.
Mas Lamont estava certo, daquela vez, pois ninguém tornou a ver Richie. Sua
mulher disse à polícia que ele fora para a Flórida, a fim de fugir dos credores, mas podíamos
ler a verdade em seus olhos ― apavorados e doentes de medo. Pouco depois disso, mudouse
para Long Island. Talvez temesse que Richie voltasse para buscá-la numa noite escura.
E não sou eu quem dirá que isso era impossível.
Agora, Tookey olhava para mim e eu olhava para ele enquanto tornava a guardar o
crucifixo na camisa. Nunca me senti tão velho ou tão assustado em minha vida.
Tookey tornou a dizer:
― Não podemos deixar as mulheres lá, Booth.
― Sim, eu sei.
Encaramo-nos por mais alguns instantes. Depois, ele estendeu a mão e me apertou o
ombro.
― Você é um bom sujeito, Booth.
Aquilo foi o bastante para animar-me um pouco. Parece que quando a gente
ultrapassa os setenta as pessoas esquecem de que somos um homem, ou de que algum dia o
fomos.
Tookey foi até Lumley e disse:
― Tenho um Scout com tração nas quatro rodas. Vou buscá-lo.
― Pelo amor de Deus, homem, por que não me disse antes?
Lumley voltou-se bruscamente da janela e olhou raivosamente para Tookey.
― Por que teve que passar quinze minutos fazendo rodeios?
Tookey respondeu muito mansamente:
― Moço, cale a boca. E se tiver vontade de abri-la, lembre-se de quem entrou
naquela estrada interrompida durante uma tempestade de neve.
O forasteiro começou a dizer alguma coisa, mas tornou a fechar a boca. Seu rosto
ficara muito vermelho. Tookey saiu para tirar o Scout da garagem. Tateei embaixo do
balcão à procura de seu frasco cromado e o enchi de conhaque. Talvez precisássemos
daquilo antes que a noite terminasse.
Nevasca do Maine... já estiveram numa?
A neve vem voando, tão densa e fina que parece areia e tem o mesmo som ao bater
na lataria dos veículos. Não usamos faróis altos porque refletem o brilho da neve e fica
impossível enxergar a mais que três metros de distância. Com os faróis baixos, pode-se
enxergar talvez quatro metros e meio. Mas sou capaz de viver com a neve. O que não me
agrada é o vento, que sopra a neve em mil e uma estranhas formas voadoras e tem o som de
todo o ódio, sofrimento e medo neste mundo. Existe morte na garganta de uma tempestade
de neve, morte branca ― e, talvez, algo além da morte. Não é um som agradável de ouvir
quando se está bem acomodado na cama, sob as cobertas, com os trincos passados nos
postigos e as portas trancadas. Mas é muito pior quando se está dirigindo um veículo. E nós
estávamos indo diretamente para Salem's Lot.
― Será que não podemos ir um pouco mais depressa? ― quis saber Lumley.
Repliquei:
― Para quem chegou meio-enregelado, você está com uma pressa danada de sair
outra vez.
Ele me lançou um olhar ressentido e confuso, calando a boca. Seguíamos pela
estrada a uma velocidade constante de quarenta quilômetros por hora. Era difícil acreditar
que Billy Larribee acabara de passar o trator naquele trecho, havia mais ou menos uma hora;
mais cinco centímetros de neve tinham-se acumulado na estrada e o vento começava a
soprá-los para formar montículos. As rajadas nais fortes de vento sacudiam o Scout. Os
faróis iluminavam um impenetrável turbilhão branco à nossa frente. Não encontramos um
único carro.
Cerca de dez minutos mais tarde, Lumley soltou uma exclamação de espanto:
― Ei! O que é aquilo?
Apontava para meu lado do carro. Eu estivera olhando para a frente. Virei a cabeça,
mas tarde demais. Tive a impressão de ainda ver de relance um vulto baixo se afastando do
carro e sumindo na neve, mas poderia ser apenas imaginação.
― O que foi? Um veado? ― perguntei.
― Creio que sim ― disse Lumley com voz trêmula. ― Mas os olhos... pareciam
vermelhos.
Virou-se para mim:
― Como são os olhos de um veado à noite?
O tom de sua voz era quase suplicante.
― Podem parecer qualquer coisa ― respondi, refletindo que talvez fosse verdade,
mas eu vira muitos veados à noite, de dentro de muitos carros, e nunca deparei com um par
de olhos que tivessem reflexos vermelhos.
Tookey permaneceu calado.
Cerca de quinze minutos depois chegamos a um local onde o monte de neve no lado
direito da estrada não era tão alto, porque os tratores de limpar neve costumam erguer um
pouco as lâminas quando passam por um cruzamento.
― Parece que foi aqui que fizemos a curva ― disse Lumley, parecendo não ter
muita certeza. ― Não estou vendo a placa...
― É aqui mesmo ― afirmou Tookey,. com uma voz muito diferente do normal. ―
Dá para ver apenas o topo do poste.
― Oh, claro ― disse Lumley, parecendo aliviado. ― Escuta, Sr. Tooklander,
lamento ter sido tão brusco lá atrás. Estava com frio, preocupado e acusando-me de ser
duzentos tipos de idiota. E desejo agradecer a ambos...
― Não nos agradeça até termos as mulheres dentro do carro atalhou Tookey.
Engrenou a tração nas quatro rodas e abriu caminho à força pelo monte de neve
acumulada, chegando à Avenida Jointner, que atravessa Jerusalem's Lot e segue até a
Rodovia 295. A neve jorrava contra os guarda-lamas. A traseira mostrou tendência para
derrapar um pouco, mas Tookey estava habituado a dirigir na neve desde o tempo do onça.
Controlou a derrapagem, falando com o carro, e prosseguimos. Os faróis iluminavam as
marcas deixadas a intervalos por outro veículo, que logo desapareciam.
O cano de Lumley. Este se debruçava para diante, procurando avistá-lo. De repente,
Tookey disse:
― Sr. Lumley.
― O que é? ― indagou ele, olhando para Tookey.
― O pessoal destas bandas é um tanto supersticioso a respeito de Jerusalem's Lot
― disse Tookey, soando bastante calmo ― embora eu pudesse ver-lhe os vincos de tensão
ao redor da boca e o modo pelo qual seus olhos se dirigiam incessantemente de um lado
para outro. ― Se sua família estiver dentro do carro, ora, será ótimo. Nós as transferiremos
para este carro e voltaremos à minha casa; amanhã de manhã, quando a tempestade cessar,
Billy terá o máximo prazer em rebocar seu automóvel para fora do monte de neve. Contudo,
se não estiverem no carro...
― Não estiverem no carro? ― interrompeu asperamente Lumley. Por que não
estariam?
― Se não estiverem no carro ― prosseguiu Tookey, sem responder as perguntas
―, vamos dar a volta e retornar a Falmouth Center para chamar o xerife. De qualquer
maneira, não faz sentido perambularmos por aí à noite, em meio à tempestade, não é
mesmo?
― Elas estarão no carro. Em que outro lugar poderiam estar?
Eu acrescentei:
― Mais uma coisa, Sr. Lumley: se avistarmos alguém, não falaremos com eles.
Nem mesmo se falarem conosco. Está entendendo?
Com voz muito sumida, Lumley indagou:
― Quais são as tais superstições?
Antes que eu pudesse responder ― só Deus sabe o que eu teria dito ―, Tookey
atalhou:
― Chegamos.
Aproximavamo-nos da traseira de uma grande Mercedes. O capô inteiro estava
mergulhado num monte de neve e outro monte amassara todo o lado esquerdo do carro.
Mas as lanternas traseiras estavam acesas e podíamos ver a fumaça saindo do cano
de descarga.
― A gasolina não acabou, pelo menos ― comentou Lumley.
Tookey parou o Scout e puxou o freio de mão.
― Lembra-se do que Booth lhe disse, Lumley.
― Claro, claro.
Mas ele só conseguia pensar na mulher e na filha. E não vejo por que censurá-lo.
― Pronto, Booth? ― perguntou-me Tookey.
Seus olhos, sombrios e cinzentos à luz do painel, cruzaram com os meus.
― Creio que sim ― respondi.
Saímos e o vento nos atacou, jogando-nos neve no rosto. Lumley foi à frente,
curvado contra o vento, o elegante sobretudo enfunado às suas costas como uma vela.
Lançava duas sombras: um dos faróis de Tookey e outra das lanternas traseiras de seu
próprio carro. Fui atrás dele e Tookey um passo atrás de mim.
Quando cheguei ao porta-malas da Mercedes, Tookey me deteve.
― Deixe-o ir sozinho ― disse ele.
― Janey! Francie! ― gritou Lumley. ― Tudo bem?
Abriu a porta do lado do motorista e debruçou-se para o interior do carro.
― Tudo... Ficou petrificado. O vento lhe arrancou a pesada porta das mãos e
escancaroua.
― Meu Deus, Booth ― disse Tookey, contra o barulho do vento. Acho que
aconteceu outra vez.
Lumley virou-se para nós. Tinha o rosto apavorado e perplexo, os olhos
esbugalhados.
De repente, atirou-se contra nós através da neve, tropeçando e quase caindo.
Empurrou-me para o lado como se eu não existisse e agarrou Tookey.
― Como você sabia? ― rugiu ele. ― Onde estão elas? Que diabo se passa aqui?
Tookey livrou-se dele, afastando-o para um lado, e avançou até o automóvel. Ele e
eu olhamos juntos para o interior da Mercedes. Quente como uma torrada saída da chapa,
mas não continuaria assim por muito tempo. A pequena luz amarela que indicava o final da
gasolina estava acesa. O grande automóvel estava vazio. No tapete do chão junto ao banco
da direita estava uma boneca de criança. E um casaco de esqui de criança dobrado sobre o
encosto do banco.
Tookey levou as mãos ao rosto... e desapareceu de repente. Lumley o agarrara,
empurrando-o de encontro ao monte de neve. O forasteiro estava pálido e desvairado. A
boca se mexia como se mastigasse algo amargo que ainda estava preso aos dentes e ele não
conseguia cuspir. Enfiou o braço no carro e pegou o casaco de esqui de criança.
― O casaco de Francie? ― disse quase num sussurro. Então, soltou um berro: ― O
casaco de Francie!
Olhou para mim, atônito e incrédulo, dizendo:
― Ela não pode sair do carro sem o casaco, Sr. Booth. Ora... ora ... morrerá
congelada.
― Sr.― Lumley...
Ele passou por mim, ainda segurando o casaco, e gritou:
― Francie! Janey! Onde estão vocês? Onde estão?
Estendi a mão para Tookey e ajudei-o a levantar-se.
― Você está...?
― Não importa ― atalhou ele. ― Precisamos pegá-lo, Booth.
Fomos atrás de Lumley o mais depressa possível, o que não era muito rápido com a
neve nos chegando à altura dos quadris em alguns lugares. Mas ele parou e nós o
alcançamos.
― Sr. Lumley... ― disse Tookey, pousando-lhe uma mão no ombro.
― Por aqui ― interrompeu Lumley. ― Foi por aqui que elas vieram. Vejam!
Olhamos para baixo. Estávamos numa espécie de depressão do terreno e o vento
passava acima de nossas cabeças. E podíamos ver dois conjuntos de pegadas, um adulto e
outro de criança, que começavam a ser cobertos pela neve. Se chegássemos cinco minutos
mais tarde, teriam desaparecido.
Lumley começou a andar na direção das pegadas e Tookey o deteve.
― Não! Não, Lumley!
Ele voltou o rosto desvairado para Tookey e cerrou o punho. Ergueu o braço... mas
algo na expressão de Tookey fê-lo hesitar. Olhou de Tookey para mim e vice-versa.
― Ela morrerá congelada ― repetiu, como se fossemos duas crianças. ― Será que
não entendem? Ela deixou o casaco no carro e tem apenas sete anos de idade...
― Elas podem estar em qualquer lugar ― disse Tookey. ― É impossível seguir
essas pegadas. Já terão desaparecido na próxima elevação do terreno.
― O que sugere? ― quis saber Lumley, em voz aguda e histérica. Se voltarmos
para chamar a polícia, ela morrerá de frio! Francie e a minha mulher!
― Talvez já estejam mortas ― disse Tookey, encarando Lumley. Congeladas ou
algo pior.
― Que quer dizer com isso? ― perguntou Lumley. ― Fale logo, diabo! Conte-me!
― Sr. Lumley ― começou Tookey ―, existe alguma coisa em Jerusalem's Lot...
Mas, afinal, fui eu quem terminei a frase, dizendo a palavra que esperava jamais
pronunciar:
― Vampiros, Sr. Lumley. Jerusalem's Lot está cheia de vampiros. Presumo que seja
difícil para o senhor engolir...
Ele me fitava como se eu tivesse ficado verde.
― Malucos ― murmurou. ― Vocês são dois malucos.
Então, deu-nos as costas, colocou as mãos em concha na boca e gritou:
― FRANCIE! JANEY!
Começou a avançar outra vez. A neve lhe chegava à bainha do elegante sobretudo.
Olhei para Tookey:
― Que fazemos agora?
― Vamos atrás dele ― respondeu Tookey, os cabelos emplastrados de neve e
parecendo realmente um tanto maluco. ― Não posso abandoná-lo aqui, Booth. Você pode?
― Não ― repliquei. ― Creio que não.
Começamos a caminhar pela neve da melhor maneira possível, no encalço de
Lumley.
Ele deixava um rastro largo, avançando pela neve como um touro enfurecido. Tinha
sua juventude para gastar e se distanciava cada vez mais de nós. Minha artrite começou a
incomodar-me horrivelmente e comecei a olhar para as pernas, dizendo comigo mesmo: Um
pouco mais, só um pouco mais, continue avançando, diabo, continue avançando...
Esbarrei em Tookey, que estava postado de pemas abertas num monte de neve.
Tinha a cabeça baixa e ambas as mãos apertadas contra o peito.
― Tookey ― perguntei ―, você está bem?
― Muito bem ― disse ele, baixando as mãos. ― Vamos atrás dele, Booth. Quando
cansar, ele verá a luz da razão.
Chegamos ao topo de uma elevação e lá estava Lumley, no fundo da depressão
seguinte, procurando desesperadamente mais pegadas. Pobre homem, não tinha a menor
possibilidade de encontrá-las. O vento soprava exatamente onde se encontrava e qualquer
pegada desapareceria três minutos depois de ser deixada na neve. Muito mais em duas
horas... Lumley levantou a cabeça e gritou para a noite:
― FRANCIE! JANEY! PELO AMOR DE DEUS!
Pude sentir o terror e o desespero em sua voz e tive pena dele. A única resposta que
obteve foi o rugido do vento, parecendo a passagem de um trem de carga. Quase parecia
zombar de Lumley, dizendo: Eu as levei, Sr. Nova Jersey, com seu carro bonito e seu
sobretudo elegante. Eu as levei e apaguei as pegadas; amanhã de manhã, elas estarão tão
lindas e congeladas quanto dois morangos num freezer..
― Lumley! ― berrou Tookey acima do vento. ― Ouça: esqueça-se de vampiros,
fantasmas e tudo o mais, mas lembre-se de uma coisa! Você está piorando as coisas para
elas!
Precisamos buscar...
Então, houve uma resposta, uma voz vinda do escuro como o repicar de um sino de
prata. Meu coração ficou gelado como gelo numa cisterna.
― Jerry... É você, Jerry?
Lumley girou nos calcanhares ao escutar a voz. Então ela veio, flutuando das
sombras de um pequeno bosque como um fantasma. Era mesmo uma mulher da metrópole
e, naquele momento, parecia ser a mulher mais linda que eu já vira. Senti vontade de me
aproximar para dizer-lhe o quanto me alegrava saber que, afinal, ela estava bem. Usava uma
pesada roupa de lã verde, um poncho, creio que assim chamam. Flutuava ao redor dela. Os
cabelos escuros esvoaçavam ao vento selvagem como a água de um riacho em dezembro,
antes de ser congelado pelo inverno.
Talvez eu tenha avançado um passo em direção a ela, pois senti a mão de Tookey
em meu ombro, calejada e quente. E, não obstante ― como devo dizer? ― eu ansiava por
ela, tão morena e linda, com aquele poncho verde flutuando ao redor do pescoço e dos
ombros, tão exótica e estranha a ponto de me fazer pensar em alguma bela mulher de um
dos poemas de Walter de la Mare.
― Janey! ― gritou Lumley. ― Janey!
E começou a avançar pela neve em direção a ela, com os braços estendidos.
― Não! ― berrou Tookey. ― Não, Lumley!
Ele nem olhou... mas ela, sim. Olhou para nós e sorriu. E quando ela sorriu, senti
meus anseios, meu desejo, transformarem-se num pavor tão frio quanto a sepultura, tão
branco e silencioso quanto ossos envoltos numa mortalha. Mesmo da elevação do terreno,
conseguíamos distinguir o sinistro brilho vermelho naqueles olhos. Eram menos humanos
que os olhos de um lobo. E quando ela sorriu, percebemos como seus dentes se tinham
tornado compridos. Ela deixara de ser humana. Era uma criatura morta que, de algum modo,
voltara à vida naquela negra tempestade uivante.
Tookey fez o Sinal da Cruz para ela, que se encolheu momentaneamente... e depois
tornou a sorrir para nós. Estávamos longe demais e, talvez, apavorados demais.
― Pare! ― sussurrei. ― Não podemos impedir?
― Tarde demais, Booth! ― replicou Tookey, sombrio.
Lumley chegara até ela. Ele próprio parecia um fantasma, coberto de neve como
estava.
Estendeu as mãos para ela... e então começou a gritar. Eu escutarei aquele som em
meus pesadelos: um homem adulto gritando como uma criança assustada por um sonho
mau.
Tentou afastar-se dela, recuar, mas os braços dela, compridos, nus, brancos como a
neve, moveram-se como serpentes e o enlaçaram. Pude vê-la tombar a cabeça de lado e, em
seguida, levá-la à frente...
― Booth! ― exclamou Tookey com voz rouca. ― Temos que sair daqui!
Portanto, fugimos. Suponho que haja quem diga que fugimos como ratos
assustados, mas é porque não estiveram lá naquela noite. Voltamos sobre nossos próprios
rastros, caindo, levantando, escorregando, deslizando. Eu olhava repetidamente por cima do
ombro, a fim de verificar se a mulher vinha atrás de nós, com aquele sorriso medonho e
observando-nos com aqueles olhos vermelhos.
Voltamos ao Scout e Tookey se dobrou em dois, segurando o peito.
― Tookey! ― exclamei, deveras amedrontado. ― O que...
― Coração ― disse ele. ― Está ruim há mais de cinco anos. Coloque-me no outro
assento, Booth. Vamos cair fora daqui!
Enfiei um braço por baixo de seu casaco e, não sei como, consegui colocá-lo no
carro e sentá-lo no banco do passageiro. Ele recostou a cabeça no encosto do banco e fechou
os olhos. Tinha a pele amarela, com aparência de cera.
Dei a volta pela frente do capô, correndo, e quase esbarrei na garotinha. Ela estava
parada junto à porta do motorista, com os cabelos presos à moda Maria Chiquinha, usando
apenas um leve vestido amarelo.
― Moço ― disse ela, numa voz alta e nítida, tão doce quanto a névoa matinal. ―
Quer me ajudar a encontrar minha mãe? Ela foi embora e estou com tanto frio...
― Queridinha ― respondi ―, queridinha, acho melhor subir no carro. Sua mãe...
Interrompi-me e, se alguma vez estive prestes a desmaiar, foi naquele momento. A
garotinha estava parada ali, mas seus pés estavam em cima da neve e não havia pegadas em
qualquer direção.
Então, ela olhou para mim ― Francie, a filha de Lumley. Tinha apenas sete anos de
idade e continuaria a tê-los por uma infinidade de noites. Seu rostinho tinha uma horrível
brancura cadavérica, os olhos um vermelho prateado que dava vontade da gente se atirar
neles. E logo abaixo do maxilar eu pude ver dois furinhos como picadas de alfinete, as
bordas horrivelmente laceradas.
Ela estendeu os braços para mim e sorriu.
― Pegue-me no colo, moço ― pediu suavemente. Quero dar-lhe um beijo. Então, o
senhor pode me levar à minha mamãe.
Eu não queria, mas nada pude fazer. Estava curvado para a frente, os braços
estendidos.
Pude ver sua boca se abrindo e as pequenas presas salientes por detrás de seus
lábios rosados. Algo lhe escorreu pelo queixo, prateado e brilhante. Com um pavor surdo,
distante, dei-me conta de que ela estava babando.
Suas mãos pequenas me seguraram pelo pescoço e eu pensei: Bem, talvez não seja
tão ruim, depois de algum tempo...
Então, algo negro voou de dentro do Scout e atingiu-a no peito. Ocorreu uma
explosão de fumaça com cheiro esquisito, um relâmpago que sumiu instantaneamente. Ela
recuou, sibilando. O rosto retorcia-se numa máscara vulpina de raiva, ódio e dor. Ela se
virou de lado... e desapareceu. Num momento ela estava ali, no momento seguinte, havia
apenas um redemoinho de neve que se parecia um pouco com um vulto humano.
Então, o vento soprou-o para longe.
― Booth! ― sussurrou Tookey. ― Depressa, agora!
E eu me apressei. Mas não tanto que não tivesse tempo para apanhar o que ele
jogara na garotinha vinda do inferno. Era a Bíblia de sua mãe.
Isso ocorreu há algum tempo. Agora, estou mais velho ― e já não era um frangote
naquela ocasião. Herb Tooklander faleceu há dois anos. Morreu tranqüilamente, durante a
noite. O bar ainda existe, um casal de Waterville o comprou, gente boa, mantendo-o quase o
mesmo. Mas não vou muito lá. De algum modo, parece-me diferente sem a presença de
Tookey.
As coisas em Jerusalem's Lot continuam praticamente como sempre foram. No dia
seguinte, o xerife encontrou o carro daquele sujeito, o tal Lumley, sem gasolina e com a
bateria arriada. Nem Tookey nem eu dissemos uma palavra a respeito. De que adiantaria? E,
de vez em quando, algum viajante de carona ou alguém que veio acampar na região
desaparece lá por perto, em Schoolyard Hill ou nas proximidades do cemitério. Encontram a
mochila ou o livro de bolso do sujeito, ensopados pela neve ou pela chuva, ou por algo
semelhante. Mas nunca encontram a pessoa.
Ainda tenho pesadelos com aquela noite tempestuosa em que fomos até lá. Não
tanto com a mulher quanto com a garotinha e o modo como esta sorriu e estendeu os braços
para que pudesse pegá-la no colo, para que ela pudesse dar-me um beijo. Mas estou velho e
em breve chegará o tempo em que os pesadelos terminam.
Talvez vocês tenham ocasião de viajar pelo sul do Maine qualquer dia desses. Um
panorama bonito. Talvez até mesmo parem no bar do Tookey para um drinque. É um bom
lugar. Os novos donos o mantiveram o mesmo. Portanto, tomem seu drinque e meu
conselho é que continuem logo rumo ao norte. Seja lá por que motivo for, não tomem a
estrada que vai para Jerusalem's Lot.
Em especial, não depois do anoitecer.
Por lá ainda existe uma garotinha. E creio que ela ainda está à espera do beijo de
boanoite.Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-68067829551963752412015-11-07T01:17:00.001-03:002015-11-07T01:17:20.548-03:00A casa do barco - Escuridão Total -<blockquote class="tr_bq">
<i><b><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">As estrelas verdes estão caindo, trazendo desequilíbrio... - Fome, sono, sede, pesadelos, desprezo e revelação.</span></b></i></blockquote>
<blockquote class="tr_bq">
<i style="background-color: #eeeeee;">- Durmam, meus amigos, durmam... - E assim disse a grossa voz. </i></blockquote>
<br />
<br />
<br />
Freedie Chawer providencia de dentro do armário de madeira que se localizava em um depósito pequeno (somente para guardar o que não cabia nas prateleiras), fitas adesivas, sete rolos dela, uma marca famosa nos Wall-Mart's da cidade, no rótulo dizia:<br />
- Master Silver Tape - ultra forte, 25 kgs (O que para Tom e Freedie, provavelmente, fazia dela única). Ele permanece de pé dentro da sala, tirando tudo o que dava para se aproveitar e ser reutilizado como porta. Lembra de duas tábuas, que estas, foram sobras de um conserto em um barco antigo e ele havia deixado-as por lá, intocadas por anos, debaixo de...<br />
- Os freezers! - Freedie pensa e capta a ideia de ir busca-las - Caminhando de volta para o início da casa, de encontro aos sobreviventes.<br />
<br />
Lecter está embraçando todos em uma manta de algodão que estava lacrada em uma das prateleiras do fundo, quase que oculta entre artigos de pesca e cartuchos e também pentes para as armas:<br />
- Esses filhos-da-mãe deviam estar tentando fazer uma loja aqui - ele pensa. Logo o pensamento vai embora como a velocidade que as balas saíam daquela M3 por um chamado de Freedie para ajuda-lo com o freezer.<br />
Eles tinham um certo tempo até a névoa congelante do lado de fora não afetasse ninguém com o frio, principalmente Tom e Tommy que estavam maus ainda.<br />
<br />
Freedie deixa uma das tábuas de mais ou menos um metro e meio de largura e também um metro e meio de altura, deixando-a na horizontal, ele pede para Tommy deitar a sua da mesma forma também em cima, assim o as brechas pequenas poderiam ser sobrepostas com a Master Tape. Não trazia proteção de qualquer bicho do lado de fora, mas trazia proteção à saúde de Tommy e Tom. - E isso já é suficiente - Freedie deixa escapar, baixinho. Lecter pisca um dos olhos, desenrolando a fita adesiva e fazendo um som ao cortar um pedaço com os dentes.<br />
- Pregue na diagonal, funcionará como rede para as tábuas deixando-as estáveis por ora. - Diz Freedie Chawer. E novamente Lecter anui, amigavelmente. Dava para ver de longe que não havia rixas entre os dois, se trabalhassem juntos o que não estava acontecendo quando se conheceram, iriam conseguir sobreviver aquilo, ou pelo menos durar um pouco mais. Lecter Humpt não recebe ordens, também era descendente do exército, e como Chawer ele fora o "Lobo-mestre" que protegia o próprio bando, e não era bonito baixar a cabeça na frente de ninguém. Independente da situação. Era como: <i style="color: #666666;">morra mas não se entregue! </i>- um dos filmes que mostravam as aventuras de Tex (um cara que representava um soldado em uma guerra que se assemelhava a que tinha ocorrido no Vietnam) que Lecter tanto assistia.<br />
- Tudo pronto, agora precisamos pensar em como sair daqui! - Exclama notoriamente Freedie. - Lecter retribui fazendo um sinal como o de uma câmera invisível que possuía em uma das mãos e novamente torna a piscar para Freedie fazendo o sinal de legal com os dedos.<br />
<br />
As tábuas estavam em posições horizontes, como a debaixo estava próxima ao chão e cercada pela Master Tape de 25kg, então esta por sua vez aparentava ser mais estável estando rigidamente de pé. Já a segunda, estava inclinada, apenas um pouco, uma espécie de improviso de Lecter a fez ficar a mais em pé e segura para não se soltar, o mais possível.<br />
- <i><span style="color: #666666;">Isso dá conta. </span></i>- Pensa Lecter - <i><span style="color: #666666;">Isso dará conta </span></i>- O pensamento se segue - <i><span style="color: #666666;">Por ora.</span></i><br />
<span style="color: #666666;"><i><br /></i></span>
Freedie volta da "sala-de-suprimentos" com um ideia em mente. Uma boa ideia e óbvia também. Na verdade eram duas, a outra ele teve depois de contar para Lecter.<br />
- Lecter... Bem... Analisando este ponto de vista, nós poderíamos deixar todas as coisas da sala aqui e se refugiarmos lá dentro, a porta seria um freezer, possibilitaria maior segurança do que aqui. Lecter se manteve calado por um tempo. Depois olhou para a porta com as tábuas que poderiam cair somente com um simples chute, e com um morder em um palito que achara derivando pelo chão, no canto de sua boca, ele vira para Freedie, e apenas meneia com a cabeça para dizer que sim.<br />
<br />
Logo após o trabalho duro e as translocações dentro da casa do barco, vêm dizer a segunda ideia para Lecter.<br />
- Pense bem...- ele põe uma das mãos na jaqueta de Lecter Humpt, que este apenas o acompanha com os olhos. - Se eles perderem um de nós, ficará mais difícil para o outro cuidar de todos e proteger ao mesmo tempo. Pense bem... - Agora ele aperta o ombro um pouco mais firme - Se um ficar de guarda aqui fora com uma arma em mãos, ficará mais fácil para que possamos nos defender. Você sabe quem têm mais... Sabe que haverá mais. - Ele meneia a cabeça forçando a dizer sim e apertando seu ombro. No canal na tv dentro do Wall-mart, enquanto ele ajeitava as compras do mês, ouviu que fazendo aqueles gestos era possível fazer com que a pessoa tenha um êxito maior em ficar propensa a dizer o que você quer que ela diga, o que chamam de psicologia barata.<br />
- Que opção mais eu tenho? - Ele diz tirando o palito de dentes da boca e juntando a alguns que foi catando no chão, quebrou um ao meio, mostrou-os a Freedie, como um mágico faz para mostrar que o baralho é totalmente normal (o que não é) e misturou-os na mão e esticou para Freedie, subindo uma das sobrancelhas, sendo convencido.<br />
- Então quer dizer que quem puxar o quebrado está livre?<br />
- Sim. Puxar este é mais difícil, então quem puxar estará com sorte hoje. - Responde Lecter. - Quer começar?<br />
- Sim, claro. - E não é que na primeira tentativa Freedie puxou o quebrado. Aquela cena os fizeram rir como duas crianças, bastante.<br />
<br />
Lecter Humpt já estara pondo a mão para dentro da pequena brecha da porta e fazendo um legal com os dedos,<br />
- Então é isso, Lec. - Diz Freedie.<br />
instantaneamente aquele sinal se transformou em um único dedo levantado, mostrando-lhe o dedo do meio.<br />
- Cuidado com a bruxa, Lec. - Tom diz, com uma voz fraca e um bocejo sonolento. Freedie sela a porta com o freezer. Esperando ele...<br />
Ser por todo o resto da noite.<br />
<br />
Lecter senta com as pernas esticadas e recostado na parede, suas mãos seguram firme a submetralhadora M3 e ao seu lado está dois pentes e uma caixa de balas com sessenta unidades - suficiente para mais dois pentes - Ele pensa.<br />
.<br />
.<br />
.<br />
.<br />
.<br />
.<br />
Ele verifica o relógio:<br />
- Duas da manhã. - Lecter pensa rapidamente. - Ainda afundado na escuridão pelas próximas quatro horas e meia até o primeiro fio de luz cruzar o céu.<br />
Ele escuta o ressoar de passos em sua memória e olha para as tábuas provisoriamente colocadas, lembra da cabeça e volta sua visão para a cabeça no chão e se recorda que a jaqueta que estara usando agora estava enrolada naquela bola de ossos. Isso causa-lhe arrepios sucessivos. Isso também se segue com o início do que ele chamara de "martelinho-dourado na mente", o que nós se referimos a um começo de dor de cabeça.<br />
Isso também não era bom.<br />
Pois isso lhe trazia mais arrepios por estar sozinho.<br />
E aqueles olhos vindo da escuridão olhando para ele também,<br />
- Apenas uma bola de ossos - ele pensa. - mas que continua olhando para você depois de morta.<br />
Ele sentia aquilo olhando para ele como se estivesse viva.<br />
Ele a sente piscar.<br />
E isso lhe causava arrepios repulsivos.<br />
<br />
<br />
- Cinco horas. - Lecter murmura olhando novamente para o relógio. E o silêncio dentro do quarto é preocupante e confortador ao mesmo tempo. Talvez conseguiu cochilar uma hora ou outra durante a madrugada. Ele olha para a porta improvisada, não a do quarto, mas a da entrada e a vê aberta.<br />
Ele se levanta de imediato já mirando na escuridão total.<br />
Uma luz verde emana de lá, e vários pontinhos seguem a luz principal se elevando no ar e iluminando tudo o que permanecia no escuro.<br />
A arma cai no chão e por ser automática acaba atirando duas ou três vezes antes de parar, Lecter está hipnotizado, enfeitiçado pela luz.<br />
A luz diz algo baixo.<br />
Lecter diz que não entendeu, mas logo após apenas confirma com a cabeça e caí no chão, desmaiado.<br />
Suas forças foram embora.<br />
Freedie corre do quarto e observa Lecter no chão, em seguida, ele também caí sem forças.<br />
E isso acontece com Liz, Maggie, Tommy e Tom.<br />
Todos no chão. E no relógio de Lecter Humpt, faz sequenciados bips, anunciando que já era nove horas da manhã.<br />
<br />
A bola cabeluda de ossos rola para fora seguindo a luz verde e os pontinhos também verdes, seguida por sua espinha dorsal que rasteja como uma cobra.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Sumindo na escuridão Total.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />Anonymousnoreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-33881207583206790972015-11-05T14:01:00.001-03:002015-11-05T14:01:52.097-03:00O homem que adorava flores - Stephen king Short Story - Night Shift (sombras da noite - pt - br)<br />
No início de uma noite de maio de 1963, um jovem com a mão no bolso subia
energicamente a Terceira Avenida em Nova York. O ar era suave e lindo, o céu escurecia
gradativamente de azul para o belo e tranqüilo violeta do crepúsculo. Existem pessoas que
amam a metrópole e aquela era das noites que motivavam esse amor. Todos os que estavam
parados às portas das confeitarias, lavanderias e restaurantes pareciam sorrir.<br />
Uma velha
empurrando dois sacos de verduras num velho carrinho de bebê sorriu para o jovem e o
cumprimentou<br />
― Oi, lindo! O jovem retribuiu com um leve sorriso e ergueu a mão num aceno. Ela
seguiu caminho, pensando: Ele está apaixonado.
O jovem tinha aquela aparência. Usava um temo cinza-claro, a gravata estreita
ligeiramente frouxa no colarinho, cujo botão estava desabotoado. Tinha cabelo escuro,
cortado curto. Pele clara, olhos azuis-claros. Não era um rosto marcante, mas naquela suave
noite de primavera, naquela avenida, em maio de 1963, ele era lindo e a velha refletiu com
instantânea e doce nostalgia que na primavera qualquer pessoa pode ser linda... se estiver
indo às pressas encontrar-se com a pessoa de seus sonhos para jantar e, talvez, depois
dançar. A primavera é a única estação em que a nostalgia parece nunca tornar-se amarga e a
velha seguiu seu caminho satisfeita por haver cumprimentado o rapaz e alegre por ele haver
retribuído o cumprimento erguendo a mão num aceno.<br />
<br />
O jovem atravessou a Rua 66 andando a passos ágeis e com o mesmo leve sorriso
nos lábios. Na metade do quarteirão estava um velho junto a um surrado carrinho de mão
cheio de flores ― cuja cor predominante era o amarelo; uma festa amarela de junquilhos e
crocos. O velho também tinha cravos e algumas rosas de estufa, na maioria amarelas e
brancas. Comia um doce e escutava um volumoso rádio transistorizado equilibrado de
través no canto do carrinho.
O rádio difundia notícias ruins que ninguém escutava: um assassino que abatia as
vítimas a martelo ainda estava à solta; John Fitzgerald Kennedy declarava que a situação
num pequeno país asiático chamado Vietnã (que o locutor pronunciava "Vaitenum"),
merecia ser observada com atenção; o cadáver de uma mulher não identificada fora retirado
do East River; um júri de cidadãos deixara de pronunciar um manda-chuva do crime, na
campanha movida pelas autoridades municipais contra o tráfico de tóxicos; os soviéticos
tinham explodido uma bomba nuclear.<br />
<br />
Nada daquilo parecia real, nada daquilo parecia
importante. O ar era suave e gostoso. Dois homens com barrigas de bebedores de cerveja
estavam à porta de uma padaria, jogando níqueis e gozando-se mutuamente. A primavera
estremecia na orla do verão e, na metrópole, o verão é a estação dos sonhos.
O jovem passou pelo carrinho de flores e o som das notícias ruins ficou para trás.
Ele hesitou, olhou por cima do ombro, parou para pensar um momento. Enfiou a mão no
bolso do paletó e apalpou mais uma vez algo que estava lá dentro. Por um instante, seu rosto
pareceu intrigado, solitário, quase acossado. Então, ao retirar a mão do bolso, reassumiu a
expressão anterior de entusiástica expectativa.
Retornou ao carrinho de flores, sorrindo. Levaria algumas flores para ela, que
gostaria.<br />
<br />
Ele adorava ver os olhos dela faiscarem de surpresa e prazer quando lhe levava algum presente<br />
― coisinhas simples, porque estava longe de ser rico.<br />
Uma caixa de
bombons.
Uma pulseira.<br />
Certa vez, só uma dúzia de laranjas de Valência, pois sabia que eram
as preferidas por Norma.<br />
― Meu jovem amigo ― saudou o vendedor de flores ao ver o homem de terno
cinzento voltar, correndo os olhos pelo estoque exposto no carrinho.
O vendedor devia ter sessenta e oito anos; usava um surrado suéter cinzento de tricô
e um boné macio a despeito da noite morna. Seu rosto era um mapa de rugas, os olhos
empapuçados.<br />
Um cigarro lhe tremia entre os dedos. Contudo, ele também se lembrava de
como era ser jovem na primavera ― jovem e tão apaixonado que corria para todos os lados.
Normalmente, a expressão no rosto do vendedor de flores era azeda, mas agora ele sorriu
um pouco, assim como sorrira a velha que empurrava as compras no carrinho de bebê,
porque aquele rapaz era deveras um caso óbvio. Limpando farelos de doce do peito da
suéter larga, pensou: Se esse rapaz estivesse doente, certamente o manteriam no CTI.<br />
― Quanto custam as flores? ― indagou o jovem.<br />
― Preparo-lhe um belo buquê por um dólar. Aquelas rosas são de estufa, por isso
um pouco mais caras. Setenta centavos cada uma. Vendo-lhe meia dúzia por três dólares e
melo.<br />
― Caras ― comentou o rapaz.<br />
― Nada sai barato, meu jovem amigo. Sua mãe
nunca lhe ensinou isso?
O jovem sorriu.<br />
― Talvez tenha mencionado algo a respeito.<br />
― Claro. Claro que ela ensinou. Dou-lhe meia dúzia de rosas: duas vermelhas, duas
amarelas e duas brancas. Não possa fazer melhor que isso, posso? Colocarei uns raminhos
de cipreste e umas folhas de avenca ― elas adoram. Ótimo. Ou prefere o buquê por um
dólar?<br />
― Elas? ― perguntou o rapaz, ainda sorrindo.<br />
― Meu jovem amigo ― disse o vendedor de flores, jogando o cigarro na sarjeta e
retribuindo o sorriso ―, em maio, ninguém compra flores para si mesmo. É uma lei
nacional, entende o que quero dizer?<br />
O rapaz pensou em Norma, em seus olhos felizes e surpresos, em seu doce sorriso, e
meneou ligeiramente a cabeça.
― Creio que entendo, por sinal.<br />
― Claro que entende. O que me diz, então?<br />
― Bem, o que você acha?<br />
― Vou-lhe dizer o que acho. Ora! Conselhos ainda são gratuitos, não são?<br />
O rapaz tornou a sorrir e disse:<br />
― Creio que é a única coisa gratuita que resta no mundo.<br />
― Pode ter absoluta certeza disso ― declarou o vendedor de flores. Muito bem,
meu jovem amigo. Se as flores forem para sua mãe, leve para ela o buquê. Alguns
junquilhos, alguns crocos, alguns lírios-do-vale. Ela não estragará tudo, dizendo: "Oh, meu
filho, adorei as flores, mas quanto custaram? Oh, é muito caro. Será que ainda não sabe que
não deve desperdiçar seu dinheiro? "<br />
O jovem jogou a cabeça para trás e riu.<br />
O vendedor de flores continuou:
― Mas se forem para sua pequena, é muito diferente, meu filho, e você sabe muito
bem.
Leve-lhe rosas e ela não se transformará num guarda-livros, entende? Ora! Ela vai
abraçar você pelo pescoço e...<br />
― Levarei as rosas ― disse o rapaz.
Então, foi a vez de o vendedor de flores rir.<br />
Os dois homens que jogavam níqueis
olharam para ele e sorriram.<br />
― Ei, garoto! ― chamou um deles.<br />
― Quer comprar barato uma aliança de
casamento? Venderei a minha... não a quero mais.
O jovem sorriu, corando até as raízes dos cabelos escuros.
O vendedor de flores escolheu seis rosas de estufa, aparou os talos, borrifou-as com
água e embrulhou-as num comprido pacote cônico.<br />
― Hoje à noite o tempo será exatamente como você quer ― anunciou o rádio. ―
Tempo bom e agradável, temperatura por volta dos vinte e um graus, perfeito para subir ao
terraço e olhar as estrelas, se você for do tipo romântico. Aproveite, Grande Nova York,
aproveite!
O vendedor de flores prendeu as bordas do papel com fita gomada e aconselhou o
rapaz a dizer à namorada que um pouco de açúcar adicionado à água na jarra das rosas
serviria para conservá-las frescas por mais tempo.<br />
― Direi a ela ― prometeu o jovem entregando ao vendedor de flores uma nota de
cinco dólares. ― Obrigado.<br />
― É o meu serviço, meu jovem amigo ― respondeu o vendedor de flores,
entregando ao rapaz o troco de um dólar e meio. Seu sorriso se tornou um pouco tristonho:<br />
― Beije-a por mim.<br />
<br />
No rádio, os Four Seasons começaram a cantar "Sherry". O rapaz continuou a subir
a avenida, os olhos abertos e entusiasmados, bem alertas, olhando não tanto ao seu redor
para a vida que fluía pela Terceira Avenida, mas para o interior e o futuro, na expectativa.
Entretanto, determinadas coisas lhe causavam impressão: uma jovem mãe empurrando um
bebê num carrinho, o rosto da criança comicamente lambuzado de sorvete; uma garotinha
pulando corda e cantarolando: "Betty e Henry em cima da árvore, SE BEIJANDO! Primeiro
vem o amor, depois o casamento e lá vem Henry com o bebê no carrinho, empurrando!"
Duas mulheres conversavam em frente a uma lavanderia, trocando informações sobre a
gravidez enquanto fumavam. Um grupo de homens olhava pela vitrina de uma loja de
ferragens para uma imensa TV a cores com uma etiqueta de preço de quatro algarismos ― o
aparelho mostrava um jogo de beisebol e os jogadores pareciam verdes. Um deles tinha cor
de morango e os New York Mets estavam vencendo os Phillies pela contagem de seis a um
no último tempo.
O rapaz prosseguiu, carregando as flores, sem perceber que as duas mulheres
grávidas em frente à lavanderia tinham parado momentaneamente de conversar e o fitavam
com olhos sonhadores quando ele passou com o embrulho; o tempo de receberem flores já
terminara há muito para elas. Também não percebeu o jovem guarda de trânsito que parou
os carros na esquina da Terceira Avenida com a Rua 69 para deixá-lo atravessar; o guarda
era noivo e reconheceu a expressão sonhadora na fisionomia do rapaz por causa da imagem
que via no espelho ao fazer a barba, onde vinha observando aquela mesma expressão
ultimamente. Não percebeu as duas adolescentes que cruzaram com ele em sentido contrário
e depois soltaram risadinhas.
Parou na esquina da Rua 73 e virou à direita. A rua era um pouco mais escura que
as outras, ladeada por casas transformadas em prédios de apartamentos, com restaurantes
italianos nos porões. Três quarteirões adiante, um jogo de beisebol de rua continuava
animado à luz do anoitecer.<br />
O jovem não chegou até lá; depois de andar meio quarteirão,
entrou numa travessa estreita.
Agora as estrelas tinham surgido no céu, cintilando levemente; a travessa era escura
e cheia de sombras, com vagas silhuetas de latas de lixo. O jovem estava sozinho, agora...
não, não totalmente. Um berro ondulante soou na penumbra avermelhada e ele franziu a
testa. Era a canção de amor de um gato e isso nada tinha de lindo.
Andou mais devagar e consultou o relógio. Faltavam quinze para as oito e a
qualquer momento Norma...
Então, avistou-a, vindo pelo quintal em direção a ele, usando calça comprida
azulmarinho e uma blusa de marinheiro que fizeram o coração do rapaz doer. Era sempre
uma surpresa avistá-la pela primeira vez, sempre um choque delicioso ― ela parecia tão
jovem.
Agora, o sorriso dele brilhou ― radiante. Caminhou mais depressa.
― Norma! ― chamou ele.
Ela ergueu os olhos e sorriu, mas... quando se aproximou o sorriso murchou.
O sorriso do rapaz também tremeu um pouco e ele ficou momentaneamente
inquieto. O rosto acima da blusa de marinheiro lhe pareceu subitamente difuso. Estava
ficando escuro... estaria ele enganado? Certamente que não. Era Norma.<br />
― Eu trouxe flores para você ― disse ele, feliz e aliviado, entregando-lhe o
embrulho.
Ela o encarou por um momento, sorriu ― e devolveu as flores.<br />
― Muito obrigada, mas está enganado ― declarou. ― Meu nome é...<br />
― Norma ― sussurrou ele.
E tirou o martelo de cabo curto do bolso do paletó, onde o guardara durante todo o
tempo.
― Elas são para você, Norma... sempre foi para você... tudo para você.
Ela recuou, o rosto um círculo branco difuso, a boca uma abertura negra, um "Ó" de
pavor ― e não era Norma, pois Norma morrera há dez anos. E não fazia diferença. Porque
ela ia gritar e ele golpeou com o martelo para conter o grito, para matar o grito. E quando
desferiu a martelada, o embrulho de flores caiu-lhe da outra mão, abrindo-se e espalhando
rosas vermelhas, amarelas e brancas perto das amassadas latas de lixo onde os gatos faziam
um amor alienado no escuro, gritando de amor, gritando, gritando.
Ele golpeou com o martelo e ela não gritou, mas poderia ter gritado porque não era
Norma, nenhuma delas era Norma, e ele golpeou, golpeou, golpeou com o martelo. Ela não
era Norma e por isso ele golpeava com o martelo, como fizera cinco vezes anteriormente.
Sem saber quanto tempo depois, ele guardou o martelo de volta no bolso do paletó e
recuou para longe da sombra escura estendida nas pedras do calçamento, para longe das
rosas espalhadas perto das latas de lixo. Deu meia-volta e saiu da travessa estreita. Era noite
fechada, agora. Os jogadores de beisebol tinham voltado para casa. Se existissem manchas
de sangue em seu terno, elas não apareceriam por causa do escuro. Não no escuro daquela
noite de final de primavera. O nome dela não era Norma mas ele sabia como era seu próprio
nome. Era... era... Amor.
Chamava-se amor e perambulava pelas ruas escuras porque Norma o esperava. E
ele a encontraria. Algum dia, em breve.
Começou a sorrir. A agilidade voltou-lhe ao andar quando ele desceu a Rua 73.<br />
<br />
Um
casal de meia-idade sentado nos degraus do prédio onde morava observou-o passar de
cabeça tombada para um lado, olhar distante, um leve sorriso nos lábios. Depois que ele
passou, a mulher perguntou:<br />
― Por que você nunca mais tem aquela aparência?<br />
― Hem?<br />
― Nada ― disse ela.<br />
Mas observou o jovem de terno cinza desaparecer na escuridão da noite e refletiu
que se existia algo mais lindo que a primavera:<br />
<br />
<br />
era o amor dos jovens...<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />Anonymousnoreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-27257029852798545552015-11-04T15:55:00.004-03:002015-11-05T07:57:37.653-03:00A casa do barco - "O significado de "Agonia".<h4 style="text-align: center;">
" <strike style="font-style: italic;">T</strike><i>alvez o preço a se pagar por um estadia no inferno seja alto demais ou talvez seja tão barato, mas tão barato, que todos os seres humanos nascem com uma passagem de ida e quando se dão conta de que estão lá já se torna impossível sair, esse é o jogo. Esse é... O propósito de vida:</i><i><br /></i></h4>
<blockquote class="tr_bq" style="text-align: center;">
<b><i>- Apenas conseguir pensar em um jeito de sair do inferno. De qualquer forma. Apenas <strike>sair</strike>...</i>"</b></blockquote>
<div style="text-align: center;">
<i><br /></i></div>
<div style="text-align: center;">
<i><br /></i></div>
<div style="text-align: left;">
<i><br /></i></div>
<div style="text-align: left;">
<i><br /></i></div>
<div style="text-align: left;">
<i><br /></i></div>
<div style="text-align: left;">
<i><br /></i></div>
<div style="text-align: left;">
Lecter procura alimento em um dos três freezers e se depara com carne enlatada, e bem, carne enlatada podia ser cozida mas sua fome não se importa com o aspecto cru que a carne tinha.</div>
<div style="text-align: left;">
Do outro lado da sala Maggie e Liz estão penteando uma a outra com uma escova que havia em uma das prateleiras. Tom Chawer observa aquilo por alguns segundos questionando a si mesmo a razão por terem uma escova na casa do barco, mas a lâmpada dentro da cabeça é mudada de curso por outras coisas bem mais importantes do que lembrar-se que: trouxe uma escova e não levou de volta para casa, pois realmente estava com preguiça, e acabou por pegar no sono - Era mais ou menos isso que devia ter acontecido. Ele sintoniza o rádio, mas seus olhos permanecem estagnados nas garotas.</div>
<div style="text-align: left;">
A sala é abafada novamente por um som de estática até pequenos grunhidos se tornarem uma voz limpa e com ar de melancolia:</div>
<div style="text-align: left;">
<br /></div>
<blockquote class="tr_bq" style="text-align: left;">
<span style="background-color: #f5f3f0; color: #333333; font-family: "georgia" , "times" , "times new roman" , serif; font-size: 18px; line-height: 26.28px;"><b style="background-color: #cccccc;">- Observei quando ele abriu o sexto selo. Houve um grande terremoto. O sol ficou escuro como tecido de crina negra, toda a lua tornou-se vermelha como sangue, e as estrelas do céu caíram sobre a terra como figos verdes caem da figueira quando sacudidos por um vento forte!</b></span></blockquote>
- E assim diz em Apocalipse 6:12-13 - Freedie Joe disse com a bíblia na mão esquerda e pausando uma página com o um dos dedos. A voz continuara, dessa vez berrando, e Tom acompanhou, imitando:<br />
<span style="background-color: #f5f3f0; color: #333333; font-family: "georgia" , "times" , "times new roman" , serif; font-size: 18px; line-height: 26.28px;"><br /></span>
<br />
<blockquote class="tr_bq">
<h4>
<span style="background-color: #f5f3f0; color: #333333; font-family: "georgia" , "times" , "times new roman" , serif; font-size: 18px; line-height: 26.28px;">- O GRANDE DRAGÃO FOI LANÇADO FORA. ELE É A ANTIGA SERPENTE CHAMADA DIABO OU SATANÁS, QUE ENGANA TODO MUNDO. ELE E SEUS ANJOS FORAM LANÇADOS À TERRA!</span></h4>
</blockquote>
- Era a vovó que lia para a gente toda vez que íamos aos cultos nos domingos com ela. - Tom diz virando para Freedie e pousando sua mão em seu ombro. - Eu realmente ia para ouvir o pastor, enquanto você trocava olhares com Melissa. A filha do pastor de olhos azuis e loira, parecia que tinha descendência italiana, era o que falavam.<br />
Freedie sorri de uma forma nostálgica se perdendo naquelas memórias por uma fração de segundos. Era como achar um pote de ouro no fim do arco-íris sendo que você não se lembrava que havia um ali, ele pensa e anui com a cabeça.<br />
Suas memórias permanecem longe, ele se lembra:<br />
<br />
- Oi Melissa, você vai ao culto no sábado? - O garoto de quinze anos diz, foi seco e sem muitas palavras (isso escondia sua timidez, pelo menos para ele parecia que sim), ruivo, e com um corpo quase formado. Era Freedie Joe que era caçoado pelos amigos como "foguinho" ou "cabeça-de-palito-de-fósforo". Ele tinha vergonha de falar com ela, mas no final de contas ele sempre tomava coragem para falar algo,(por muitas vezes, a mesma coisa) e aquela pergunta, ele realmente tinha que fazer. Se ela não fosse, a igreja não teria graça. E além do mais tinha as reprises com sua avó em casa que lia tudo o que o pastor falara e relia sempre três ou quatro vezes a ponto de um dos netos dizer que realmente já entendeu tudo e ir embora da sala (as vezes tom fingia um dor de barriga, piscava para o irmão, e ele entendia e tentava confirmar).<br />
- Olá Freedie! - Ela sorri pelo canto dos lábios, usava batom vermelho pois o pai permitiu depois de muita insistência. Freedie ficou vermelho quase que instantaneamente. - Sim, eu vou hoje, e você? - Ela diz mantendo o sorriso. - Ele concorda com a cabeça - <br />
E era evidente que ele iria e foi.<br />
<br />
Madênia está de pé próximo a porta, mas não tanto, para dar tempo correr se algo chegar perto também. Seus olhos estão no céu, obviamente ela não consegue ver nada, senão a neblina enevoada e quase opaca. Poucos pontos começavam a aparecer no meio daquela fumaça, pontos verdes fluorescentes , e então o rádio falha e retoma ressurgindo de curtas estáticas dizendo:<br />
<blockquote class="tr_bq">
<i><b style="background-color: #cccccc;"><span class="highl" style="color: #001320; font-family: "trebuchet" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; line-height: 20px; text-align: justify;">- O sol ficou escurecido como coberto com roupa de luto, e toda a lua se tornou vermelha como se estivesse ensanguentada;</span><span style="color: #001320; font-family: "trebuchet" , "arial" , "helvetica" , sans-serif; line-height: 20px; text-align: justify;">e as estrelas do firmamento caíram sobre a terra, como figos verdes derrubados da figueira por um terrível vendaval. …</span></b></i></blockquote>
<br />
<br />
Tommy recobra a consciência por algum tempo, levantando-se da cadeira de balanço que agora balança sozinha, pelo o impulso.<br />
<br />
O vento muda.<br />
<br />
As paredes tornam a tremer mas dessa vez em uma escala maior, o frio passa na barriga de todos, era como derrubar o único forte que ainda os mantinham vivos e deixa-los à deriva. O som dos mil exércitos marchando para o confronto, se tornavam altos como martelos esmagando os ouvidos.<br />
Todos se juntavam em uma espécie de união que englobava Tommy no meio, como se defendendo-o.<br />
Freedie Joe está empunhando um rifle, não seria suficiente e ele sabia, apenas queria alimentar o próprio ego como "o protetor". Idiotice - ele pensa, mas afinal o que ali não era? Uma historinha-de- conto-de-fadas se tornando real, como se o lobo mal realmente existisse e o final de "a chapeuzinho-vermelho" terminasse com a vovó e a netinha inteiramente mutiladas.<br />
A porta da frente é praticamente arrancada para fora, e por sua vez, arremessada, amassada aos pés dos sete, intimidando os pobres corações mais do que já estavam.<br />
<br />
Se gritassem, ninguém os escutaria, mas e se escutassem, quem poderia dizer que iriam ajudar?<br />
<br />
A força do arremesso derrubou algumas prateleiras e fez com que uma submetralhadora M3 (presente do exército à Freedie Joe Chawer, que participou deste por longos dois anos) caísse aos pés de Lecter, que também segurou firme apontando para o escuro. Mirando no nada, Lecter Humpt e Freedie Joe fazem um sinal com as sobrancelhas, permitindo um ao outro a abrir fogo abertamente. Naquele momento Freedie percebeu seu companheiro de guerra, certamente ele tinha alguma ligação.<br />
Os tiros voam, minúsculas cápsulas que pareciam mosquitos. Os uivos chorosos de animais que estavam sendo acertados dão a Lecter e Joe uma espécie de adrenalina momentânea, os fazendo sorrir.<br />
Mas por quanto tempo aqueles sorrisos iriam durar?<br />
<br />
Talvez não muito:<br />
<br />
- Viu aquilo, Freedie? Nós pegamos os desgraçados! - Lecter diz amigavelmente.<br />
- Se juntarmos esse arsenal nós conseguimos sair daqui, eles não são imortais, morrem como cachorrinhos medrosos. - Freedie Joe ressalta, esperançoso.<br />
Ao carregarem as armas com os pentes reservas que ficam colados na arma com uma fita adesiva, (uma cortesia de Tom Chawer, em uma brincadeira de dizer que se as balas acabarem era sempre bom ter um plano em mente, mas caso não tiver, "<i><span style="color: #999999;">- descer a bala é sempre uma boa alternativa</span></i>" - Joe se recorda das palavras do irmão), dois dos (Cães?) animais de dentes sobressalentes e estranhamente brilhantes pulam e agarram o pescoço de Madênia, um de cada lado, e depois a arrastam deixando um rastro de suco sangrento pelo caminho, as unhas de Madênia quebram no chão, arrastando consigo do chão um pouco de sujeira no meio dos restos das toscas extremidades dorsais da mão. Ela já não conseguia mais falar, estava se afogando no próprio sangue e se seu agouro grave, ou melhor dizendo, seu gutural úmido pudesse ser traduzido, talvez aquilo seria: - <span style="color: #666666;"><i>Por favor, me ajudem!</i></span><br />
Seus olhos estão fitando todo o resto com um teor de desespero afundando em misericórdia. E suas mãos agarram uma última esperança chamada rodapé na frente da casa onde havia portas, e agora é apenas um vão gelado e só, sombrio atenuado em névoa. Somente. Apenas o tempo de Maggie se agarrar em Liz e virar seus olhos para ela dizendo: - <span style="color: #666666;"><i>Me desculpe, amiga.</i></span><br />
<span style="color: #666666;"><i><br /></i></span>
<span style="color: #666666;"><i><br /></i></span>
<span style="background-color: #eeeeee; color: #999999; font-family: "times" , "times new roman" , serif;"><i>Lá do meio eles ainda podiam ouvir uma risada histérica, uma risada de quem consegue completar sua vingança. Não podiam vê-lo, mas podiam senti-lo, e aquilo tudo era só um presente de cerimônia. Havia mais. Haverá mais.</i></span><br />
<span style="color: #444444;"><br /></span>
Todos ainda permanecem imóveis, com olhares de: - <i>Mas que Merd# foi essa?</i><br />
<i><br /></i>
Naquele momento todos se questionavam o significado de agonia.<br />
<br />
<br />
Freedie e Lecter continuavam a mirar no vácuo. Liz está abraçando Maggie. Tom Chawer está ao lado de Tommy, no chão, desvairado, que por sua vez sorri inutilmente para Tom e saí do ar novamente, talvez a razão seja o efeito do clonazepam que Freedie providenciou e o deu.<br />
Tom teve uma breve onda de ciúmes de Tommy, apenas porquê ele se manteve fora de sua mente durante aquela cena horrível e agora apagara no chão. <i><span style="color: #999999;">Filho da p#@...</span> </i>- Ele pensa, mas depois recosta sua cabeça na parede, sentando-se, e vira o rosto do irmão mais novo de Lecter para o outro lado.<br />
<br />
<br />
Todos respiram e algumas estão chorando em silêncio.<br />
<br />
Uma entrega é devolvida ao remetente:<br />
<br />
Apenas um globo, emaranhado de cabelo e sangue em ossos, ligada ao um fio que se chama "espinha dorsal", sem nenhum revestimento de carne, apenas o oco cadavérico e esbranquiçado.<br />
<br />
<br />
E então todos marcham de volta, tremendo as paredes da casa novamente. É o fim do primeiro encontro.<br />
<br />
<br />
Um último suspiro é dado, pelo rostos que se encontram apavorados, de Liz e Maggie.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Todos respiram fundo e Freedie usa a própria jaqueta para cobrir o rosto,<br />
<br />
<br />
<br />
eles podem...<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
finalmente descansar novamente.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
(Risos histéricos do escritor.)<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
- Por ora.<br />
<br />
<br />
<br />
<blockquote class="tr_bq" style="text-align: left;">
</blockquote>
<br />
<br />
<br />Anonymousnoreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-81770942936389346912015-10-28T15:33:00.000-03:002015-10-28T15:33:27.199-03:00A excursão -"Esta é a última chamada para a Excursão 701" – a agradável voz feminina ecoou através do Blue
Concourse no Departamento Terminal Portuário de Nova York. O DTP não mudara muito nos últimos
mais ou menos trezentos anos – continuava maltratado e um tanto amedrontador. A voz feminina
automatizada talvez fosse o detalhe mais agradável no local. – "Todos os passageiros munidos de
passagem deverão estar agora no salão-dormitório do Blue Concourse. Verifique se seus papéis de
confirmação estão em ordem. Obrigada."
O salão-dormitório no andar de cima nada tinha de maltratado. Era atapetado de parede a parede
em cinza-ostra. As paredes exibiam uma tonalidade branco casca-de-ovo e dela pendiam agradáveis
quadros abstratos. Uma permanente calmante progressão de cores se encontrava e revoluteava no teto.
Havia cem divãs no grande recinto, ordenadamente espaçados em fileiras de dez. Cinco atendentes da
Excursão circulavam por ali, falando em voz baixa e animada, enquanto ofereciam copos de leite. A
entrada ficava a um lado da sala, flanqueada por guardas armados e outro atendente da Excursão, que
no momento checava os papéis de confirmação de um passageiro retardatário, um homem de negócios
com expressão apoquentada e o World Times de Nova York dobrado debaixo de um braço. Na direção
exatamente oposta, o piso descia em uma espécie de calha, com cerca de metro e meio de largura e
talvez uns três de comprimento; essa passagem insinuava-se através de uma abertura sem portas, tendo
uma vaga semelhança com um escorrega para crianças.
A família Oates jazia lado a lado em quatro divãs-Excursão, perto do final da sala. Mark Oates e
Marilys, sua esposa, flanqueavam os dois filhos.
– Papai, vai me falar sobre a Excursão agora? – perguntou Ricky. – Você prometeu.
– Isso mesmo, pai, você prometeu – acrescentou Patrícia, com um agudo risinho sufocado, sem
motivo algum.
Um homem de negócios com a corpulência de um touro olhou para eles e depois voltou a
concentrar-se na pasta de papéis que examinava, enquanto jazia deitado de costas, os sapatos
reluzentes ordenadamente juntos. De algum lugar, chegou o murmúrio surdo de conversas e o rumor de
passageiros ajeitando-se nos divãs-Excursão.
Mark olhou para Marilys Oates e piscou. Ela piscou de volta, mas estava quase tão nervosa
quanto Patty parecia. Por que não? pensou Mark. Era a Primeira Excursão para os três. Ele e Marilys
haviam discutido as vantagens e inconveniências de uma mudança da família inteira por seis meses –
desde que ele fora notificado pela Texaco Water de que seria transferido para a Cidade de Whitehead.
Finalmente, decidiram que iriam todos e permaneceriam em Marte durante os dois anos em que Mark
ficaria lá. Agora, observando a palidez de Marilys, ele se perguntou se ela lamentava a decisão.
Olhou para o relógio e viu que ainda faltava meia hora para a partida da Excursão.
Havia tempo suficiente para contar a história... e imaginou que isso deixaria as crianças menos
nervosas. Quem sabe, talvez até acalmasse Marilys um pouco.
– Muito bem – decidiu-se.
Ricky e Pat o encaravam com seriedade. Ricky tinha doze anos e Pat nove. Disse novamente para
si mesmo, que Ricky estaria atolado no pântano da puberdade e sua filha provavelmente teria seios em
desenvolvimento, quando retornassem à terra. E de novo, achou difícil de acreditar. As crianças
freqüentariam a pequena Escola Mista de Whitehead, juntamente com os cento e poucos filhos de
engenheiros e pessoal da companhia de petróleo que lá estavam; seu filho bem poderia engajar-se em
uma viagem de campanha geológica a Fobos, não muitos meses distante. Era difícil de acreditar... mas
verdadeiro.
Querem saber? pensou torcidamente. Talvez isso também me traga certas vantagens.
– Até onde sabemos – começou ele – a Excursão foi inventada há cerca de trezentos e vinte anos
atrás, por volta de 1987, por um indivíduo chamado Victor Carune. Ele fez isso como parte de um
projeto privado de pesquisa, financiado por algum dinheiro do governo... e, eventualmente, o governo
tomou as rédeas, claro está. Por fim, a coisa foi passada para o governo e também para as companhias
de petróleo. O motivo de ignorarmos a data exata, é porque Carme era um tanto excêntrico...
– Está querendo dizer que ele era maluco, papai? – perguntou Ricky.
– Excêntrico significa só um pouquinho maluco, meu bem – disse Marilys, enquanto sorria para
Mark, por cima das crianças.
Ele pensou que sua esposa agora parecia algo menos nervosa.
– Oh!
– De qualquer modo, ele fez experiências com o processo por bastante tempo, antes de informar
ao governo o que descobrira – prosseguiu Mark – mas só deu a informação, porque estava ficando sem
dinheiro e eles não pretendiam continuar a financiá-lo.
– Seu dinheiro prontamente devolvido – disse Pat, tornando a dar aquela risadinha aguda.
– Exato, querida – disse Mark e desarrumou-lhe o cabelo delicadamente.
No extremo oposto do recinto, ele viu uma porta deslizar silenciosamente dando passagem a mais
dois atendentes, trajando os vivos macacões do Serviço Excursão e empurrando uma mesa rolante.
Sobre ela, havia um bocal de aço inoxidável preso a uma mangueira de borracha; debaixo da mesa,
esteticamente escondidas, Mark sabia que havia duas garrafas de gás; na sacola de malhas presa ao
lado, estavam cem máscaras descartáveis. Mark continuou falando, não querendo que os seus vissem
os representantes do Letes antes do momento oportuno.
E, se conseguisse tempo para relatar toda a história. eles acolheriam de braços abertos os
aplicadores do gás.
A alternativa também devia ser considerada.
– Naturalmente, vocês sabem que a Excursão é teletransporte, nem mais e nem menos – disse ele.
– Por vezes, na Química e Física das universidades, dão-lhe o nome de Processo Carune, mas em
realidade é teletransporte, tendo sido o próprio Carune a acreditar-se no que dizem – que o denominou
"a Excursão". Ele apreciava a Ficção científica e há uma história, escrita por um homem chamado
Alfred Bester e intitulada As estrelas são o nosso destino, na qual o autor emprega a palavra "excursão"
como teletransporte. Só que, no livro, pode-se fazer a Excursão apenas pensando nela, o que
evidentemente não podemos.
Os atendentes agora fixavam a máscara ao bocal de aço e a estendiam a uma mulher idosa, no
extremo oposto do recinto. Ela a tomou, inalou uma vez e caiu em seu divã, imóvel e flácida. Sua saia
subiu um pouco, revelando uma coxa bamba, semelhante a um mapa rodoviário de veias varicosas. Um
atendente gentilmente ajeitou a saia para ela, enquanto o outro se desfazia da máscara usada e afixava
uma nova. Era um processo que fazia Mark pensar nos copos plásticos dos quartos de motel. Desejava
ardentemente que Pat se acalmasse um pouquinho: vira crianças que precisavam ser subjugadas em
seus divãs e que, por vezes, gritavam enquanto a máscara de borracha lhes cobria o rosto. Não era uma
reação anormal em uma criança, pensou ele, porém era uma visão desagradável e não queria que
acontecesse a Patty. No tocante a Ricky, sentia-se mais confiante.
– Creio que se poderia dizer que a Excursão surgiu no exatíssimo momento – recomeçou. Falava
para Ricky, mas estendeu o braço e segurou a mão da filha. Os dedos de Pat se fecharam sobre os dele,
com imediata e amedrontada pressão. A palma dela estava fria, suando ligeiramente. – O mundo vinha
ficando sem petróleo e a maioria do que sobrara pertencia aos povos dos desertos do Oriente Médio,
que o usavam como arma política. Eles tinham formado um cartel petrolífero a que denominaram
OPEP...
– O que é um cartel, papai? – perguntou Patty.
– Bem, é um monopólio – respondeu Mark.
– Como um clube, meu bem – disse Marilys. – E a pessoa só podia entrar nesse clube se tivesse
quantidades de petróleo.
– Oh!
– Não tenho tempo para explicar toda a confusão – disse Mark. – Vocês vão estudar alguma coisa
disso na escola, mas foi uma confusão – e deixemos como está. Se você tinha um carro, só podia
dirigi-lo dois dias por semana, além do que, a gasolina custava quinze pratas antigas o galão...
– Puxa! – exclamou Ricky. – Ela hoje só custa quatro centavos o galão, não é, pai?
Mark sorriu.
– Aí está o motivo de estarmos indo para onde vamos. Ricky. Em Marte há petróleo bastante para
durar quase oito mil anos, enquanto que em Vênus há para outros vinte mil... Enfim, o petróleo não é
mais tão importante. Agora, aquilo de que mais precisamos é...
– Água! – gritou Patty.
O homem de negócios ergueu os olhos de sua papelada e sorriu para ela por um instante.
– Exato – disse Mark. – Porque nos anos entre 1960 e 2030, envenenamos a maioria da água que
possuíamos. A primeira extração de água das calotas de gelo marcianas foi chamada...
– Operação Canudinho – disse Ricky.
– Certo. Em 2045, mais ou menos. Contudo, muito antes disso, a Excursão estava sendo usada
para encontrar fontes de água potável aqui na terra. Agora, a água é nossa principal exportação
marciana... ficando o petróleo estritamente em posição secundária. Contudo, era importante naquela
época.
As crianças assentiram.
– A questão é que essas coisas sempre estiveram lá, mas só conseguíamos obtê-las por causa da
Excursão. Quando Carune inventou este processo, o mundo descambava para uma nova idade média.
No inverno anterior, mais de dez mil pessoas morreram congeladas nos Estados Unidos apenas, já que
não havia energia suficiente para aquecê-las.
– Oh, puxa! – exclamou Patty, em tom prosaico.
Mark olhou para a direita e viu os atendentes falando com um homem de ar tímido, tentando
convencê-lo. Por fim, ele aceitou a máscara e pareceu cair morto em seu divã, segundos mais tarde.
Marinheiro de primeira viagem, pensou Mart. A gente percebe logo.
– Para Carune, a coisa começou com um lápis... algumas chaves... um relógio de pulso... e então,
alguns ratinhos. Os ratinhos lhe mostraram que havia um problema...
Victor Carune voltou a seu laboratório em uma vertiginosa febre de excitamento.
Pensou que agora sabia como Morse, Alexander Graham Bell e Edison se haviam sentido... só
que isto era maior do que todos eles e, por duas vezes, quase acabou com a caminhonete, ao retornar da
loja de animais de estimação em New Paltz, onde gastara seus últimos vinte dólares na compra de nove
ratinhos brancos. O que lhe restava no mundo eram os noventa e três centavos no bolso direito do
paletó e os dezoito dólares em sua conta de poupança... mas isto não lhe ocorreu. E, se ocorresse,
certamente não o preocuparia.
O laboratório ficava em um celeiro restaurado, no final de uma estrada de terra batida com um
quilômetro de comprimento, partindo da Rota 26. Foi ao manobrar para a estradinha, que quase
espatifou sua caminhonete Brat pela segunda vez. O tanque de gasolina estava quase vazio e não
haveria mais combustível para dez dias e duas semanas, porém isto tampouco o preocupava. Sua mente
estava em delicioso torvelinho.
O que acontecera não era totalmente inesperado. Não. Um dos motivos que levaria o governo a
ajudá-lo com a mísera subvenção de vinte mil dólares anuais, era porque a possibilidade irrealizada
sempre estivera presente no campo de transmissão de partículas.
No entanto, ter de acontecer assim... de repente... sem nenhum aviso... e movido, por menos
eletricidade do que a necessária ao funcionamento de uma TV colorida... Deus! Cristo!
O Brat estacou com uma guinchada de freios à entrada de terra nos fundos do celeiro, Carune
agarrou a caixa sobre o assento sujo ao seu lado, aferrando-a pelas alças (na caixa havia cães, gatos,
hamsters e peixinhos dourados, mais a inscrição EU VIM DA CASA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO
STACKPOLE'S) e correu para as grandes portas duplas. Do interior da caixa brotavam rumores das
corridinhas e movimentos de suas cobaias.
Ele tentou empurrar uma das enormes portas em seus trilhos corrediços, mas quando ela não se
moveu, recordou que a trancara. "Merda!" exclamou Carune em voz alta, enquanto procurava as
chaves no bolso. O governo exigira que o laboratório ficasse sempre trancado – era uma das condições
sob as quais soltava seu dinheiro – mas Carune vivia esquecendo.
Encontrou as chaves e, por um momento, ficou apenas olhando para elas, hipnotizado, passando a
polpa do polegar sobre as chanfraduras na chave de ignição da Brat. Tornou a pensar: Deus! Cristo!
Depois, seus dedos percorreram as chaves no molho, até encontrarem a Yale que abria a porta do
celeiro.
Assim como o primeiro telefone havia sido usado inadvertidamente – Bell gritando nele,
"Watson, venha cá!" ao derramar algum ácido em seus papéis e em si mesmo – também o primeiro ato
de teletransporte ocorrera por acidente. Victor Carune teletransportara os dois primeiros dedos de sua
mão esquerda através dos cinqüenta metros de largura do celeiro.
Carune havia instalado dois portais nos lados opostos do celeiro. Em seu final, havia uma arma
elementar de íons, do tipo encontrado em qualquer loja de artigos eletrônicos, por menos de quinhentos
dólares. Na outra extremidade, bem após o portal mais distante – ambos retangulares e do tamanho de
um livro de bolso – havia uma câmara fosca. Entre os dois portais ficava o que parecia uma cortina de
chuveiro opaca, exceto que cortinas de chuveiro não são feitas de chumbo. A idéia era disparar os íons
através do Portal Um, contorná-lo e vê-los passando através da câmara fosca logo após o Portal Dois,
com a cortina blindada entre os dois, para provar que os íons tinham sido realmente transmitidos. Só
que, nos dois últimos anos, o processo funcionara apenas duas vezes – e Carune não tinha a menor
idéia de por que isso ocorrera.
Enquanto ajustava a pistola de íons, seus dedos haviam deslizado através do portal – em geral não
havia qualquer problema, mas nessa manhã, seu quadril também roçara na cavilha interruptora, sobre o
painel de controle à esquerda do portal. Carune não percebeu o que tinha acontecido – o mecanismo
deixou escapar apenas o menos audível zumbido – até ele sentir um formigamento nos dedos.
"Não foi como um choque elétrico", escreveu em seu primeiro e último artigo a respeito, antes
que o governo lhe fechasse a boca. O artigo foi publicado em Mecânica Popular, entre várias outras
publicações. Carune o vendeu por setecentos e cinqüenta dólares, em um desesperado esforço para
manter a Excursão um assunto de empreendimento privado. "Não aconteceu aquele desagradável
formigamento de quando pegamos em um fio elétrico desencapado, por exemplo. Foi mais como a
sensação de colocar-se a mão no corpo de uma pequena máquina que funcionasse a todo vapor. A
vibração é tão rápida e leve que, literalmente, dá essa sensação de formigamento.
"Olhei então para o portal, e vi que meu indicador sumira, cortado diagonalmente através da
falange média. O segundo dedo desapareceu pouco acima disso. Em adição, a parte em que fica a unha
do terceiro dedo havia sumido."
Carune puxara a mão instintivamente, gritando. Escreveu mais tarde, ser tamanha a sua certeza de
que o sangue jorraria, que chegou a vê-lo, em alucinação. Por um ou dois momentos. Seu cotovelo
bateu na pistola de íons e a derrubou da mesa.
Ficou parado com os dedos na boca, verificando que continuavam ali, e inteiros. O pensamento
de que andara trabalhando demais lhe passou pela cabeça. Pensou também outra coisa: o último
conjunto de alterações podia ter... podia ter provocado algo.
Não recolocou os dedos de volta. Aliás, em toda a sua vida. Carune só Excurcionou uma vez
mais.
A princípio, ele nada fez. Deu uma longa e errante caminhada em volta do celeiro, passando as
mãos pelos cabelos e perguntando-se se deveria ligar para Carson, em Nova Jersey, ou talvez para
Buffington, em Charlotte. Carson não aceitaria um interurbano a cobrar, aquele sovina nojento, mas
Buffington provavelmente aceitaria. Então, teve uma idéia súbita e correu até o Portal Dois, pensando
que, se seus dedos realmente haviam cruzado o celeiro, poderia haver algum sinal disso.
Não havia sinal algum, claro. O Portal Dois ficava no alto de três caixotes de laranjas Pomona
empilhados, assemelhando-se a um daqueles brinquedos de guilhotina, sem a lâmina. Em um lado de
sua moldura de aço inoxidável ficava uma tomada, com um cordel que ia até o terminal de transmissão,
este pouco mais do que um transformador de partículas, ligado a uma linha de alimentação de
computador.
Isto lhe recordava...
Carune olhou para seu relógio e viu que passavam quinze minutos das onze. Seu envolvimento
com o governo consistia de dinheiro curto, mais tempo de computador, o qual era infinitamente
valioso. Sua ligação com o computador durava até três horas daquela tarde e depois seria adeus, até a
segunda-feira. Precisava mover-se, tinha que fazer alguma coisa...
"Tornei a olhar para a pilha de caixotes", escreveu ele, em seu artigo para Mecânica Popular, "e
então olhei para as polpas de meus dedos. Claro, a prova estava ali.
Contudo, pensei então, aquilo não convenceria ninguém, além de mim mesmo. No começo,
entretanto, é apenas a nós próprios que temos de convencer.
– Qual era o problema. Pai? – perguntou Ricky.
– Sim, papai, qual era? – acrescentou Patty.
Mark sorriu de leve. Estavam todos atentos agora, inclusive Marilys. Quase haviam esquecido
onde estavam. Pelo canto do olho, ele podia ver os atendentes da Excursão empurrando silenciosa e
lentamente seu carrinho por entre os Excursionistas, colocando-os para dormir. O processo nunca era
tão rápido no setor civil como era no militar, ele havia descoberto: os civis ficavam nervosos e queriam
discutir o assunto. O bocal e a máscara de borracha recordavam demais as salas de cirurgia dos
hospitais, onde o cirurgião, com suas facas, espreitava de algum ponto atrás da anestesista, esta com
sua seleção de gases em recipientes de aço inoxidável. Por vezes havia pânico, histeria, sempre
existindo alguns que simplesmente tinham acessos de nervos. Mark observou dois destes, enquanto
falava com os filhos: dois homens se haviam limitado a abandonar seus divãs, caminharam até a
entrada, sem o menor alvoroço, soltaram os papéis de confirmação espetados em suas lapelas.
devolveram-nos e saíram, sem olhar para trás. Os atendentes da Excursão recebiam instruções estritas
para evitar discussões com aqueles que iam embora. Sempre havia gente na fila de espera, às vezes
quarenta ou cinqüenta pessoas, esperando contra a esperança. Quando iam embora aqueles que não
podiam suportar a situação, permitia-se que entrassem as pessoas da fila, com suas próprias
confirmações espetadas nas camisas.
– Carune encontrou duas lascas em seu dedo indicador – disse ele aos filhos. – Tirou-as e as
deixou de lado. Uma se perdeu. mas a outra pode ainda ser vista no Anexo Smithsoniano, em
Washington. Foi colocada em uma caixa de vidro hermeticamente lacrada, perto das rochas lunares
que os primeiros viajantes espaciais trouxeram da lua...
– A nossa lua ou uma de Marte, papai? – perguntou Ricky.
– A nossa – respondeu Mark, sorrindo de leve. – Foi lançado a Marte apenas um foguete
tripulado por homens, Ricky. Tratava-se de uma expedição francesa, por volta de 2030.
De qualquer modo, eis por que um mero e velho pedacinho de madeira, vindo de um caixote de
laranjas, está no Instituto Smithsoniano. Foi o primeiro objeto em nosso poder que realmente
atravessou o processo do teletransporte – Excursionou – através do espaço.
– O que aconteceu depois? – perguntou Patty.
– Bem, segundo a história, Carune correu...
Carune correu para o Portal Um e ficou lá um instante, o coração em disparada, sem fôlego.
Preciso ficar calmo, disse para si mesmo. Tenho que refletir no que houve. Se ficar nervoso, não posso
ampliar meu tempo.
Ignorando deliberadamente a premência de seu cérebro, que lhe gritava para apressar-se e fazer
alguma coisa, ele pegou o cortador de unhas no bolso e usou a ponta da lixa para arrancar a lasca do
dedo indicador. Deixou-o cair no papel branco da embalagem interna de uma barra de chocolate que
havia comido, enquanto lidava com o transformador e tentava aumentar sua capacidade aferente
(aparentemente, teve êxito nisso, além de seus sonhos mais impetuosos). Uma lasca rolou do papel e
ficou perdida, mas a outra terminou no Instituto Smithsoniano, trancada em uma caixa de vidro,
distanciada do público por uma barreira de grossas cordas de veludo e observada, vigilante e
eternamente, por uma câmara de TV em circuito fechado, monitorizada por computador.
Terminada a extração da lasca, ele ficou um pouco mais calmo. Um lápis. Era tão bom quanto
qualquer outra coisa. Pegou um, ao lado do quadro de avisos sobre a prateleira acima dele e o passou
delicadamente pelo Portal Um. O lápis desapareceu limpamente, centímetro por centímetro, como algo
em uma ilusão de óptica ou em um truque de excelente mágico. Havia a inscrição EBERHARD
FABER N.° 2 em um de seus lados, letras negras estampadas em madeira pintada de amarelo. Quando
empurrou o lápis até tudo – exceto EBERH – haver desaparecido, ele deu a volta para o outro lado do
Portal Um. Espiou.
Viu o lápis como que amputado, como se perfeitamente cortado por uma faca. Tateou o lugar
onde deveria estar o resto do lápis e, naturalmente, nada havia. Correu através do celeiro até o Portal
Dois, e lá estava a parte que faltava, jazendo sobre o caixote superior. Com o coração batendo tão forte
que parecia sacudir todo o seu peito, Carune agarrou o lápis pelo lado da ponta afiada e o puxou pelo
restante da travessia.
Ergueu-o no ar, olhou para ele. De repente, apanhou-o e escreveu FUNCIONA! em um pedaço de
tábua do celeiro. Escreveu com tanta força, que a ponta do lápis se quebrou na última letra. Carune
começou a rir estridentemente no celeiro vazio; ria tão alto, que espantou as andorinhas adormecidas e
elas começaram a voar por entre os altos caibros do teto.
– Funciona! – bradou, e correu de volta ao Portal Um. Agitava os braços, com o lápis quebrado
preso no punho fechado. – Funciona! Funciona! Está me ouvindo, Carson, seu filho da puta? Funciona
E EU CONSEGUI!
– Cuidado com o que diz às crianças, Mark – censurou Marilys.
Mark deu de ombros.
– Supõe-se que foi o que ele disse.
– Bem, não poderia ser mais seletivo ao repetir?
– Um urso faz cocô na floresta? – disse Mark, logo em seguida tapando a boca com a mão.
As duas crianças riram freneticamente e Mark ficou satisfeito ao notar que aquele tom agudo
desaparecera da voz de Patty. Após um momento tentando ficar séria, Marilys começou a rir também.
Em seguida, foram as chaves; Carune simplesmente as jogou através do portal. Estava
começando a pensar com coerência de novo e pareceu-lhe que a primeira coisa a descobrir, seria se o
processo produzia coisas na outra extremidade, exatamente como haviam sido antes ou se, de algum
modo, elas sofriam alterações na viagem.
Viu as chaves irem e desaparecerem; exatamente no mesmo instante, ouviu-as tilintando no
caixote do outro lado do celeiro. Correu até lá – agora, em realidade ia trotando – e, de passagem, fez
uma pausa para jogar a cortina de chumbo de volta a seus trilhos.
Agora não precisava dela nem da pistola de íons. Dava no mesmo, porque a pistola de íons ficara
irremediavelmente destroçada.
Apanhou as chaves, foi à fechadura que o governo o forçara a colocar na porta e experimentou a
chave Yale. Funcionou perfeitamente. Experimentou a chave da casa.
Também funcionou. O mesmo aconteceu com as chaves de seu fichário e a que dava partida à
caminhonete Brat.
Carune botou as chaves no bolso e tirou seu relógio. Era um Seiko LC de quartzo, com uma
calculadora embutida abaixo do mostrador digital – vinte e quatro diminutos botões que lhe permitiam
tudo, de adição a subtração, passando pela raiz quadrada. Uma delicada peça de mecanismo – e, com a
mesma importância, também um cronômetro.
Carune colocou o relógio diante do Portal Um e o empurrou com um lápis.
Correu através do celeiro e o apanhou. Antes de empurrar o relógio pela passagem, ele marcava
11:31:07. Agora, marcava 11:31:49. Muito bom. Direto ao dinheiro, mas ele devia ter ali um assistente
para confiar o fato de que não houvera nenhum tempo ganho, em absoluto. Bem, não importava. Logo
o governo o cercaria de assistentes.
Experimentou a calculadora. Dois e dois continuavam sendo quatro, oito dividido por quatro
ainda dava dois, a raiz quadrada de onze, como sempre, resultava ser 3,3166247... e por aí adiante.
Foi quando ele decidiu que chegara a vez dos ratinhos.
– O que aconteceu com os ratinhos, papai? – perguntou Ricky.
Mark vacilou ligeiramente. Aqui, precisaria tomar certa cautela, se não quisesse amendrontar seus
filhos (para não falar na esposa) tornando-os histéricos, minutos antes de sua primeira Excursão. A
questão principal era deixá-los com a certeza de que tudo agora estava bem, que o problema havia sido
resolvido.
– Como falei, houve um pequeno problema...
Sim. Horror, loucura e morte. Que tal isso como pequeno problema garotos?
Carune tirou da prateleira a caixa com a inscrição EU VIM DA CASA DE ANIMAIS DE
ESTIMAÇÃO STACKPOLE'S e olhou para seu relógio. Droga, havia colocado o mostrador ao
contrário. Virou-o para a posição correta e viu que passavam quinze minutos das duas. Dispunha ainda
de uma hora e quinze minutos para o computador.
Como o tempo vôa quando a gente se diverte, pensou, e riu desatinadamente.
Abriu a caixa, esticou o braço e pegou um chiante ratinho branco pela cauda. Colocou-o diante do
Pontal Um e disse, "Vá, ratinho." O ratinho correu prontamente para um lado do caixote de laranjas
sobre o qual se situava o portal e disparou em desabalada corrida pelo chão.
Praguejando, Carune o caçou e chegou realmente a pegá-lo, antes que ele se espremesse por uma
fenda entre duas tábuas e desaparecesse.
– MERDA! – gritou, tornando a correr para a caixa dos ratos.
Chegou em tempo de jogar para dentro dela dois fugitivos em potencial. Pegou um segundo rato,
agora segurando-o pelo corpo (era um físico de profissão, ignorando as maneiras de lidar com ratos) e
bateu a tampa da caixa, trancando-a.
Com este, Carune não facilitou. O rato agarrou-se à sua palma, de pouco adiantando; terminou
caminhando com suas próprias patinhas e atravessou o Portal Um. Carune o ouviu aterrar
imediatamente sobre os caixotes no lado oposto do celeiro.
Desta vez ele correu velozmente, recordando com que facilidade o primeiro rato lhe fugira. Não
precisava ter-se preocupado. O rato branco apenas se agachava no caixote, os olhos opacos, os lados do
corpo aspirando fracamente. Carune diminuiu a corrida, aproximando-se com cautela. Não era um
homem acostumado a manipular ratos, porém não precisa ser um veterano de quarenta e um anos, para
ver que ali havia algo terrivelmente errado.
("O rato não se sentia muito bem após a travessia, disse Mark Dates aos filhos, com um amplo
sorriso, que somente sua esposa percebeu ser falso.)
Carune tocou o rato. Era como tocar algo inerte – talvez um molho de palha ou serragem
ensacada – exceto pelas laterais – aspirando. O rato não olhou para ele; seus olhos estavam fixos
diretamente à frente. Carune empurrara um animalzinho vivo, esperto e guinchante pelo Portal Um; ali
havia o que parecia um simulacro de rato.
Então, estalou os dedos diante dos pequenos olhos rosados do rato. Ele piscou... e caiu morto,
deitado de banda.
– Então, Carune decidiu experimentar com outro rato – disse Mark.
– O que aconteceu ao primeiro? – perguntou Ricky.
Mark exibiu novamente aquele vasto sorriso.
– Foi aposentado com todas as honras – respondeu.
Carune encontrou um saco de papel e dentro dele colocou o rato. Pretendia levá-lo para Mosconi,
o veterinário, ainda aquela noite. Mosconi o dissecaria e lhe diria se os órgãos do bichinho tinham
ficado avariados. O governo desaprovaria a intromissão de um cidadão privado em um projeto que
seria classificado como tríplice altamente secreto, assim que eles fossem informados do sucedido.
Tetas robustas, presumia-se que a gata dissera aos gatinhos que se queixavam da quentura do leite.
Carune decidira que o Grande Pai Branco em Washington só seria informado da brincadeira o mais
tarde possível. Eles bem podiam esperar, por conta da insignificante ajuda que o Grande Pai Branco
lhe dera. Tetas robustas.
Então, recordou que Mosconi morava onde o diabo perdeu as botas, do outro lado de New Paltz.
Não havia gasolina suficiente no Brat para cruzar metade da cidade... quanto mais para a volta.
Contudo, já eram 2:03 – sobrava-lhe menos de uma hora para o computador. Decidiu preocuparse
mais tarde com a maldita dissecação.
Carune construiu uma rampa improvisada, levando à entrada do Portal Um (em realidade, o
primeiro Escorrega-Excursão, disse Mark as crianças, e Patty achou deliciosamente divertida a idéia de
um Escorrega-Excursão para ratos) e deixou cair nele um novo rato branco. Bloqueou a extremidade
final com um livro grande e, após alguns momentos de farejar e sondar sem destino, o rato cruzou o
portal e desapareceu.
Carune correu para o outro lado do celeiro.
O rato estava morto.
Não havia sangramento, nenhuma inchação no corpo indicando que uma mudança radical de
pressão promovera a ruptura de algo interno. Carune supôs que a carência de oxigênio poderia...
Meneou a cabe, impaciente. O rato branco levara apenas escassos segundos na travessia; seu
próprio relógio informara que o tempo permanecia uma constante no processo ou quase isso.
O segundo rato branco se juntou ao primeiro, no saco de papel. Carune apanhou um terceiro (um
quarto, se contarmos o felizardo que escapara pela fenda entre as tábuas), perguntando-se pela primeira
vez o que acabaria antes – seu tempo de computador ou seu suprimento de ratos.
Este, ele segurou firmemente em torno do corpo, forçando suas ancas através do portal.
No outro lado do celeiro, viu as ancas reaparecerem... apenas as ancas. As patinhas
desincorporadas arranhavam freneticamente a madeira rústica do caixote.
Carune puxou o rato de volta. Nada de catatonia agora; o rato mordeu a pele de ligação entre seu
polegar e o indicador, com força bastante para tirar sangue. Rápido, deixou o rato na caixa EU VIM
DA CASA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇAO STACKPOLE'S e usou o vidrinho de água oxigenada em
seu estojo de pronto-socorro do laboratório, a fim de desinfetar a mordida.
Colocou um Band-Aid sobre ela, depois vasculhou o local até encontrar um par de grossas luvas
de trabalho. Podia sentir o tempo esgotar-se, esgotar-se, esgotar-se. Agora eram 2:11 da tarde.
Pegou outro rato e o empurrou de costas pela passagem – todo ele. Correu para o Portal Dois.
Este rato viveu por quase dois minutos, chegando mesmo a caminhar um pouco.
Depois cambaleou sobre o caixote de laranjas Pomona, caiu de banda, esforçou-se fracamente
para ficar sobre os pés e terminou caindo agachado. Carune estalou os dedos perto da cabeça do
animalzinho e ele conseguiu dar uns quatro passos, antes de tornar a cair de banda. A aspiração nos
lados do corpo diminuiu... diminuiu... e parou. Ele estava morto.
Carune sentiu um calafrio.
Voltou, pegou outro rato e o empurrou pela metade no portal, a cabeça primeiro. Viu-o reaparecer
no outro lado, apenas a cabeça... depois o pescoço e o peito. Cautelosamente, afrouxou a pressão no
corpo do rato, pronto a agarrá-lo, se ficasse arisco. Não ficou.
Apenas permaneceu ali, metade em um lado do celeiro, metade no outro.
Carune correu para o Portal Dois.
O rato estava vivo, porém seus olhos rosados haviam ficado vidrados e apáticos. Os bigodes não
se moviam. Dando volta ao portal, Carune teve uma visão espantosa; como vira o lápis cortado ao
meio, assim via o rato. Via as vértebras de sua pequenina espinha terminarem abruptamente em
redondos círculos brancos; viu seu sangue se movendo nos vasos; viu o tecido se movendo suavemente
com a maré da vida, em torno de seu minúsculo esôfago. Se aquilo não servisse para nada mais, pensou
(e escreveu mais tarde, em seu artigo para Mecânica Popular), pelo menos seria uma formidável
ferramenta para diagnósticos.
Então, percebeu que o movimento de maré nos tecidos havia cessado. O rato tinha morrido.
Carune empurrou o rato pelo focinho, não gostando da sensação daquilo, e o deixou cair no saco
de papel, com os companheiros. Chega de ratos brancos, decidiu. Os ratos morrem. Morrem quando
fazem a travessia de corpo inteiro, e morrem quando só fazem metade da travessia, com a cabeça
primeiro. Fazendo metade da travessia, com as ancas primeiro, eles permanecem espertos.
Diabo, o que há aqui?
Imput sensorial, pensou, quase ao acaso. Quando atravessam, eles vêem alguma coisa... ouvem
alguma coisa... tocam alguma coisa... Céus, talvez até cheirem alguma coisa... que literalmente os
mata. O que será?
Ele não fazia a menor idéia – mas pretendia descobrir.
Ainda dispunha de quarenta minutos, antes que COMLINK lhe fechasse a fonte de dados básicos.
Desatarrachou o termômetro da parede ao lado da porta de sua cozinha, trotou de volta ao celeiro com
ele e o colocou através dos portais. O termômetro marcava 83.° F; chegou do outro lado marcando os
mesmos 83° F. Carune vasculhou o aposento sobressalente, onde guardava alguns brinquedos para
distrair os netos. Entre eles, encontrou um pacote de bolas de gás. Soprou uma, amarrou-a e a passou
pelo portal. Ela chegou inteira e perfeita – um começo na resposta à sua pergunta sobre uma mudança
súbita de pressão, de algum modo causada pelo que já pensava como o processo Excursional.
Faltando cinco minutos para a hora fatal, ele correu até sua casa e apanhou o aquário com seus
peixes dourados (no interior, Percy e Patrick agitavam as caudas e nadavam inquietos). Correu de volta
ao celeiro, e lá passou o aquário através do Portal Um.
Correu até o Portal Dois, onde seu aquário estava sobre o caixote. Patrick flutuava de ventre para
cima; Percy nadava indolente, perto do fundo do aquário, como que estonteado. Um momento depois,
também boiava de barriga para cima. Carune estendia o braço para apanhar o aquário, quando Percy
teve um leve movimento de cauda e reiniciou seu lânguido nadar. Lentamente, pareceu eliminar
qualquer efeito havido e, quando Carune retornou da Clínica Veterinária de Mosconi, às nove daquela
noite, Percy parecia tão animado como sempre.
Patrick estava morto.
Carune deu a Percy uma ração dupla de alimento para peixes e a Patrick um sepultamento de
herói, no jardim.
Depois que o computador ficou fechado para ele por aquele dia, Carune decidiu ir de carona ao
encontro de Mosconi. Assim, às quatro e quinze daquela tarde, estava parado no acostamento da
Estrada 26, de calças jeans e um paletó esporte simples, com o polegar à mostra e um saco de papel na
outra mão.
Por fim, um rapazola dirigindo um Chevette não muito maior do que uma lata de sardinhas, parou
junto dele e Carune entrou.
– O que tem nesse saco, amigo?
– Um punhado de ratos mortos – respondeu Carune.
Eventualmente, outro carro parou. Quando o fazendeiro atrás do volante o interrogou sobre o
saco, ele lhe disse que levava dois sanduíches.
Mosconi dissecou um dos ratos imediatamente e concordou em dissecar os outros mais tarde,
depois dizendo os resultados por telefone. A conclusão inicial não foi muito encorajadora; até onde o
veterinário podia dizer, o rato que abrira estava perfeitamente saudável, excetuando-se o fato de
encontrar-se morto.
Deprimente.
– Victor Carune era excêntrico, mas não um tolo – disse Mark. Os atendentes da Excursão agora
estavam bem perto e ele supôs que precisaria apressar-se... ou terminaria sua história na Sala do
Despertar, na Cidade Whitehead. – Tomando carona ao voltar para casa aquela noite – e ele teve que
fazer a pé a maioria do trajeto, segundo diz a história – percebeu que talvez houvesse resolvido um
terço da crise de energia, em uma só penada. Todas as mercadorias que tinham sido transportadas por
trem, caminhão, barco e avião até aquele dia, podiam ser Excursionadas. Escrevia-se uma carta para
um amigo em Londres, Roma ou Senegal, e ele a receberia logo no dia seguinte – sem que se
precisasse queimar dez gramas de petróleo. Nós aceitamos isso como coisa certa, porém era uma
grande coisa para Carune, acreditem. E para qualquer pessoa também.
– Sim, mas o que aconteceu aos ratos, papai? – perguntou Ricky.
– Foi a pergunta que Carune se fez muitas vezes – disse Mark – porque também percebeu que, se
pessoas pudessem usar a Excursão, isso resolveria quase toda a crise de energia.
Além disso, teríamos capacidade de conquistar o espaço. Em seu artigo na Mecânica Popular, ele
declarou que até mesmo as estrelas finalmente poderiam ser nossas. E a metáfora que Carune usou, foi
de cruzar-se um riacho raso sem molhar-se os sapatos.
Apanha-se uma pedra grande, que é atirada ao riacho, depois outra pedra, atirada à frente da
primeira, também dentro do riacho. Uma terceira pedra é atirada à frente da segunda, no riacho, até
conseguir-se uma trilha de pedras por todo o trajeto, através do riacho... ou, neste caso, através do
sistema solar, talvez mesmo da galáxia.
– Não estou entendendo bem – disse Patty.
– É porque você tem miolos de galinha – disse Ricky, debochado.
– Não tenho! Papai, Ricky disse...
– Crianças, parem com isso – disse Marilys, com delicadeza.
– Carune previu com acerto o que tem acontecido – disse Mark. – Naves foguete de controle
remoto, programadas para pousar, primeiro na lua, depois em Marte, a seguir em Vênus e nas luas
exteriores de Júpiter... em realidade, programadas apenas para efetuarem uma coisa, após o pouso...
– Instalar uma estação-Excursão para astronautas – disse Ricky.
Mark assentiu.
– E, atualmente, há postos científicos avançados por todo o sistema solar. Um dia, muito depois
de havermos morrido, é possível, inclusive, que haja outro planeta para nós.
Temos naves-Excursão a caminho de quatro diferentes sistemas estelares, com seus próprios
sistemas solares... porém ainda vão demorar muito, muitíssimo tempo a chegar lá.
– Quero saber o que aconteceu aos ratinhos – disse Patty, impaciente.
– Bem, eventualmente, o governo interveio na questão – continuou Mark. – Carune reteve as
informações o mais que pôde, mas finalmente eles farejaram o ocorrido e aterraram em cima dele, com
os dois pés. Carune passou a chefe nominal do projeto Excursão, até falecer dez anos mais tarde,
porém a verdade é que nunca mais ficou encarregado do mesmo.
– Puxa! – exclamou Ricky. – Coitado dele!
– Pois virou um herói – disse Patrícia. – Está em todos os livros de História, como o Presidente
Lincoln e o Presidente Hart.
Tenho certeza de que isso é um grande consolo para ele... onde quer que esteja, pensou Mark, e
então prosseguiu, omitindo cuidadosamente as partes mais cruas.
Tendo sido encostado à parede pela crise energética em espiral ascendente, o governo entrou
realmente com os dois pés na questão. Eles queriam a Excursão funcionando em base rentável o mais
breve possível, isto é, ontem. Enfrentando o caos econômico e um provável, crescente quadro de
anarquia e fome maciça na década de 90, somente um desesperado patrocínio de causa fez com que
protelassem a proclamação da Excursão, antes que fosse concluída uma exaustiva análise
espectográfica dos artigos que haviam Excursionado. Encerradas as análises que não revelaram
modificações na estrutura dos artefatos Excursionados – foi anunciada a existência da Excursão, com
aplausos internacionais. Por uma vez demonstrando inteligência (afinal de contas, a necessidade é mãe
da invenção), o governo dos E.U.A. colocou Young e Rubicam incumbidos das relações públicas.
Foi aí que começou o mito fabricado em torno de Victor Carune, um homem idoso e um tanto
peculiar, que tomava banho talvez duas vezes na semana e só trocava de roupas quando se lembrava
disso. Young e Rubicam, juntamente com as agências que os seguiam, transformaram Carune em uma
mescla de Thomas Edison, Eli Whitney, Pecos Bill e Flash Gordon. O humor negro em tudo isto (e
Mark Oates não transmitiu esta parte à família), era que Victor Carune podia, inclusive, estar morto ou
insano; dizem que a arte imita a vida, e Carune estaria familiarizado com a novela de Robert Heinlein,
sobre os sósias de personalidades, aparecendo aos olhos do público.
Victor Carune era um problema; um importuno problema que não cessava. Ele era um tagarela
andarilho, um remanescente dos Ecológicos Anos Sessenta uma época em que ainda havia suficiente
energia flutuando no ambiente, permitindo o luxo de caminhadas.
Por outro lado, aqueles eram os Irritantes Anos Oitenta, com nuvens de carvão tisnando o céu e
uma longa faixa do litoral californiano destinada a ficar desabitada por talvez sessenta anos, devido a
um "desvio" nuclear.
Victor Carune permaneceu um problema até cerca de 1991 – e então se tornou uma pessoa não
questionante, sorridente, tranqüila, avoenga; uma figura que os filmes dos noticiários mostravam
acenando dos pódios. Em 1993, três anos antes de falecer oficialmente, ele desfilou no carro da paz, na
Parada do Torneio de Rosas.
Intrigante. E um tanto sinistro.
Os resultados da proclamação da Excursão – do funcionamento do teletransporte – a 19 de
outubro de 1988, foi um golpe de excitamento mundial e revolução econômica. Nos mercados
financeiros mundiais, o surrado e velho dólar americano disparou repentinamente através do teto.
Pessoas que haviam comprado ouro a oitocentos e seis dólares uma onça, viram subitamente que uma
libra de ouro (mais ou menos meio quilo) lhes daria algo menos de mil e duzentos dólares. No ano
entre a proclamação da Excursão e as primeiras Estações-Excursão em funcionamento, em Nova York
e Los Angeles, o mercado de ações subiu pouco mais de mil pontos. O preço do petróleo caiu somente
setenta centavos por barril, mas por volta de 1994, com Estações-Excursão entrecruzando os E.U.A.
nos pontos de pressão em setenta cidades importantes, a OPEP cessara de existir e o preço do petróleo
começou a cair. Em 1998, com Estações na maioria das cidades do mundo livre e com mercadorias
Excursionadas rotineiramente entre Tóquio e Paris, Paris e Londres, Londres e Nova York, Nova York
e Berlim, o petróleo caíra para quatorze dólares o barril. Em 2006, quando as pessoas finalmente
começaram a usar a Excursão em uma base regular, o mercado de ações se fixara a cinco mil pontos
acima de seus níveis de 1987, o petróleo era vendido a seis dólares o barril e as companhias
petrolíferas tinham começado a mudar de nome. A Texaco se tornou Texaco Petróleo/Água, enquanto
a Mobil passou a ser Mobil Hidro-2-Ox.
Em 2045, a prospecção de água se tornou o grande jogo, ao passo que o petróleo recuara para o
que havia sido em 1906: um brinquedo.
– E quanto aos ratinhos, papai? – perguntou Patty, impacientemente. – O que aconteceu com os
ratinhos?
Mark decidiu que agora talvez fosse viável e chamou a atenção de seus filhos para os atendentes
da Excursão, que aplicavam o gás a apenas três corredores deles. Ricky apenas assentiu, mas Patty
pareceu perturbada, quando uma senhora de cabeça raspada e pintada, como ditava a moda, tomou uma
tragada da máscara de borracha e caiu inconsciente.
– Não podemos Excursionar quando acordados, não é, papai? – perguntou Ricky.
Mark assentiu e sorriu tranqüilizadoramente para Patricia.
– Carune percebeu isso, antes mesmo que o governo assumisse a situação – disse ele.
– E como foi que o governo assumiu a situação, Mark? – perguntou Marilys.
Mark sorriu.
– Graças ao tempo do computador – disse. – Os dados básicos. Aquilo era a única coisa que
Carune não podia pedir, tomar emprestado ou roubar. O computador manejava a real transmissão de
partículas – bilhões de peças de informação. Ainda é o computador, você sabe, que garante a
integridade física da pessoa, isto é, que ela não ficará com a cabeça em algum ponto no meio do
estômago.
Marilys estremeceu.
– Não tenho receio – disse ele. – Nunca houve uma situação semelhante, Mare. Nunca.
– Sempre há uma primeira vez – murmurou ela.
Mark olhou para Ricky.
– Como é que ele soube? – perguntou ao filho. – Como é que Carune descobriu que as pessoas
tinham que estar adormecidas, Ricky?
– Quando colocou os ratos de costas – disse Ricky lentamente – eles ficaram bem. Pelo menos,
enquanto não os atravessou de todo. Eles ficaram apenas – bem, confusos – quando Carune os colocou
com a cabeça em primeiro lugar. Certo?
– Certo – respondeu Mark. Os atendentes da Excursão se moviam agora, empurrando sua
silenciosa mesinha rolante do esquecimento. Não haveria tempo dele contar tudo; talvez até fosse
melhor assim. – Naturalmente, não foram necessárias muitas experiências para esclarecer-se o que
acontecia. A Excursão liquidou toda a atividade dos caminhões de carga, crianças, mas pelo menos
afastou a pressão de cima dos pesquisadores...
Sim. Caminhar se tornara um luxo novamente e os testes haviam prosseguido por mais de vinte
anos, embora as primeiras experiências de Carune com ratos drogados o tivessem convencido de que
animais inconscientes não estavam sujeitos ao que, depois disso, ficou conhecido para sempre como
Efeito Orgânico ou, mais simplesmente, Efeito Excursão.
Ele e Mosconi tinham drogado vários ratos, que foram passados pelo Portal Um e recuperados no
outro lado. Ansiosos, esperaram que suas cobaias acordassem de novo... ou morressem. Elas haviam
acordado e, após um breve período de recuperação, retomaram suas vidas de camundongos – comendo,
copulando, brincando e defecando – sem quaisquer efeitos prejudiciais. Aqueles ratos foram os
primeiros, em várias gerações, estudados com grande interesse. Não apresentaram nenhum efeito
pernicioso a longo prazo. Tampouco morreram mais cedo, seus filhotes não nasceram com duas
cabeças ou pelagem verde, estes também não apresentando nenhum efeito negativo a longo termo.
– Quando foi que eles começaram com pessoas, papai? – perguntou Ricky, embora certamente já
houvesse aprendido isso na escola. – Conte esta parte!
– Eu quero saber o que aconteceu aos ratinhos! – insistiu Patty.
Embora os atendentes da Excursão agora houvessem atingido o início de seu corredor (eles se
achavam quase no foral), Mark Oates fez uma pausa momentânea para refletir.
Sua filha, menos informada, assim mesmo ouvira com atenção e tinha feito a pergunta certa.
Portanto, ele preferiu responder à pergunta do filho.
Os primeiros Excursionistas humanos não haviam sido astronautas nem pilotos de provas, mas
prisioneiros voluntários, nem ao menos selecionados com qualquer interesse particular em sua
estabilidade psicológica. De fato, foi opinião dos cientistas, então encarregados (Carune não estava
entre eles; transformara-se no que é comumente chamado um chefe titular), que quanto mais instáveis
eles fossem, tanto melhor; se um espástico mental suportava a travessia e a encerrava perfeito – ou,
pelo menos, não pior do que era antes – então o processo provavelmente era seguro para executivos,
políticos e modelos de moda do mundo.
Meia dúzia desses voluntários foi levada a Province, em Vermont (um lugar que, desde então,
ficou tão famoso quanto havia sido Kitty Hawk, na Carolina do Norte), onde eles receberam a
aplicação do gás e foram passados através dos portais, colocados exatamente a três quilômetros de
distância entre si, um por um.
Mark contou isto aos filhos porque, naturalmente, todos os seis voluntários terminaram a prova
sentindo-se bem, em excelente estado, obrigado. Ele não lhes falou no implicado sétimo voluntário.
Esta figura, que poderia ter sido real, um mito ou (mais provavelmente) uma combinação dos dois,
inclusive tinha nome: Rudy Foggia.
Supunha-se que Foggia era um assassino confesso, condenado à morte no estado da Flórida, por
haver assassinado quatro pessoas idosas, em um jogo de bridge em Sarasota. De acordo com relatos
apócrifos, as forças combinadas da Central Intelligence Agency (CIA) e do Effa Bee Eye (FBI)
fizeram a Foggia numa oferta única, pegar-ou-largar, em-absoluto-não-repetida. Fazer a Excursão
plenamente desperto. Se você sair dela em perfeitas condições, receberá o seu perdão, assinado pelo
Governador Thurgood. Deixará a prisão, livre para seguir a única e Verdadeira Cruz ou liquidar mais
alguns velhos jogando bridge, em suas calças amarelas e sapatos brancos. Faça a travessia, saia dela
morto ou doido, tetas vigorosas. Como se presume que a gata falou.
O que responde?
Sabendo que a Flórida era um estado que levava a sério a pena de morte e, tendo sabido por seu
advogado, que com toda probabilidade ele seria o próximo a sentar-se na Velha Cadeira, Foggia disse,
tudo bem.
No Grande Dia, no verão de 2007, cientistas suficientes para lotar uma banca de jurados (com
mais cinco ou seis sobressalentes) achavam-se presentes para testemunhar o que ocorreria, mas se a
história de Foggia era real – e Mark Oates acreditava que provavelmente fosse – ele duvidava que a
notícia transpirara de qualquer dos cientistas.
O mais crível é que se ficara sabendo do sucedido por algum dos guardas que tinham voado com
Foggia de Raiford a Montpelier e depois o escoltado de Montpelier a Province, em um veículo
blindado.
– Se eu sair disto vivo – diz-se que Foggia falou – quero jantar um frango, antes de acabar com
esta espelunca.
Ele então cruzou o Portal Um, reaparecendo imediatamente no Portal Dois.
Surgiu vivo, mas Rudy Foggia não estava em condições de jantar seu frango. No espaço de tempo
em que fez a Excursão através dos três quilômetros (indicado como 0,000000000067 de segundo, por
computador), o cabelo de Foggia ficou branco como neve. Seu rosto não mudara, em qualquer sentido
físico – não mostrava rugas, papada e nem estava debilitado – mas dava a impressão de uma grande,
quase incrível idade.
Foggia saiu pelo portal arrastando os pés, os olhos arregalados e opacos, a boca torcendo-se, as
mãos estendidas à sua frente. Dentro em pouco, ele começou a babar. Os cientistas que se tinham
reunido em torno dele, recuaram e, não, Mark duvidava que algum deles houvesse comentado o fato.
Eles sabiam sobre os ratos, afinal de contas, sabiam sobre as cobaias e os hamsters; de fato, sobre
qualquer animal com cérebro maior do que a minhoca mediana. Deviam ter-se sentido algo
semelhantes àqueles cientistas alemães, que tentaram impregnar mulheres judias com o esperma de
pastores alemães.
– O que aconteceu? – bradou um dos cientistas (diz-se que ele bradou).
Foi a única pergunta a que Foggia teve chance de responder.
– Lá é a eternidade – disse ele, e caiu morto, vitimado pelo que foi diagnosticado como um
ataque cardíaco maciço.
Os cientistas lá reunidos ficaram com seu cadáver (o qual foi caprichosamente cuidado pela CIA
e pelo Effa Bee Eye) e aquela estranha, terrível declaração agonizante: Lá é a eternidade.
Papai, eu quero saber o que aconteceu com os ratos – repetiu Patty.
O único motivo que lhe permitira fazer novamente a pergunta era porque o homem do terno caro
e os sapatos de brilho-eterno parecia haver-se transformado em um problema para os atendentes da
Excursão. Em realidade, ele não queria tomar o gás e procurava disfarçar a recusa com uma conversa
incessante, as fanfarronices de um garoto metido a valente. Os atendentes cumpriam sua missão o
melhor que podiam – sorrindo, adulando, persuadindo – mas aquilo os retardava.
Mark suspirou. Ele iniciara o assunto – apenas como uma forma de distrair os filhos daquelas
festividades pré-Excursão, sem dúvida, mas o iniciara. Agora, era de supor que deveria encerrá-lo o
mais verdadeiramente possível, sem alarmá-los ou perturbá-los.
Não lhes mencionaria, por exemplo, o livro de C. K. Summers, A política da Excursão, que
continha uma seção intitulada "A Excursão confidencialmente", um compêndio dos mais críveis
rumores sobre a Excursão. Estava lá a história de Rudy Foggia, aquele dos assassinatos no clube de
bridge e do frango não comido ao jantar. Também havia o histórico dos casos de uns trinta (ou mais...
ou menos... ou quem sabe) voluntários, bodes expiatórios ou loucos, que haviam Excursionado
inteiramente despertos, no correr dos últimos trezentos anos. Em sua maioria, chegaram mortos ao
outro lado. Os restantes tinham ficado irremediavelmente loucos. Em certos casos, o ato de
reemergirem realmente os deixara em um estado de choque que levara à morte.
Aquela seção do livro de Summer, relatando rumores e histórias apócrifas sobre a Excursão,
continha também outros perturbadores informes: aparentemente, a Excursão havia sido várias vezes
usada como meio para o assassinato. No caso mais famoso (e único documentado), que ocorrera
apenas trinta anos antes, um pesquisador da Excursão, chamado Lester Michaelson havia amarrado a
esposa com os Cordões-sonho de plexiplast da filha de ambos, e a empurrara, com ela gritando, pelo
portal da Excursão em Silver City, Nevada. Contudo, antes de fazer isso, Michaelson apertara o botão
Nada, no painel de seu aparelho, apagando cada e todas as centenas de milhares de portais possíveis,
através dos quais a Sra. Michaelson poderia ter emergido – qualquer lugar, desde a vizinha cidade de
Reno à Estação-Excursão experimental em To, uma das luas jupiterianas. Assim, a Sra. Michaelson
permaneceria eternamente Excursionando em algum ponto além, lá fora, no ozônio. O advogado de
Michaelson, depois que ele foi declarado sadio e capaz de enfrentar um julgamento pelo que havia
feito (dentro dos estreitos limites da lei, talvez ele fosse são de espírito, mas em qualquer sentido
prático, Lester Michaelson era tão louco como um chapeleiro), apresentou uma nova modalidade de
defesa: seu cliente não podia ser julgado por assassinato, porque ninguém podia provar,
conclusivamente, que a Sra. Michaelson estava morta.
Isto havia evocado o terrível espectro da mulher, desincorporada, mas de certo modo ainda
consciente, gritando no limbo..: para sempre. Michaelson foi condenado e executado.
Em adição, sugeria Summers, a Excursão tinha sido usada por vários ditadores baratos que
queriam livrar-se de dissidentes e adversários políticos; certas pessoas acreditavam que a Máfia
possuía suas próprias Estações-Excursão ilegais, ligadas ao computador central de Excursão, através de
suas conexões com a CIA. Summers dava a entender que a Máfia usara a capacidade-Nada da
Excursão, a fim de livrar-se de corpos que já estavam mortos, ao contrário do da Sra. Michaelson.
Vista sob este ponto de vista, a Excursão se tornara a máquina definitiva de Jimmy Hoffa, muito
melhor do que a cascalheira ou pedreira locais.
Tudo isto levara às conclusões e teorias de Summers sobre a Excursão e, naturalmente, também à
persistente pergunta de Patty sobre os camundongos.
– Bem – disse Mark lentamente, enquanto a esposa lhe fazia sinais com os olhos para que fosse
cuidadoso – até hoje ninguém sabe ao certo, Patty. Contudo, todas as experiências com animais –
incluindo-se os ratinhos – pareciam levar à conclusão de que, embora a Excursão seja quase
instantânea fisicamente, demora um longo, longo tempo mentalmente.
– Eu não entendo isso – replicou Patty, taciturnamente. – Sabia que não ia entender.
Ricky, no entanto, olhava pensativo para o pai.
– Eles continuaram pensando – disse ele. – Os animais usados como cobaias. E nós também
pensaremos, se não ficarmos inconscientes.
– Certo – respondeu Mark. – É o que agora acreditamos.
Havia algo surgindo nos olhos de Ricky. Medo? Excitamento?
– Não é apenas um teletransporte, certo, papai? Deve ser alguma espécie de distorção do tempo.
Lá é a eternidade, pensou Mark.
– De certa forma – respondeu ele. – Contudo, essa é uma expressão de histórias em quadrinhos –
parece correta mas, em realidade, nada significa, Ricky. Parece revolver-se em torno da idéia de
consciência e do fato de que a consciência não se divide em partículas – ela permanece inteira e
constante. Também encerra algum peculiar senso de tempo. Entretanto, ignoramos como a consciência
pura mediria o tempo ou mesmo se tal conceito tem algum sentido para a mente pura. Aliás, nem
mesmo podemos conceber o que seria mente pura.
Mark se calou, perturbado pelos olhos do filho, de repente tão aguçados e curiosos. Ele entende,
mas não compreende, pensou. A mente pode ser nosso melhor amigo; ela nos mantém satisfeitos,
mesmo nada havendo para ler, nada a fazer. Entretanto, também pode voltar-se contra nós, se mantida
sem imput por tempo demasiado. Pode voltar-se contra nós, isto querendo dizer que se volta contra si
mesma, barbariza-se, talvez se consuma a si própria, em um ato inconcebível de autocanibalismo.
Quanto tempo ficaria lá, em termos de anos? 0,000000000067 de segundo para o corpo Excursionar,
mas quanto tempo para a consciência não dividida em partículas? Cem anos? Mil? Um milhão? Um
bilhão? Quanto tempo a sós com seus pensamentos, em um interminável campo branco? E então,
passado um bilhão de eternidades, o abrupto retorno à luz, à forma e ao corpo. Quem não
enlouqueceria?
– Ricky... – começou ele, mas os atendentes da Excursão chegaram com sua mesinha rolante.
– Estão prontos? – perguntou um deles.
Mark assentiu.
– Estou com medo, papai – disse Patty, em um fio de voz. – Vai doer?
– Não, meu bem, é claro que não dói. – falou Mark, em voz calma o suficiente, embora o coração
batesse um pouco mais rápido – era sempre assim, mesmo sendo aquela mais ou menos sua vigésimaquinta
Excursão. – Serei o primeiro e assim você verá como é fácil.
O atendente da Excursão olhou inquisitivamente para ele. Mark assentiu e esboçou um sorriso. A
máscara desceu. Mark a tomou nas próprias mãos e respirou fundo no escuro.
* * *
A primeira coisa de que teve consciência foi do negríssimo céu marciano, como visto através do
topo da abóbada que circundava a Cidade Whitehead. Era noite ali e as estrelas esparramavam-se com
um uivo fulgor, desconhecido na terra.
A segunda coisa que percebeu foi uma espécie de rebuliço na sala de recuperação – murmúrios,
depois gritos, então um uivo agudo. Oh, meu Deus, foi Marilys! pensou, enquanto saltava estonteado
de seu divã, lutando com as ondas da vertigem.
Houve outro grito, e viu atendentes da Excursão correndo para os divãs que eles ocupavam, seus
vivos macacões vermelhos esvoaçando em torno dos joelhos. Marilys deu alguns passos cambaleantes
em direção a ele, apontando. Depois tornou a gritar e caiu ao chão. O divã da Excursão desocupado ao
seu lado, rolou lentamente corredor abaixo, quando ela tentou agarrar-se a ele com mão trêmula.
Mark, no entanto, já vira o que ela apontava. O que havia observado antes nos olhos de Ricky não
tinha sido medo, mas excitamento. Devia ter sabido, porque conhecia bem o filho – Ricky, que caíra do
galho mais alto da árvore em seu quintal de Schenectady, quando contava apenas sete anos, tendo
quebrado o braço (e tivera sorte, pois fora apenas o braço que quebrara); Ricky, que ousava ir mais
depressa e mais longe em seu skate do que qualquer outro garoto da vizinhança; Ricky, que era sempre
o primeiro a enfrentar qualquer desafio. Ricky e medo não se davam bem.
Até agora.
Ao lado de Ricky, sua irmã ainda dormia misericordiosamente. A coisa que havia sido seu filho
saltou e contorceu-se no divã-Excursão, um garoto de doze anos de idade, de cabelos brancos como a
neve e olhos que eram incrivelmente velhos, as córneas apresentando um amarelado doentio. Ali
estava uma criatura mais velha do que o tempo, mascarada como menino; no entanto, ela quicava e se
torcia com horrendo, obsceno regozijo. Sua garrulice chocante e lunática fizera com que os atendentes
da Excursão recuassem, tomados de horror. Alguns deles fugiram dali, embora houvessem sido
justamente treinados para lidar com tal inconcebível eventualidade.
As pernas jovens-velhas estremeceram e contorceram-se. Mãos em garras batiam, torciam e
dançavam no ar; depois desceram repentinamente e a coisa que havia sido seu filho começou a
dilacerar o próprio rosto.
– É mais longa do que se pensa, papai! – cacarejou a criatura. – Mais longa do que se pensa! Eu
prendi a respiração, quando eles me aplicaram o gás! Eu queria ver! Eu vi! Eu vi! É mais longa do que
se pensa!
Cacarejando e guinchando, a coisa sobre o divã-Excursão subitamente arrancou os olhos com as
garras. O sangue jorrou. A sala de recuperação era agora um aviário de vozes gritando agudamente.
– Mais longa do que se pensa, papai! Eu vi! Eu vi! Longa Excursão! Mais longa do que se
pensa...
A criatura ainda disse outras coisas, antes que os atendentes da Excursão finalmente
conseguissem levá-la dali, rodando seu divã a toda rapidez, enquanto ela gritava e fincava os dedos
engalfinhados nas órbitas dos olhos que tinham visto o para sempre e eterno oculto. Ela disse outras
coisas e então começou a gritar, mas Mark Oates não ouviu, porque a essa altura também estava
gritando. Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-61473595869036595242015-10-23T18:25:00.003-03:002015-10-23T18:25:52.495-03:00Chamarei de "morte qualquer".<h2>
[ <i><u>DEIXE AQUI SEU TÍTULO</u></i>]</h2>
<br />
Mas faça isso logo após ler, mentalmente, deixe sua imaginação te guiar nessa história. Guarde sua experiência para si.<br />
<br />
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Então....<br />
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Lá vai.<br />
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<br />
- Mortos não abrem a boca até alguém os chamarem para uma conversa, meu filho.<br />
O pior de tudo é que o filho da mãe tinha razão.<br />
<br />
Havia perigo eminente na rotatória do aeroporto, sirenes ressoavam no vazio da noite. Aquele som contínuo em parceria com aquelas luzes, somente iria crescendo, sucessivamente, o quanto eu ia me aproximando.<br />
Como todos os demais carros, meu pé estava lentamente pisando o freio. O painel indicava 20km/h, pouco para se incomodar e muito para conseguir observar dezenas de cabeças ao redor de um corpo no chão. Eu ainda escutei parte do nome: "Denner", era o mesmo que o meu primeiro. Seu corpo estava debruçado de forma torta, inclinada, e seu rosto havia deformações e eu tenho absoluta certeza de que eram de herança do recém-acidente. Consegui ver suas pernas tortas, e seus joelhos arqueados para dentro, seus pés se tocavam. Seus braços sumiram, e longe dele um pouco sobre a calçada, havia uma moto(ou pelo menos o que restou dela) e no guidão, havia dois pedaços de carne mortas, como se... segurando até o último minuto.<br />
<br />
Pessoas são curiosas e isso é verdade. Mas aquelas apenas iam e chegavam, ninguém aguentara ficar por ali (mas ainda sim uns iam e vinham, mesmo com alguns vomitando para o local dizer que não valeria a pena ver, mas pessoas são realmente curiosas e isso é de fato verdade), pois o cheiro estava forte e deplorável, em questões olfativas, o cadáver estava insuportável.<br />
<br />
Alguns lobos que vinham da floresta ao lado da pista estavam à deriva, apenas observando, esperando, aguardando uma bobeira de alguém. Afinal carne ainda era carne, e melhor ainda quando ainda estava fresca.<br />
<br />
Os mosquitos rodeavam. E eu acelerava, o trânsito estava ficando vago.<br />
Pelo retrovisor eu vi um lobo esperto desviando, correndo, por entre as pessoas e roubando um dos braços e indo de volta ao renque, onde todo o bando o seguia e se perdia no meio do nevoeiro.<br />
Eles uivavam.<br />
<br />
De alguma forma.... Esta noite há uma família satisfeita. Seus estômagos não roncavam mais.<br />
<br />
No outro dia eu sou "acordado", se bem que não dormir e fiquei pensando na cena, por um carteiro que montava uma bicicleta e arremessava jornais na vizinhança, ele acertou o vidro do meu quarto.<br />
<br />
Se eu bem me lembro, eu era um cara importante para a rua, todos me cumprimentavam e sorriam para mim. Mas eu vesti shorts, e camisa e parti para uma boa caminhada para pôr a mente no eixo certo, todos pareciam zangados e nem me olhavam nos olhos, não falavam nada, apenas passavam como se eu não estivesse lá.<br />
<br />
Eu não quis dar interesse nisso.<br />
Então eu corri.<br />
Cruzando a ponte Kneeling, logo depois do rio onde patinhos que navegavam com destreza junto a seus filhotes, também muito depois de um antigo Wall-mart que havia mudado de endereço não há muito tempo, chegando a um banco solitário foi onde me sentei para repôr as energias.<br />
Coincidentemente, eu digo, quase que instintivamente, certeza - eu dou de cara com a igreja onde o cara que eu me mantive pensando durante todo o meu percurso, estava sendo velado. Eu não tinha o que fazer e parecia que minha estadia naquela cidade estava sendo totalmente ignorada e provavelmente um tanto quanto odiada, então eu entrei. Enquanto eu subia os degraus da igreja eu observei o sino tocando interruptamente por sete vezes, como de costume, e depois parar. Pensei em dizer que era amigo íntimo do morto, mas talvez isso não iria colar, havia familiares ali e eles reconheceriam quaisquer amigos da vítima. Então apenas iria dizer que conhecia, isso basta, de alguma forma isso seria suficiente. Eu espero.<br />
<br />
Entro.<br />
<br />
Como em qualquer velório eles todos estão chorando e os que não estão, permanecem emburrados ou meneando a cabeça em tom de negatividade. Não vi foto alguma de princípio. O padre dizia algumas palavra para aquele cara de mesmo nome que eu, como se ele estivesse mesmo ouvindo.<br />
<br />
<br />
"- Irmãos, devo saturar aqui, que Denner era um cara da paz. Muito querido em nossa vizinhança..."<br />
<br />
Eu parei de escutar nessa parte, alguém de mesmo nome e também querido na vizinhança. Que sentindo isso faria? Eu não o conheço, mas quem sabe ele não esteja se referindo á outra vizinhança, outro bairro, até cidade talvez. Se enterrar na cidade onde uma mãe idosa mora é uma coisa ideal a se fazer, ficaria perto demais para que ela possa visita-lo enquanto não toma o mesmo fim.<br />
<br />
Foi aí que... ele disse. Ele abriu aquela boca imunda que há algumas noite pedira dinheiro dos fiéis e disse, disse com aquele gaguejar treinado para criar ênfase em suas frases, ganhar credibilidade. Ele disse.<br />
<br />
" Denner Ayres, meu irmão e amigo, eu sei que está na paz de Deus, eu sinto você aqui, você está aqui?" (poderia não ser uma pergunta, mas sai como se fosse.)<br />
<br />
O véu por cima da foto cai. Sou eu nela. Isso explica. Tudo.<br />
<br />
O badalar de sino toca sete vezes mais e se silencia. Pássaros voam e eu consigo ouvir o bater de asas deles bem distante. Eu grito, um berro profundo e mortal, minhas últimas forças. Todos da igreja olham para onde eu estava sentado - dessa vez todos eles escutaram, e alguns fecharam os olhos que estavam em prantos. A igreja é silenciada um tanto quanto unanimante com o meu "sim".<br />
<br />
Eu percebo que... estou preso a este mundo.<br />
<br />
- Mortos não abrem a boca até alguém os chamarem para uma conversa, meu filho. - meu avô diz.<br />
<br />
O pior de tudo é que o filho da mãe tinha razão.<br />
<br />
Mas ele completou que:<br />
<br />
- Meu filho, esta história não é para se contar para ninguém. Pois Denner Ayres vai buscar em seus sonhos, você. - Ele ri atonicamente. - Quem sabe ele já não está aqui?<br />
<br />
Lógico que não acreditei.<br />
-<br />
-<br />
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-<br />
Mas pra falar a verdade, que som foi este que acabei de escutar?<br />
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<br />
<br />Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-4833122315699670002015-10-21T15:08:00.001-03:002015-10-21T15:08:59.946-03:00A BALADA DO PROJÉTIL FLEXÍVEL - Stephen King's short stories<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
O churrasco havia terminado. Tinha sido excelente; bebidas, a carne mal-passada, tostada na
brasa, uma salada de verduras e o molho especial de Meg. Começara às cinco da tarde. Agora eram
oito e meia, já quase crepúsculo – a hora em que reuniões movimentadas começam a gerar desordem.
Contudo, ali não havia uma reunião movimentada. Os reunidos eram apenas cinco: o agente e sua
esposa, o prestigiado jovem escritor e sua esposa, e o editor da revista, de sessenta e poucos anos,
porém parecendo ser mais idoso. O editor dedicara-se a beber Fresca. Antes que ele chegasse, o agente
havia contado ao jovem escritor que, uma vez, ali houvera um problema de bebida. O problema
desaparecera, bem como a esposa do editor... motivo pelo qual eles eram cinco, em vez de seis.
Ao invés de surgir qualquer desordem, caiu sobre eles um ânimo introspectivo, quando começou
a escurecer no pátio dos fundos do jovem escritor, dando para o lago. O primeiro livro do jovem
escritor tinha recebido uma crítica excelente e vendera uma boa quantidade de exemplares. Ele era um
rapaz de sorte e, para seu crédito, estava a par disso.
Com divertida morbidez, a conversa passara do precoce sucesso do jovem escritor para outros
escritores também prematuramente bem sucedidos e que, então, se haviam suicidado. Falou-se em
Ross Lockridge, depois em Tom Hagen. A esposa do agente mencionou Sylvia Plath e Anne Sexton. O
jovem escritor disse que não achava Sylvia Plath qualificada como escritora vitoriosa. Ela não se
suicidara por causa do sucesso, disse ele; ela obtivera sucesso por ter-se suicidado. O agente sorriu.
– Por favor, não podíamos falar de outras coisas? – perguntou a esposa do jovem escritor, um
pouco nervosamente.
Ignorando-a, o agente disse:
– Também há a loucura. Houve os que enlouqueceram devido ao sucesso.
O agente falava nos tons brandos, mas gorgeados, de um ator nos bastidores. A esposa do escritor
ia protestar novamente – ela sabia que o marido, além de gostar de falar sobre o assunto, também
pilheriava a respeito, porque pensava demais naquilo quando o editor da revista começou a falar. E ele
disse algo tão estranho, que ela esqueceu o protesto.
– A loucura é um projétil flexível.
A esposa do agente olhou para ele, intrigada. O jovem escritor inclinou-se para diante, com ar
inquisitivo.
– Isso me soa familiar... – disse ele.
– Sem dúvida – replicou o editor. – Esse termo, a imagem, "projétil flexível", é de Marianne
Moore. Ela a usou para descrever um ou outro tipo de carro.
Eu sempre pensei que descrevia perfeitamente a condição da loucura. A loucura é uma espécie de
suicídio mental. Hoje em dia, os médicos não afirmam que a única maneira de realmente medir-se a
morte é através da morte da mente? Pois a loucura é uma espécie de projétil flexível para o cérebro.
A esposa do jovem escritor procurou mudar de assunto.
– Alguém quer outra bebida?
Ninguém se manifestou.
– Pois eu quero, já que iremos falar dessas coisas – disse ela, e saiu para preparar seu drinque.
– Apresentaram-me uma história certa vez, quando eu trabalhava em sua seleção, em Logan's.
Naturalmente, já encerrou suas atividades, da mesma forma que Collier's e agora The Saturday
Evening Post, porém sobrevivemos a ambos. – Ele declarou isto com um toque de orgulho na voz. –
Publicávamos trinta e seis contos por ano, talvez mais, e a cada ano, quatro ou cinco deles figuravam
na coleção de alguém como melhores do ano. E as pessoas os liam. De qualquer modo, o nome desta
história a que me referi era "A Balada do Projétil Flexível", tendo sido escrita por um homem chamado
Reg Thorpe. Um rapaz da idade deste jovem aqui e também um sucesso.
– Não foi ele que escreveu Underworld Figures? – perguntou a esposa do agente.
– Sim, foi ele. Uma ficha espantosa para uma primeira novela... Críticas espetaculares, vendas
formidáveis em brochura e encadernação, Associação Literária, tudo. Inclusive o filme foi bom,
embora não tanto como o livro. Nem lhe chegou aos pés.
– Eu adorei aquele livro – disse a esposa do autor, novamente atraída à conversa, embora a
contragosto. Tinha a surpresa e agradável expressão de quem acaba de recordar algo esquecido por
muito tempo. – Ele escreveu mais alguma coisa em seguida? Li Underworld Figures quando
freqüentava a faculdade, e isso foi... bem, há muito tempo, para lembrar agora.
– Você não envelheceu um dia desde então – disse a esposa do agente, em tom simpático, embora
achando que a esposa do jovem escritor usava um corpete pequeno demais e shorts muito apertados.
– Não, ele não tornou a escrever – disse o editor. – Exceto por esta única história de que falei. Ele
se matou. Ficou louco e matou-se.
– Oh! – exclamou desoladamente a esposa do escritor. Eles voltavam ao tema
– E o conto foi publicado? – perguntou o jovem escritor.
– Não, mas não porque o autor enlouquecesse e se matasse. Ela jamais foi impressa, porque o
editor ficou louco e quase se matou.
O agente levantou-se de súbito para renovar seu drinque, que dificilmente precisava ser renovado.
Ele sabia que o editor tivera um colapso nervoso no verão de 1969, não muito antes de Logan's ter
afundado em um mar de tinta vermelha.
– Eu era o editor – informou o editor aos restantes. – Em certo sentido, ficamos loucos juntos,
Reg Thorpe e eu, embora eu estivesse em Nova York, ele em Omaha e nem mesmo nos
conhecêssemos. Seu livro havia sido publicado seis meses antes, e ele se mudara para lá, a fim de
"ordenar as idéias", como se dizia então. Só sei este lado da história, porque vejo ocasionalmente a
esposa dele, quando ela vem a Nova York. É pintora e bastante boa nisso. Aliás, é uma moça de sorte.
Ele quase a levou consigo.
O agente voltou e sentou-se.
– Começo a me lembrar de algo disso agora – falou. – E não foi apenas a esposa, certo? Ele
baleou duas outras pessoas, uma delas uma criança.
– Exatamente – confirmou o editor. – E foi a criança que finalmente lhe desencadeou a loucura.
– A criança o levou à loucura? – perguntou a esposa do agente. – O que quer dizer com isso?
O rosto do editor, no entanto, dizia que não ia ser forçado; falaria, mas sem que o questionassem.
– Conheço o meu lado da história, porque o vivi – disse o editor da revista. – Também sou um
sujeito de sorte. Tive uma maldita sorte. É uma coisa interessante, sobre aqueles que tentam matar-se
apontando uma arma para a cabeça e puxando o gatilho. Qualquer um pensaria que é um método
certeiro, melhor do que pílulas ou cortar os pulsos, mas não é. Quando uma pessoa dá um tiro na
cabeça, não pode dizer o que vai acontecer. O balaço pode ricochetear no crânio e matar alguém mais.
Pode seguir a curvatura craniana inteiramente e sair do outro lado. Pode alojar-se no cérebro e cegar a
pessoa, sem matá-la. Um homem pode meter na testa uma bala de um 38 e acordar no hospital.
Outro pode meter na testa uma bala de um 22 e acordar no inferno... se é que existe tal lugar. Sou
propenso a crer que está aqui mesmo, na terra, possivelmente em Nova Jersey.
A mulher do escritor riu um tanto agudamente.
– O único método infalível de suicídio é atirar-se de um prédio bem alto, mas esta é uma saída
tomada apenas pelos extraordinariamente dedicados. Causa tanta confusão, não é mesmo?
"Meu ponto, contudo, é simplesmente este: quando a pessoa atira em si mesma com um projétil
flexível, em realidade ignora qual será o desfecho. No meu caso, saltei de uma ponte e acordei em um
aterro entulhado de lixo, com um motorista de caminhão espancando-me as costas e bombeando meus
braços, para cima e para baixo, como se tivesse apenas vinte e quatro horas para ficar em forma e me
tomasse por algum aparelho para exercitar-se em remadas. Para Reg, o projétil foi letal. Ele... Bem, lá
estou eu contando uma história e nem sei se querem ouvi-la.
Ele olhou inquisitivamente em torno, à penumbra cada vez maior. O agente e sua esposa
entreolharam-se, duvidosos. A esposa do escritor ia falar que já haviam tido uma dose suficiente de
assuntos lúgubres, quando seu marido disse:
– Eu gostaria de ouvi-la. Caso não se importe de contá-la, por motivos pessoais, quero dizer.
– Nunca a contei – disse o editor – porém não por motivos pessoais. Talvez nunca tenha
encontrado os ouvintes certos.
– Pois então, conte! – convidou o escritor.
– Paul... – Sua esposa lhe pôs a mão no ombro. – Não acha que...
– Agora, não, Meg.
O editor disse:
– A história chegou de bandeja, uma vez que nessa época, a Logan's há muito deixara de ler
textos não solicitados. Quando eles chegavam, uma moça se limitava a enfiá-los em envelopes de
devolução, anexando uma nota: "Devido à crescente despesa e à crescente impossibilidade do pessoal
editorial em dar conta do número crescente de textos recebidos, Logan's deixou de ler manuscritos não
solicitados. Desejamos-lhe sorte e que coloque sua obra em outra editora". Não é um formidável
punhado de conversa fiada?
Não é fácil usar a palavra "crescente" três vezes em uma só frase, mas eles conseguiram.
– E se não houvesse selos para a devolução, a história ia para a cesta de papéis – disse o escritor.
– Não é?
– Oh, inapelavelmente! Não há piedade na cidade nua.
Uma estranha expressão de desconcerto pairou no rosto do escritor. Era a expressão do homem
que está em uma cova de tigres, onde dúzias de homens melhores já foram rasgados em pedaços. Até
então, este homem não viu tigre algum. Contudo, ele pressente que os tigres estão lá e que suas garras
continuam afiadas.
– De qualquer modo – disse o editor, pegando sua cigarreira – esta história chegou e a moça da
sala de correspondência a pegou, grampeou a fórmula de rejeição à primeira página e já ia enfiá-la no
envelope de devolução, quando viu o nome do autor. Bem, ela tinha lido Undenworld Figures. Todos a
tinham lido naquele outono ou estavam lendo, quando não se encontravam na lista de espera da livraria
ou vistoriando as prateleiras dos drugstores pela edição em brochura.
A esposa do escritor, que percebera a momentânea inquietude no rosto do marido, tomou-lhe a
mão. Ele sorriu para ela. O editor acendeu o cigarro com um isqueiro Ronson de ouro e, à crescente
escuridão, todos puderam ver quão desfigurado estava seu rosto – as bolsas frouxas abaixo dos olhos,
com uma pele semelhante à dos crocodilos, as faces marcadas por sulcos, a ponta do queixo do velho
emergindo daquele rosto de avançada meia-idade, como a proa de um navio. Um navio, pensou o
escritor, que se chama velhice. Ninguém deseja um cruzeiro nele, porém os camarotes estão cheios.
Por falar nisso, também os porões.
O isqueiro apagou-se e o editor, sugou pensativamente o cigarro.
– A moça da sala de correspondência que leu aquela história e a passou adiante, em vez de
devolvê-la ao autor, é hoje editora-chefe na G. P. Putnam's Sons. Seu nome não vem ao caso; importa é
que, no grande gráfico da vida, o vetor dessa jovem se cruzou com o de Reg Thorpe, na sala de
correspondência da revista Logan's. Seu vetor subia, o dele descia. Ela entregou a história a seu chefe e
esse chefe a passou para mim. Eu a li e adorei. Em realidade, era um pouco longa, mas pude ver onde
ele cortaria quinhentas palavras, sem deturpar o sentido.
Então, ficaria ótima.
– Qual era o tema? – perguntou o escritor.
– Você nem devia perguntar – replicou o editor. – Ele se ajusta maravilhosamente ao contexto
total.
– É sobre enlouquecer?
– Sim, de fato. Qual é a primeira coisa que lhe ensinam, em seu primeiro curso universitário de
escrita criativa? Escreve sobre o que você sabe. Reg Thorpe sabia sobre ficar louco, porque estava
envolvido nisso. A história provavelmente me tenha seduzido, porque eu também me achava no
mesmo caminho. Agora você diria – se fosse editor – que a única coisa que não precisa ser impingida
ao público leitor americano, é outra história a respeito de Enlouquecer Elegantemente na América,
tema secundário, Não Existe mais Dialogo. Um tema popular, na literatura do século XX. Todos os
grandes escreveram a respeito e todos os escribas parecem obcecados por isso. Contudo, aquela
história era engraçada. Quero dizer, era de fato hilariante.
"Eu não havia lido nada igual antes e não li até hoje. O mais aproximado seriam alguns dos
contos de F. Scott Fitzgerald... e Gatsby. O personagem na história de Thorpe estava enlouquecendo,
mas enlouquecia de maneira muito divertida. A gente ri o tempo todo e havia duas passagens – aquela
em que o herói despeja a gelatina de limão na cabeça da moça gorda é a melhor – em que se dava
gargalhadas. Só que são gargalhadas nervosas, compreendam. Rimos e depois queremos olhar por
cima do ombro, para saber o que ouvimos. As linhas opostas de tensão nessa história são realmente
extraordinárias.
Quanto mais se ri, mais nervoso se fica. E quanto mais nervoso, mais se ri... até o ponto em que o
herói sai da festa dada em sua homenagem e volta para casa, onde mata a esposa e a filhinha.
– Qual é a trama? – perguntou o agente.
– Ora, isso não vem ao caso – replicou o editor. – Tratava-se apenas de uma história sobre um
rapaz que, aos poucos, ia perdendo o controle para enfrentar o sucesso. É melhor que tudo fique vago.
Uma sinopse detalhada da trama seria apenas tediosa.
Sempre é assim.
"De qualquer modo, escrevi-lhe uma carta. Dizia o seguinte:
"Caro Reg Thorpe, Acabei de ler "A Balada do Projétil Flexível" e achei excelente. Gostaria de
publicá-la em Logan's, no início do próximo ano, se lhe convier. Acha que 800 dólares soam bem?
Pagamento contra aceitação. Mais ou menos". Ponto parágrafo.
O editor pontilhou o ar noturno com seu cigarro.
"A histeria está um pouco longa e gostaria que você a encurtasse em cerca de quinhentas
palavras, se for possível. Eu estabeleceria um corte mínimo de duzentas palavras. Podemos fazer uma
ilustração". Ponto parágrafo. "Telefone, se interessar."
Minha assinatura. E lá se foi a carta para Omaha.
– E ainda se lembra dela, palavra por palavra, como disse? – perguntou a esposa do escritor.
– Mantenho toda a correspondência em um arquivo especial – disse o editor. – As cartas dele, as
cópias das minhas. No fim, havia uma boa pilha, incluindo-se três ou quatro cartas de Jane Thorpe, sua
esposa. De vez em quando leio tudo aquilo. Não é muito bom, claro. Querer tentar compreender o
projétil flexível, é tentar compreender como uma fita de Môbius só pode ter uma superfície. É assim
que são as coisas, neste melhor-de-todos-os-possíveis mundos. Sim, sei a carta palavra por palavra ou
quase isso. Algumas pessoas sabem a Declaração da Independência de cor.
– Aposto como ele telefonou no dia seguinte – disse o agente, sorrindo. – A cobrar.
– Não, ele não telefonou. Logo depois de Underworld Figures, Thorpe deixou completamente de
usar o telefone. Foi sua esposa que me contou. Quando se mudaram de Nova York para Omaha, eles
nem mesmo mandaram instalar um aparelho na casa nova. Compreendam, ele havia decidido que o
sistema telefônico não funcionava realmente à base de eletricidade, mas do radium. Thorpe achava que
este era um dos dois ou três mais bem guardados segredos do mundo. Afirmou para sua esposa que era
o radium o único responsável pela porcentagem crescente de câncer, não os cigarros, emissões de
automóveis ou a poluição industrial. Cada telefone tinha um pequeno cristal de radium no fone, de
modo que, em todas as vezes quando era usado, a pessoa injetava radiação na cabeça.
– Nossa, o cara era mesmo louco – disse o escritor, e todos eles riram.
– Ele escreveu, em vez de telefonar – disse o editor, com um piparote atirando seu cigarro na
direção do lago. – Sua carta dizia o seguinte: "Caro Henry Wilson (ou apenas Henry, se possível), Sua
carta foi não apenas excitante, mas também gratificante. Minha esposa ficou ainda mais satisfeita do
que eu. O dinheiro está ótimo... embora eu deva dizer, com toda sinceridade, que a idéia de ver o conto
publicado em Logan's me pareceu uma compensação mais do que adequada (contudo, eu o aceito, vou
aceitá-lo). Estive examinando os cortes que indicou e parecem oportunos. Acredito que melhorarão a
história, além de deixarem espaço para aquelas ilustrações. Atenciosamente, Reg Thorpe."
– Sob sua assinatura havia um pequeno e curioso desenho... mais como um rabisco. Um olho em
uma pirâmide, como aquele no verso da nota de um dólar. Contudo, em vez de Novus Ordo Secloruin,
na faixa abaixo, havia estas palavras: Fornit Some Fornus.
– Deve ser latim ou Groucho Marx – disse a esposa do agente.
– Era apenas parte da crescente excentricidade de Reg Thorpe – respondeu o editor. – Sua esposa
me disse que ele começara a acreditar nas "pessoas miúdas", algo assim como elfos e fadas. Os Fornits.
Eram os elfos da sorte e Reg achava que um deles morava em sua máquina de escrever.
– Oh, meu Deus! – exclamou a esposa do escritor.
– Segundo Thorpe, cada Fornit possuía um pequeno dispositivo, como um pulverizador, cheio
de... pó-da-sorte, creio que poderia dizer-se assim. E o pó-da-sorte...
– ... tinha o nome de fornus – completou o escritor, sorrindo amplamente.
– Exato. A esposa dele achava isso muito divertido. A princípio. De fato, no início – Thorpe
havia concebido os Fornits dois anos antes, enquanto rascunhava Undenworld Figures – ela pensava
apenas que Reg estivesse lhe fazendo uma brincadeira. Talvez, no começo ele estivesse mesmo. A
coisa parece ter progredido de fantasia a superstição e de superstição a crença absoluta. Era uma... uma
fantasia flexível. Só que rija no fim.
Muito rija.
Todos ficaram calados. Os sorrisos morreram.
– Os Fomits tinham seu lado engraçado – disse o editor. – A máquina de escrever de Thorpe
começou a ir regularmente para o conserto, no final da permanência do casal em Nova York, idas que
se tornaram ainda mais freqüentes quando se mudaram para Omaha. Thorpe escrevia em uma máquina
emprestada, quando a sua foi consertada a primeira vez, já em Omaha. O gerente da firma ligou dias
depois de Reg receber sua máquina de volta, para comunicar que lhe mandaria uma conta, pela limpeza
não só da máquina de empréstimo, como da que pertencia a ele.
– Qual era o problema? – quis saber a esposa do agente.
– Acho que sei – disse a esposa do escritor.
– Ela estava cheia de comida – disse o editor. – Pedacinhos diminutos de bolo e biscoitos.
Havia também manteiga de amendoim na peça em que são fixados os tipos da máquina.
Reg estava alimentando o Fornit que vivia em sua máquina de escrever. Também colocara
comida na máquina de empréstimo, na hipótese de que o Fomit se tivesse mudado para ela.
– Caramba! – exclamou o escritor.
– Eu não sabia de nada disso então, compreendam. Por essa vez, escrevi em resposta, dizendo-lhe
o quanto estava satisfeito. Minha secretária datilografou a carta e a trouxe para que eu a assinasse, mas
então precisou sair para fazer qualquer coisa. Assinei, e ela ainda não tinha voltado. Foi quando – sem
a menor razão para tanto – fiz o mesmo desenho garatujado abaixo de meu nome. Pirâmide. Olho. E
"Fornit Some Fornus".
Loucura. A secretária viu aquilo e perguntou se eu ia mandar a carta assim mesmo. Dei de
ombros, disse-lhe que a enviasse.
– Dois dias mais tarde, Jane Thorpe me telefonou. Disse que minha carta deixara Reg muitíssimo
excitado. Ele pensava que achara uma alma gêmea... outra pessoa que também sabia sobre os Fornits.
Vêem a que situação louca estava chegando a situação?
Que me conste, àquela altura um Fornit poderia ser qualquer coisa, desde chave-inglesa para
canhotos a faca de carne polaca. Idem para fornus. Expliquei a Jane que me limitara a copiar o desenho
de Reg. Ela quis saber por quê. Esquivei-me à pergunta, embora a resposta pudesse ser que eu estava
muito bêbado, quando assinei a carta.
Ele fez uma pausa, e um silêncio incômodo caiu sobre o pátio dos fundos. As pessoas olharam
para o céu, para o lago, as árvores, embora não estivessem mais interessantes agora, do que tinham
estado um ou dois minutos antes.
– Eu tinha estado bebendo durante toda a minha vida adulta, sendo-me impossível dizer quando a
situação me escapou ao controle. No sentido profissional, eu ia do topo da garrafa até quase o próprio
final. Começava a beber no almoço e voltava tocado para o escritório. Contudo, funcionava
perfeitamente bem. Era a bebida depois do trabalho – primeiro no trem e depois em casa – que me
levava para além do ponto funcional.
"Eu e minha esposa vínhamos tendo problemas não relacionados à bebida, mas o fato de beber
piorava ainda mais aqueles problemas. Ela viera se preparando para ir embora havia muito tempo. Uma
semana antes da história de Reg Thorpe chegar, ela se foi.
"Eu tentava manejar a situação, quando deparei com a história dele. Agora bebia pesadamente. E,
para cúmulo, estava tendo – bem, acho que agora é moda dar a isso o nome de crise da meia-idade. Na
época, sabia apenas que estava deprimido por causa de minha vida profissional e também da vida
pessoal. Procurava lutar contra – ou tentava – uma crescente sensação de que editar histórias em massa
para o mercado, histórias que terminariam sendo lidas por pacientes nervosos no dentista, donas de
casa na hora do almoço e um ocasional universitário entediado, não era propriamente uma atividade
nobre. Procurava também lutar contra a idéia – novamente, tentava, aliás, era o que todos fazíamos na
Logan's, nessa época – de que em mais seis meses, dez ou quatorze, talvez não houvesse mais
nenhuma Logan's.
"Então, nessa monótona paisagem outonal da meia-idade angustiada, surge uma boa história, de
autoria de um bom escritor – uma energética e divertida espiada à mecânica do enlouquecer. Foi como
um raio brilhante de sol. Sei que parece estranho dizer isso sobre uma história que termina com o
personagem matando a esposa e a filha pequenina, porém perguntem a qualquer editor o que ele
considera uma real alegria, e ele lhes dirá que é a grande novela ou história inesperadas, caindo em sua
mesa de trabalho como um grande presente de Natal. Bem, vocês todos conhecem aquela história de
Shirley Jackson, "A Loteria". Ela termina da maneira mais deprimente que se possa imaginar. Quero
dizer, uma bela dama é apedrejada até morrer. Seu filho e sua filha participam de seu assassinato, pelo
amor de Deus! Contudo, foi uma história e tanto... e aposto como o editor da New York que primeiro
leu a história, naquela noite voltou assobiando para casa.
"O que estou tentando dizer é que a história de Thorpe foi a melhor coisa em minha vida, naquele
momento. A única coisa boa. E, segundo o que a esposa dele me disse ao telefone, nesse dia, minha
aceitação da história foi a única coisa boa que tinha acontecido a Thorpe ultimamente. O
relacionamento escritor-editor é sempre de mútuo parasitismo, porém no meu caso e de Reg, esse
parasitismo foi elevado a um grau incomum.
– Voltemos a Jane Thorpe – pediu a esposa do escritor.
– Certo. Penso que a deixei em um desvio, não? Ela ficou zangada no tocante aos Fornits. A
princípio. Contei-lhe que apenas garatujara aquele símbolo olho-e-pirâmide, sem saber ao certo seu
significado, e me desculpei pelo que quer que houvesse feito.
"Ela dominou sua raiva e soltou tudo para mim. Estivera ficando cada vez mais ansiosa, sem ter
com quem desabafar. Seus pais estavam mortos e todos os seus amigos viviam em Nova York. Reg
não permitia a presença de ninguém em casa, além deles dois, alegando que os outros eram gente do
Imposto de Renda, do FBI ou da CIA.
Não muito depois de se mudarem para Omaha, uma garotinha chegou à porta, vendendo biscoitos
para as escoteiras. Reg gritou com ela, disse-lhe que fosse vender aquilo no inferno, que sabia
perfeitamente por que estava ali, e por aí adiante. Jane tentou argumentar com ele. Disse que a menina
só tinha dez anos. Reg respondeu que a gente dos impostos não tinha almas nem consciências. Além do
mais, disse ele, a menininha podia ser algum andróide. Andróides não estariam sujeitos às leis
trabalhistas para crianças. Talvez o pessoal dos impostos houvesse mandado uma escoteira andróide,
cheia de cristais de radium, para descobrir se ele estava guardando segredos... e, nesse meio tempo,
para impregna-lo com raios cancerosos.
– Santo Deus! – exclamou a esposa do agente.
– Ela havia esperado uma voz amistosa e a minha foi a primeira. Fiquei sabendo a história da
menina escoteira, sobre a preocupação de Reg com os Fornits e sua alimentação, sobre fornus e sobre
como ele se recusara a ter um telefone em casa ou a usar um. Ela falava comigo de um telefone pago,
em uma cabine de drugstore, cinco quarteirões além de sua casa. Disse recear que Reg não estivesse
realmente preocupado com a gente dos impostos, homens do FBI ou da CIA. Em sua opinião, o que
seu marido realmente temia era que Eles – algum maciço e anônimo grupo que o odiava, que o
invejava, que não se deteria diante de nada para apanha-lo – houvessem tomado conhecimento de seu
Fornit e quisessem matar a criatura. Se o Fornit morresse, não haveria mais novelas, mais contos, nada.
Compreendem? A essência da insanidade. Eles estavam decididos a liquida-lo. Resumindo, nem
mesmo o Imposto de Renda, que o fizera passar momentos infernais, no relacionado à renda gerada por
Underworld Figures, serviria como pretexto. No fim, eram apenas Eles. A perfeita fantasia paranóica.
Eles queriam matar o seu Fornit.
– Céus, e o que você disse a ela? – perguntou o agente.
– Procurei tranqüiliza-la – disse o editor. – Lá estava eu, tendo retornado pouco antes de um
almoço regado a cinco martinis, falando com aquela mulher aterrorizada que me ligava de uma cabine
telefônica em um drugstore de Omaha, procurando convencê-la de que tudo estava bem, de que não
devia preocupar-se com o marido que acreditava estarem os telefones repletos de cristais de radium,
imaginando que um bando de pessoas anônimas enviava escoteiras andróides para liquida-lo. Disse-lhe
para não inquietar-se, se seu marido havia desligado seu próprio talento de sua mentalidade, a tal
ponto, que acreditava haver um elfo morando em sua máquina de escrever.
"Não acho que tenha sido muito convincente". Ela me pediu – não, suplicou – para trabalhar com
Reg em sua história, para providenciar sua publicação. Aquela mulher fez tudo, exceto dizer que "O
Projétil Flexível" era o último contato do marido com o que, humoristicamente, chamamos de
realidade.
"Perguntei-lhe como agir, caso Reg tornasse a mencionar os Fornits. "Seja indulgente com ele",
disse ela. Foram suas exatas palavras – seja indulgente com ele. E então, desligou.
"No dia seguinte, havia uma carta de Reg na correspondência – cinco páginas, datilografadas,
espaço um. O primeiro parágrafo era sobre a história. Ele dizia que o segundo rascunho estava indo
bem. Achava-se capaz de cortar setecentas palavras das originais dez mil e quinhentas, reduzindo o
conto definitivo a nove mil e oitocentas palavras.
"O restante da carta era sobre Fornits e fornus. Suas próprias observações e perguntas... dúzias de
perguntas.
– Observações? – o escritor inclinou-se para diante. – Quer dizer que ele os via realmente?
– Não – disse o editor. – Reg não os via, em um sentido real, porém, de outra maneira... suponho
que sim. Sabem como é: os astrônomos supunham – sabiam – que Plutão estava lá, muito antes de
contarem com um telescópio potente o bastante para vê-lo. Sabiam tudo sobre ele, estudando a órbita
do planeta Netuno. Era dessa maneira que Reg observava os Fornits. Eles gostavam de comer à noite,
segundo escreveu. Será que eu já percebera isso? Ele os alimentava durante todas as horas do dia,
porém havia notado que a maioria da comida desaparecia após as oito da noite.
– Alucinação? – perguntou o escritor.
– Não – respondeu o editor. – Sua esposa, simplesmente, limpava o máximo daquela comida na
máquina de escrever, quando Reg saia para sua caminhada noturna. E ele saía todas as noites, às nove
horas.
– Eu diria que ela teve coragem, ligando para você – grunhiu o agente, remanejando o corpo
volumoso na cadeira de jardim. – Ela própria alimentava a fantasia do homem.
– Acho que não entendeu por que ela me telefonou e por que estava tão perturbada. replicou
quietamente o editor. Olhou para a esposa do escritor. – Pois aposto que você entendeu, Meg.
– Talvez – disse Meg, e dirigiu ao marido um desconfortável olhar de esguelha. – Ela não se
irritou por você incentivar a fantasia do marido. Apenas, tinha medo que você a transtornasse.
– Muito bem! – exclamou o editor, acendendo outro cigarro. – E ela removia o alimento pelo
mesmo motivo. Se a comida continuasse a acumular-se na máquina de escrever, Reg faria a dedução
lógica, partindo diretamente de sua própria e decididamente ilógica premissa. Ou seja, que seu Fornit
morrera ou tinha ido embora. Portanto, não haveria mais fornus. Em resultado, não haveria mais
escritos. Daí...
O editor deixou a palavra em suspenso na fumaça do cigarro, depois prosseguiu:
– Reg imaginou que os Fornits deviam ser criaturas notívagas. Elas detestavam barulho – ele já
percebera que não conseguia escrever pela manhã, após reuniões ruidosas – odiavam a televisão, a
eletricidade livre e o radium. Reg vendera sua TV para a Goodwill por vinte dólares, segundo
afirmava, e há muito se fora o seu relógio de pulso com mostrador de radium. Depois, as perguntas.
Como eu ficara sabendo sobre os Fornits? Seria possível que tivesse um morando comigo? Em caso
afirmativo, o que eu pensava disto, disto ou daquilo? Acho que não preciso ser mais específico. Se
vocês já possuíram um cão de determinada raça e podem recordar as perguntas feitas sobre cuidados
com ele e alimentação, percebem a maioria das perguntas que Reg me fez. Um pequeno rabisco abaixo
de minha assinatura, foi tudo quanto se precisou, para que se abrisse a caixa de Pandora.
– O que escreveu em resposta? – perguntou o agente.
– Foi aí que realmente começou o problema – respondeu lentamente o editor. – Para nós dois.
Jane havia dito "Seja indulgente com ele" e foi o que fiz. Infelizmente, acho que exagerei. Quando
respondi à carta, estava em casa e muito bêbado. O apartamento me parecia demasiado vazio. Tinha
um cheiro rançoso de excesso de cigarros fumados e pouca aeração. As coisas tinham piorado muito,
sem Sandra por ali. As cobertas em cima do sofá estavam amarfanhadas. Havia pratos sujos na pia,
esse tipo de situação. Eu era um homem de meia-idade, despreparado para a domesticidade.
"Enfiei uma folha de papel de minha correspondência pessoal na máquina de escrever, e pensei:
Preciso de um Fornit. De fato, eu precisava de uma dúzia deles, para que tirassem o pó desta maldita
casa solitária com fornus, de ponta a ponta. Naquele instante, de fato eu estava bêbado o bastante para
invejar a fantasia de Reg Thorpe.
"Naturalmente, escrevi para ele que tinha um Fornit. Disse-lhe que o meu tinha incríveis
características similares ao dele. Era notívago. Odiava barulho, mas parecia apreciar Bach e Brahms...
Falei que era comum executar meu melhor trabalho após uma noite ouvindo-os. Descobrira que meu
Fornit mostrava uma decidida predileção por salsichão Kirschner's... – Reg já fizera essa experiência?
Eu simplesmente deixava pequenas migalhas perto do Scrillto que sempre carregava – meu lápis azul
editorial, caso não saibam – e, pela manhã, estava quase tudo consumido. A menos que, como dizia
Reg, tivesse havido barulho na noite anterior. Falei-lhe que ficara satisfeito em saber do detalhe sobre
o radium, embora não possuísse um relógio de pulso com mostrador fosforescente. Acrescentei que
meu Fornit estava comigo desde a universidade. Fiquei tão entusiasmado com minha invenção, que
escrevi quase seis páginas. No final, acrescentei um parágrafo sobre a história, algo bastante
superficial, e assinei.
– E abaixo de sua assinatura...? – perguntou a esposa do agente.
– Claro. Fornit Some Fornus. – O editor fez uma pausa. – Não podem enxergar no escuro, mas
fiquei vermelho. Eu estava tão infernalmente bêbado, tão infernalmente tocado... É possível que
mudasse de idéia à fria luz do dia, mas então já era muito tarde.
– Colocou a carta no correio à noite? – murmurou o escritor.
– Exatamente. E então, por uma semana e meia, contive o fôlego, enquanto esperava. Certo dia,
chegou o manuscrito, endereçado a mim, sem nenhuma carta. Os cortes estavam como havíamos
discutido e pensei que a história houvesse ficado perfeita, mas o manuscrito estava... bem, eu o
coloquei em minha pasta, levei-o para casa e o redatilografei pessoalmente. Estava coberto de manchas
amarelas e estranhas. Imaginei...
– Urina? – perguntou a esposa do agente.
– Sim, foi o que imaginei. Contudo, não era. Quando cheguei em casa, havia uma carta de Reg
em minha caixa de correspondência. Agora, dez páginas. Naturalmente, ali vinha a explicação para as
manchas amarelas. Ele não conseguira encontrar o salsichão Kirschner's, de maneira que tentara o
Jordan's.
"Acrescentou que eles o tinham adorado. Em especial com mostarda.
"Naquele dia, eu estava absolutamente sóbrio. Contudo, sua carta, acrescida daquelas lamentáveis
manchas de mostarda através das páginas de seu manuscrito, fez com que eu caminhasse diretamente
para o armário de bebidas. Não apenas passei ao lado do armário, não me multei. Fui embriagar-me.
– O que mais dizia a carta? – quis saber a esposa do agente.
Ela se mostrara cada vez mais fascinada pelo relato e agora, inclinada sobre ventre algo
avolumado, exibia uma postura que fazia a esposa do escritor recordar Snoopy, no teto de sua casa de
cachorro, fingindo ser um abutre.
– Desta vez, continha apenas duas linhas sobre a história. Todo o crédito era atribuído ao Fornit...
e a mim. O salsichão tinha sido, de fato, uma idéia fantástica. Rackne o adorara e, em decorrência...
– Rackne? – perguntou o escritor.
– Era o nome do Fornit – disse o editor. – Rackne. Então, em decorrência do salsichão, Rackne é
que, em realidade, estava por trás do texto reescrito. O restante da carta era um canto paranóico. Nunca
vi nada semelhante na vida.
– Reg e Rackne... um casamento traçado no céu – disse a esposa do escritor, com uma risadinha
nervosa.
– Oh, de maneira alguma – replicou o editor. – O relacionamento deles era puramente de
trabalho. Afinal, Rackne era macho.
– Bem, fale-nos sobre a carta.
– Essa é uma que não sei de cor. Tanto melhor para vocês. Mesmo anormalidades, após algum
tempo tornam-se tediosas. O carteiro era da CIA. O entregador de jornais era do FBI; Reg tinha visto
um revólver provido de silenciador, no saco de jornais que o menino carregava. Os vizinhos eram
espiões de alguma espécie; possuíam um equipamento de vigilância em seu furgão. Ele não ousava
mais ir à mercearia da esquina para comprar mantimentos, porque o proprietário era um andróide.
Disse que já desconfiava disso antes, porém que agora tinha certeza. Ele vira os fios que se
entrecruzavam sob o couro cabeludo do homem, nas partes que começavam a ficar calvas. Além do
mais, estava alta a contagem do radium em sua casa; à noite, podia ver uma mortiça claridade
esverdeada nos aposentos.
"A carta terminava assim: "Espero que responda a esta e me ponha ao corrente de sua situação (e
do seu Fornit), com referência a inimigos, Henry. Acredito que este nosso relacionamento tenha sido
uma ocorrência que transcende à coincidência. Poderíamos dar a ele o nome de alerta-vital (de Deus?
Da Providência? Do Destino? Inclua o termo que desejar) no último instante possível.
"Não é crível que um homem fique sozinho por tanto tempo, contra mil inimigos. E quando,
afinal, descobrir que não se encontra só... seria exagero dizer que a comunalidade de nossa experiência
se levanta entre a minha pessoa e a destruição total?
Talvez não. Eu preciso saber: os inimigos estão atrás de seu Fornit, como estão de Rackne? Em
caso afirmativo, como você maneja a situação? Em caso negativo, tem alguma idéia de por que não
estão? Repito, eu preciso saber."
"A carta continha o desenho do Fornit Some Fornus abaixo da assinatura e, em seguida, vinha um
P.S., constando de apenas uma frase. Contudo, uma frase letal. O P.S. dizia: "Às vezes, desconfio de
minha esposa."
"Li a carta do começo ao fim três vezes. No processo, dei cabo de uma garrafa inteira de Black
Velvet. Comecei a considerar opções sobre como responder àquela carta. Era um grito de socorro de
um homem afogando-se, sem qualquer dúvida. A história o mantivera lúcido por algum tempo, mas
agora ela ficara pronta. E agora ele dependia de mim para continuar lúcido. Era algo perfeitamente
racional, desde que eu acarretara tudo aquilo.
"Andei de um lado para outro dentro de casa, por todos os aposentos vazios. Então, comecei a
desligar coisas. Estava muito bêbado, lembrem-se, e uma forte bebedeira abre vias inesperadas de
sugestibilidade. Daí o motivo de editores e advogados optarem por três drinques, antes de falarem
sobre contratos, à hora do almoço.
O agente deu uma risada ruidosa, mas os ânimos permaneceram rígidos, tensos e incômodos.
– Por favor, tenham em mente que Reg Thorpe era um senhor escritor. Estava absolutamente
convicto do que dizia. FBI. CIA. IR. Eles. Os inimigos. Certos escritores possuem o dom muito raro de
refrigerar sua prosa, quanto mais apaixonadamente sentem o seu tema. Steinbeck fazia isso e também
Hemingway. Reg Thorpe tinha o mesmo talento. Quando alguém penetrava em seu mundo, tudo
começava a parecer muito lógico. Achava-se muito provável, uma vez aceita a premissa básica do
Fornit, que o menino entregador de jornais tivesse um 38 com silenciador em sua saca de jornais. Que
os universitários da casa ao lado, donos do furgão, poderiam realmente ser agentes da KGB, com
cápsulas mortíferas em molares de cera, empenhados em uma missão faça-ou-morra, para matar ou
capturar Rackne.
"Naturalmente, não aceitei a premissa básica. Contudo, eu sentia grande dificuldade em
raciocinar. E desligava coisas. Primeiro foi a televisão colorida, por que todos sabem que realmente
emitem grande radiação. Na Logan's, publicamos certa vez um artigo da autoria de um cientista de
reputação inatacável, sugerindo que a radiação emitida pela TV em cores doméstica estava
interrompendo as ondas cerebrais humanas o suficiente para alterá-las, minuciosa, mas
permanentemente. Esse cientista sugeria que talvez fosse este o motivo do declínio das notas em geral
dos estudantes, dos testes literários e do desenvolvimento de especialização matemática na escola
primária. Afinal, quem fica mais sentado diante de um aparelho de TV do que uma criança?
"Assim, desliguei a televisão, e isso pareceu realmente arejar meus pensamentos. De fato, sentime
tão melhor, que desliguei o rádio, a tostadeira, a máquina de lavar e a secadora de roupas. Lembreime
então do forno de microondas e o desliguei da parede.
"Senti um verdadeiro alívio, quando os dentes da maldita coisa foram arrancados. Era um dos
primeiros modelos no mercado, mais ou menos do tamanho de uma casa e, sem dúvida, realmente
perigoso. Hoje em dia, consegue-se fazê-los mais protegidos.
"Ocorreu-me quantas coisas possuímos em uma residência comum da classe média, ligadas à
parede. Veio-me uma imagem sobre esses sérios octópodes elétricos, seus tentáculos consistindo de
fios elétricos, todos serpenteando pelas paredes, todos ligados a cabos externos, e todos os cabos
seguindo para estações de energia elétrica, dirigidas pelo governo.
"Quando fiz aquelas coisas, havia uma curiosa duplicidade em minha mente – prosseguiu o
editor, após uma pausa para um gole de Fresca. – Essencialmente, eu reagia a impulsos supersticiosos.
Há muitas pessoas que não passam debaixo de escadas ou abrem um guarda-chuva dentro de casa. Há
jogadores de basquete que se benzem antes de uma jogada decisiva e jogadores de beisebol que trocam
as meias quando estão inferiorizados. Creio que seja a mente racional tocando um acompanhamento
em mau estéreo com o subconsciente irracional. Eu diria que se trata de um pequeno aposento
acolchoado, dentro de todos nós, onde o único mobiliário é uma pequena mesa dobrável de jogo, sendo
a única coisa sobre a mesa um revólver carregado com projéteis flexíveis.
"Quando trocamos de calçada para fugir à escada ou saímos do apartamento para a chuva com um
guarda-chuva fechado, parte de nosso eu integral se despe e penetra naquele aposento, onde pega a
arma em cima da mesa. Talvez estejamos cônscios de dois pensamentos conflitantes: passar debaixo da
escada é inofensivo e não passar debaixo de uma escada também é inofensivo. Contudo, assim que a
escada está atrás de nós – ou assim que o guarda-chuva é aberto – voltamos ao ponto de partida.
– Isso é muito interessante – disse o escritor. – Avance um pouco mais para mim, caso não se
importe. Quando é que a parte irracional pára realmente de brincar com a arma e a aponta para a
têmpora?
O editor respondeu:
– Quando a pessoa em questão começa a escrever para a seção de leitores dos jornais, exigindo
que todas as escadas sejam retiradas, porque passar debaixo delas é perigoso.
Houve risos.
– Já que fomos tão longe, creio que devemos terminar. O eu irracional disparou realmente o
projétil flexível no cérebro, quando a pessoa começa a mover-se violentamente pela cidade,
derrubando escadas e talvez machucando os que nelas trabalham. Dar a volta em torno de escadas ou
passar debaixo delas não é, certamente, um comportamento interditável. Tampouco é comportamento
interditável alguém escrever cartas ao jornal, dizendo que a Cidade de Nova York entrou em colapso,
porque todos passam atrevidamente debaixo das escadas usadas por operários. Contudo, é interditável
começar a derrubar escadas.
– Porque é premeditado – murmurou o escritor.
O agente disse:
– Você acertou o alvo aí, Henry. Pessoalmente, sou contra acender três cigarros com um só
fósforo. Não sei como adquiri a mania, mas é assim que ajo. Aliás, li em algum lugar, que isso
começou nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Parece que os atiradores alemães esperavam que
os Tommies começassem a acender os cigarros uns dos outros.
No primeiro clarão, consegue-se o alcance de tiro. No segundo, avalia-se o desvio da bala. E, no
terceiro, estoura-se a cabeça do sujeito. Contudo, mesmo saber disso não fez qualquer diferença. Ainda
continuo sem acender três cigarros com um fósforo. Uma parte de mim diz que pouco importa se
acendo uma dúzia de cigarros com um fósforo. A outra, no entanto – esta, uma voz lúgubre e soturna,
como um Boris Karloff interior – diz, Ohhhh, se você fizer isso..."
– Entretanto, nem toda a loucura é supersticiosa, certo? – perguntou timidamente a esposa do
escritor.
– Será? – replicou o editor. – Joana d'Arc ouvia vozes do céu. Algumas pessoas julgam-se
possuídas por demônios. Outras vêem gremlins... ou diabos... ou Fornits. Os termos que usamos para a
loucura, sugerem superstição, em uma ou outra forma. Mania... anormalidade... irracionalidade...
demência... insanidade... Para a pessoa louca, a realidade entortou-se. Como um todo, a criatura
começa a reintegrar-se naquele quartinho onde está a pistola.
"Contudo, a minha parte racional ainda estava bem presente. Ensangüentada, esfolada, indignada
e talvez amedrontada, mas ainda funcionando. Dizendo: "Oh, está tudo bem. Amanhã, quando você
ficar sóbrio, poderá ligar tudo outra vez, graças a Deus. Faça as brincadeirinhas que quiser, mas não
passe daí. Não vá além disso."
"Aquela voz racional tinha o direito de estar amedrontada. Em nós, existe algo que é muito
atraído para a loucura. Todos que olham pela borda de um edifício alto, já sentiram pelo menos uma
fraca, mórbida vontade de saltar. E quem quer que já tenha encostado uma arma carregada à cabeça...
– Ai, pare! – disse a esposa do escritor. – Por favor!
– Está bem – respondeu o editor. – Meu ponto é apenas este: mesmo a pessoa mais bem ajustada,
tem sua lucidez pendendo de uma corda ensebada. Acredito realmente nisso. Os circuitos da
racionalidade são fracamente construídos dentro do animal humano.
"Com as tomadas desligadas, fui para meu estúdio, escrever uma carta para Reg Thorpe.
Depois a coloquei em um envelope, selei-a, saí e a postei. Aliás, não me recordo de ter feito nada
disso. Estava bêbado demais para lembrar. No entanto, deduzi que fiz, porque quando me levantei, na
manhã seguinte, o carbono ainda estava sobre minha máquina de escrever, juntamente com os selos e a
caixa de envelopes. A carta dizia o que se pode esperar de um bêbado. Seu conteúdo explicava mais ou
menos isto: os inimigos eram atraídos pela eletricidade, assim como os próprios Fornits. Livre-se da
eletricidade e estará livre dos inimigos. No fim, eu tinha escrito: "A eletricidade está transtornando
suas idéias sobre estas coisas, Reg. Interferência com ondas cerebrais. Sua esposa tem um
liquidificador?"
– Com efeito, você começava a escrever cartas para o jornal – comentou o escritor.
– Sem dúvida. Escrevi aquela carta em uma noite de sexta-feira. Na manhã de sábado, levantei
por volta das onze horas, com ressaca e apenas vagamente cônscio da traquinada cometida na véspera.
Senti ondas de vergonha, quando comecei a religar os aparelhos elétricos. A vergonha maior – e medo
– foi quando vi o que tinha escrito a Reg. Revisei toda a casa em busca do original daquela carta,
rezando para não a ter enviado. Contudo, ela já estava a caminho de Omaha. E só consegui passar
aquele dia, tomando a decisão de carregar minha cruz como homem e seguir em frente. Foi o que fiz.
"Na quarta-feira seguinte, recebi carta de Reg. Uma página, manuscrita. Toda desenhada com
Fornit Some Fornus. No meio, apenas isto: "Você tinha razão. Obrigado, obrigado, obrigado. Reg.
Você tinha razão. Tudo está ótimo agora. Reg. Muitíssimo obrigado. Reg. O Fornit está ótimo. Reg.
Obrigado. Reg."
– Oh, meu Deus! – exclamou a esposa do escritor.
– Aposto como a mulher dele ficou louca – disse a esposa do agente.
– Nada disso. Porque a coisa funcionou.
– Funcionou? – perguntou o agente.
– Ele recebeu minha carta na correspondência da manhã de segunda-feira. Na tarde desse dia,
Reg foi ao escritório local da companhia de eletricidade e disse a eles que cortassem a energia de sua
casa. Jane Thorpe, naturalmente, ficou histérica. Seu fogão era elétrico e, de fato, ela possuía um
liquidificador, máquina de costura, uma combinação de lavadora-secadora de roupas... bem, vocês
entendem. Na noite de segunda-feira, tenho certeza de que ela estava pronta para ter minha cabeça em
uma bandeja.
"Contudo, foi o comportamento de Reg que a levou a considerar-me um fazedor de milagres, em
vez de lunático. Ele a fez sentar-se na sala de estar e conversou com ela, demonstrando a maior
racionalidade. Disse saber que estivera agindo de maneira muito singular. Sabia-a preocupada com
isso. Disse-lhe que se sentia bastante melhor com a eletricidade cortada e que ficaria satisfeito em
ajudá-la, ante qualquer inconveniência produzida por aquele corte de energia. Depois sugeriu que
fossem até a casa vizinha, dizer olá.
– Não era a residência dos agentes da KGB, com radium em seu furgão? perguntou o escritor.
– Exatamente. Jane não teve saída. Concordou em ir lá com ele, segundo me disse, mas já
preparada para uma cena desagradável. Acusações, ameaças, histeria. Começara a pensar em
abandonar Reg, se ele não acedesse em obter ajuda para seu problema.
Contou-me que, naquela manhã de quarta-feira ao telefone, fizera a si mesma uma promessa: a
questão da eletricidade era a gota que fazia o copo transbordar. Ele que aprontasse mais uma, e ela
partiria para Nova York. Estava ficando amedrontada, entendam. A situação havia piorado aos poucos,
em graus quase imperceptíveis, e ela o amava, mas já fora tão longe até onde podia ir. Decidira que, se
Reg dissesse uma só palavra estranha aos estudantes vizinhos, sairia de casa. Muito mais tarde, fiquei
sabendo que ela já tomara algumas discretas informações sobre o procedimento em Nebraska para
internação involuntária de um doente mental.
– Pobre mulher! – murmurou a esposa do escritor.
– A noite, contudo, foi um estrondoso sucesso – disse o editor. – Reg não podia estar mais
fascinante... e, segundo Jane, ele foi extraordinariamente fascinante. Nunca o vira assim, nos últimos
três anos. A casmurrice, o retraimento, tudo desaparecera. Os tiques nervosos. O salto involuntário e o
olhar por sobre o ombro, sempre que uma porta era aberta. Ele tomou uma cerveja e discorreu sobre
todos os sombrios tópicos da atualidade naquela época: a guerra, as possibilidades de um exército de
voluntários, as desordens nas cidades, as leis decadentes.
"O fato dele haver escrito Underworld Figures veio à tona, e eles ficaram... "impressionados pelo
escritor", foi como disse Jane. Três deles já o tinham lido, mas é fora de dúvida que o outro não
perderia muito tempo, antes de correr para a biblioteca.
O escritor riu e assentiu. Já passara por isso também.
– Assim – prosseguiu o editor – deixaremos Reg Thorpe e sua esposa apenas por um momento,
sem energia elétrica, porém mais felizes do que nunca...
– Ainda bem que ele não possuía uma máquina de escrever IBM – disse o agente – e voltaremos
ao Senhor Editor. Duas semanas passaram. O verão chegava ao fim. O Senhor Editor tinha, é claro,
recaído na bebedeira várias vezes, mas em geral conseguia permanecer bastante respeitável. Os dias
sucederam-se. Em Cabo Kennedy, estavam prontos para colocar um homem na Lua. O novo exemplar
de Logan's, com John Lindsay na capa, já estava à venda. mas vendendo miseravelmente, como de
costume.
Eu havia apresentado um pedido para compra de um conto chamado "A Balada do Projétil
Flexível", da autoria de Reg Thorpe, direitos para a primeira série, publicação proposta para janeiro de
1970 e preço proposto de compra 800 dólares, que era o padrão, para uma história principal na
Logan's.
"Recebi uma chamada de meu superior, Jim Dohegan. Eu poderia subir para falar com ele? Trotei
até seu gabinete às dez da manhã, com minha melhor aparência e sentido-me ótimo. Só mais tarde,
ocorreu-me que Janey Morrison, secretária dele, parecia com cara de velório.
"Sentei-me e perguntei a Jim o que podia fazer por ele ou vice-versa. Evidentemente, estava com
o nome de Reg Thorpe na cabeça; ter sua história era um tremendo sucesso para Logan's e desconfiei
que havia algumas felicitações a caminho. Assim, podem imaginar qual o meu aturdimento, quando ele
empurrou duas ordens de compra sobre a mesa, em minha direção. A história de Thorpe e uma novela
de John Updike, que havíamos programado como a ficção principal para fevereiro. A palavra
DEVOLUÇÃO tinha sido carimbada em ambas.
"Olhei para as ordens de compra revogadas. Olhei para Jimmy. Não conseguia entender nada. De
fato, não conseguia pôr meu cérebro em funcionamento para desvendar aquilo.
Havia um bloqueio interno. Olhei em torno e vi sua placa elétrica. Janey a levava todas as
manhãs, quando vinha trabalhar, e então ligava a placa, a fim de que Jimmy tivesse café fresco, sempre
que quisesse. Aquele tinha sido um rigoroso costume na Logan's, durante três anos ou mais. E, naquela
manhã, eu só conseguia pensar era, se aquela coisa estivesse desligada, eu poderia raciocinar. Sei que,
se aquela coisa estivesse desligada, eu compreenderia esta questão.
"Perguntei, "O que significa isto, Jim?"
"Lamento como o diabo ter que dizer-lhe isto, Henry", respondeu ele, "mas Logan's não estará
mais publicando trabalhos de ficção em janeiro de 1970."
O editor fez uma pausa para acender um cigarro, mas seu maço estava vazio.
– Alguém tem um cigarro? – perguntou.
A esposa do escritor passou-lhe um maço de Salem.
– Obrigado, Meg.
Ele acendeu o cigarro, jogou fora o fósforo e aspirou profundamente. A brasa brilhou maciamente
no escuro.
– Bem – disse ele – Jim deve ter pensado que eu estava doido. Perguntei a ele, "Você se
importa?" e então, inclinando-me, puxei fora a tomada de aquecimento de sua placa elétrica.
"Ele ficou boquiaberto. "Diabo, o que há, Henry?" perguntou.
"Sinto dificuldades em pensar com uma coisa dessas ligada", respondi. "Dá interferência". E
parecia ser isso mesmo, porque sem a tomada na parede, eu conseguia encarar a situação com muito
maior clareza. "Quer dizer que me mandam embora?" perguntei a ele.
"Não sei", respondeu ele. "Isso é com San e a diretoria. Sinceramente, não sei de nada, Henry".
"Havia muitas coisas que eu podia ter dito. Acho que Jimmy esperava uma súplica ardente por
meu emprego. Sabem aquele dito, "Ele estava no mato sem cachorro"?... Pois eu digo que só
compreenderão o sentido desta frase, quando forem chefes de um departamento subitamente nãoexistente.
"Contudo, não supliquei por minha causa ou pela causa da ficção na Logan's. Minha súplica foi
pela história de Reg Thorpe. Primeiro, falei que poderíamos dar-lhe outra programação – colocá-la no
número de dezembro.
"Ora, vamos, Henry", disse Jimmy. "O número de dezembro já está fechado e você sabe. Além do
mais, aqui estamos lidando com dez mil palavras!"
"Nove mil e oitocentas", falei.
"Mais uma página inteira com ilustração", disse ele. "Esqueça".
"Bem, tiramos a ilustração", argumentei. "Ouça, Jimmy, esta é uma grande história, talvez a
melhor ficção que já tivemos, nos últimos cinco anos".
"Eu a li, Henry", disse Jimmy. "Sei que é uma grande história. Contudo, não podemos publicá-la.
Não em dezembro. É o mês do Natal, pelo amor de Deus! Você quer inserir uma história sobre um
sujeito que mata a esposa e a filha, debaixo das árvores de Natal da América? Ora, você deve estar..."
Ele se interrompeu, mas vi o olhar que lançou para sua placa elétrica. Era o mesmo que ter dito em voz
alta, entendem?
O escritor assentiu lentamente, seus olhos nunca se afastando da sombra escura que era o rosto do
editor.
"Comecei a ficar com dor de cabeça. Primeiro, apenas uma dorzinha. Foi ficando mais difícil
concentrar as idéias. Recordei que Janey Morrison tinha um apontador elétrico para lápis em sua mesa.
Havia todas aquelas lâmpadas fluorescentes no gabinete de Jim... Os aquecedores... As máquinas de
venda automáticas na concessão, no final do corredor... Se parasse para pensar nisso, concluiria que
todo o maldito edifício funcionava à base de eletricidade; era um milagre que alguém conseguisse fazer
qualquer coisa. Foi quando a idéia começou a imiscuir-se, imagino. A idéia de que a Logan's ia
quebrar, porque ninguém podia pensar direito. E o motivo de não se poder pensar direito, era porque
estávamos todos trabalhando juntos naquele arranha-céu funcionando eletricamente. Nossas ondas
cerebrais estavam em total confusão..
Lembro-me de haver pensado que se um médico aparecesse lá com um desses aparelhos EEG,
obteria alguns gráficos incrivelmente estranhos. Repletos daquelas enormes e agudas ondas alfa, que
caracterizam tumores malignos no cérebro anterior.
"Só pensar nessas coisas, aumentava minha dor de cabeça. Contudo, fiz mais uma tentativa.
Perguntei-lhe se, pelo menos, falaria com Sam Vadar, o editor-chefe, para deixar a história sair no
número de janeiro. Como a ficção de encerramento na revista, se preciso fosse. O último conto a ser
publicado na Logan's.
"Jimmy brincava com um lápis e assentiu. Disse, "Tratarei do assunto, mas nada posso garantir.
Temos a história de um novelista de um só livro e a história de John Updike, também muito boa...
talvez até melhor... e..."
"A história de Updike não é melhor!" – exclamei.
"Ora, Henry, por favor, não precisa gritar..."
"Eu não estou gritando!" – gritei.
"Ele ficou um tempão olhando para mim. Minha dor de cabeça estava lancinante, àquele
momento. Eu podia ouvir o zumbido das lâmpadas fluorescentes. Eram como um punhado de moscas,
capturadas em uma garrafa. Um som francamente odioso. Pensei então que podia ouvir Janey usando
seu apontador elétrico. Estão, jazendo isso de propósito, imaginei. Querem confundir-me. Sabem que
não posso concatenar as idéias e falar com clareza, enquanto essas coisas estiverem funcionando, e
assim... e assim...
"Jim falava algo sobre levar o assunto à próxima reunião editorial, sugerindo que, em vez de uma
data arbitrária para a exclusão de ficção na revista, eles poderiam publicar todas as histórias com que
eu já me comprometera verbalmente... embora...
"Levantei-me, cruzei a sala e apaguei as luzes
"Por que fez isso?" perguntou Jimmy.
"Você sabe porquê" respondi. "Devia sair daqui, Jimmy, antes que nada mais reste de você!"
"Ele se levantou e caminhou para mim. "Acho que devia tirar uma folga pelo resto do dia,
Henry", disse. "Vá para casa. Descanse. Sei que tem vivido sob tensão ultimamente. Fique sabendo que
farei o melhor ao meu alcance quanto a este assunto. Lamento tanto quanto você... bem, quase tanto
quanto você. Contudo, devia ir para casa, pôr os pés para o alto e ver um pouco de televisão."
"Televisão!" repeti, e dei uma risada. Era a coisa mais engraçada que já ouvira. "Ouça Jimmy,
quero que diga algo mais a Sam Vadar em meu nome."
"O que é, Henry?"
"Diga a ele que está precisando de um Fornit. Ele e toda a equipe. Um Fornit? Não. Uma dúzia
deles."
"Um Fornit", assentiu Jimmy" Está bem, Henry. Fique certo de que direi isso a ele".
"Minha dor de cabeça era terrível. Eu mal conseguia enxergar. Em alguma parte, no fundo de
minha mente, eu já me perguntava como dar a notícia a Reg e gostaria de saber como ele aceitaria isso.
"Eu mesmo providenciarei o pedido de compra, se descobrir a quem enviá-lo", falei. "Reg talvez
tenha algumas idéias. Uma dúzia de Fornits. Seriam postos limpando este lugar, com fornus, de ponta a
ponta. A maldita energia elétrica seria desligada, toda ela".
Eu caminhava pelo gabinete de Jimmy e ele olhava para mim, boquiaberto. "Devem cortar toda a
energia elétrica, Jimmy, diga a eles que façam isso. Diga isso a Sam. Ninguém consegue pensar direito,
com toda essa interferência elétrica, estou certo?"
"Você está certo, Henry, cem por cento certo. Agora, vá para casa e descanse um pouco, está
bem? Tire uma soneca ou coisa assim."
"Ah, os Fornits, sabe? Eles não gostam de toda essa interferência. Radium, eletricidade, é tudo a
mesma coisa. Alimente-os com salsichão. Bolo. Manteiga de amendoim. Podemos conseguir
requisições para essa compra?"
Minha dor de cabeça era como uma bola negra de dor, por trás dos olhos. Eu via dois Jimmy,
tudo em duplicata. Então, de repente, senti necessidade de um drinque. Se não havia fornus e se o lado
racional de minha mente afirmava que não havia, então um drinque era a única coisa no mundo que me
deixaria bem.
"Claro, podemos conseguir as requisições", disse ele.
"Não acredita em nada disto, não é, Jimmy?" perguntei.
"É claro que acredito. Está tudo bem. Agora,. vá para casa e procure descansar um pouco."
"Você não está acreditando", insisti, "mas talvez passe a acreditar, quando este circo for à
falência. Como, em nome de Deus, julga que está tomando decisões racionais, se fica sentado a menos
de quinze metros de um punhado de máquinas de Coca, máquinas de doces e máquinas de sanduíches"
Foi quando tive um pensamento realmente terrível. "E um forno de microondas!" gritei para ele. "Elas
tem um, forno de microondas embutido, para esquentar os sanduíches!"
Ele começou a dizer qualquer coisa, mas não lhe prestei muita atenção. Corri para fora.
A idéia daquele forno de microondas explicava tudo. Eu tinha que ir embora dali. Era isso que
tornava a minha dor de cabeça tão terrível. Recordo que vi Janey e Kate Younger, do departamento de
anúncios, bem como Mert Strong, da publicidade, no gabinete externo, todas me fitando de olhos
esbugalhados. Deviam ter-me ouvido gritar.
Meu gabinete ficava logo no andar de baixo. Fui pela escada. Entrei em minha sala, apaguei todas
as luzes e peguei minha pasta. Fui de elevador até o saguão do prédio, coloquei a pasta entre meus pés
e enfiei os dedos nos ouvidos. Também recordo que as outras três ou quatro pessoas que estavam no
elevador, olhavam para mim com estranheza. – O editor deu uma risadinha seca. Estavam com medo.
Por assim dizer.
Se estivessem confinados em uma pequena caixa móvel, em companhia de um louco óbvio, vocês
também teriam medo.
– Oh, sem dúvida! Esta foi um pouco forte – comentou a esposa do agente.
– Nem tanto. A loucura tem que começar em algum lugar. Se esta é uma história sobre qualquer
coisa – se os eventos na vida de uma pessoa podem ser considerados como sendo sobre qualquer coisa
– então esta é uma história sobre a gênese da insanidade. A loucura tem que começar em algum lugar e
também tem que ir para algum lugar. Como uma estrada. Ou um projétil, do cano de uma arma. Eu
ainda estava quilômetros atrás de Reg Thorpe, mas me encontrava a caminho. Podem apostar.
"Eu tinha que ir para algum lugar, portanto, dirigi-me ao Four Fathers, um bar na Rua 49.
Recordo ter escolhido especificamente esse bar, porque lá não havia vitrola automática, televisão a
cores ou luzes em demasia. Lembro-me de ter pedido o primeiro drinque. Depois disso, não consigo
recordar mais nada, até acordar no dia seguinte, em casa, na minha cama. Havia vômito no chão e uma
enorme queimadura de cigarro no lençol que me cobria. Em meu estupor, aparentemente eu escapara
da morte por dois meios extremamente desagradáveis – asfixiado ou queimado. Aliás, acho que não
chegaria a sentir nenhum dos dois.
– Céus! – exclamou o agente, quase com respeito.
– Foi um blackout – disse o editor. – O primeiro real e legítimo blackout de minha vida – mas
eles são sempre um sinal do fim e a gente nunca passa por muitos. De um modo ou de outro, nunca há
muitos. Contudo, um alcoólatra lhes dirá que um blackout não é o mesmo que ficar inconsciente. Se
fosse, muitos problemas seriam evitados. Quando um alcoólatra entra em blackout, ele continua
fazendo coisas. Um alcoólatra em blackout é um demoninho em atividade. Uma espécie de Fornit
maligno. Ele liga para a ex-esposa e diz-lhe horrores ao telefone, quando não dirige seu carro pelo lado
errado no pedágio, acabando por arrasar outro carro, lotado de garotada. Ele abandona o emprego,
rouba um supermercado, desfaz-se da aliança de casamento. São demoninhos ativos.
"Aparentemente, o que eu fiz, foi ir para casa e escrever uma carta. Só que não era dirigida a Reg.
Era para mim mesmo. E eu não a escrevi – pelo menos, segundo a carta, não fui eu".
– Quem a escreveu? – perguntou a esposa do escritor.
– Bellis.
– E quem é Bellis?
– O Fornit dele – respondeu o escritor, quase alheadamente, com olhar sombrio e distante.
– Exato – disse o editor.
Não parecia nem um pouco surpreso. A seguir, repetiu a carta para seus ouvintes, novamente ao
doce ar da noite, acentuando com o dedo os pontos adequados.
– Olá, da parte de Bellis. Sinto muito por seus problemas, meu amigo, porém gostaria de indicar,
desde o princípio, que você não é o único a tê-los. Esta não é uma tarefa fácil para mim. Posso limpar
sua máquina com fornus, de agora até a eternidade, porém supõe-se que movimentar as TECLAS seja
responsabilidade sua. PARA isso é que Deus fez as pessoas em tamanho grande. Assim, solidarizo-me
com você, mas é tudo que posso fazer.
"Compreendo sua preocupação com respeito a Reg Thorpe. Eu não me preocuparia com ele, mas
com Rackne, meu irmão. Thorpe fica preocupado com o que lhe acontecerá, se Rackne for embora,
mas somente por ser egoísta. A maldição de servir-se a escritores, é serem todos eles egoístas. Ele não
se preocupa com o que acontecerá a Rackne, se THORPE for embora. Ou se for el bonzo seco. Parece
que tais coisas jamais cruzaram sua mente, oh, tão sensível. Contudo, felizmente para nós, todos os
nossos infortunados problemas têm a mesma solução a curto prazo, de modo que estendo meus braços
e meu diminuto corpo para dá-los a você, meu embriagado amigo. VOCÊ pode querer saber sobre
soluções a longo prazo; eu lhe garanto que não existem. Todos os ferimentos são mortais. Aceite o que
lhe é dado. Por vezes, você fica um pouco bambo na corda, porém ela sempre tem um fim. Abençoe a
corda bamba e não desperdice respiração, xingando a queda. Um coração agradecido sabe que, no fim,
todos balançamos.
"Você deve pagar-lhe a história, de seu bolso, mas não com um cheque pessoal."
Os problemas mentais de Thorpe são sérios, talvez perigosos, porém isto, de maneira alguma,
indica burrice.
Neste ponto, o editor soletrou a palavra: b-u-r-r-i-c-e. Então, prosseguiu:
– Se você enviar-lhe um cheque personalizado, a loucura dele explodirá, em uns nove segundos.
"Saque oitocentos e poucos dólares de sua conta bancária e faça seu banco abrir uma nova conta
para você, em nome de Arvin Publishing, Inc. Faça-os compreender que precisa de cheques com
aparência comercial – nada de cães de luxo ou vistas de canyons neles. Encontre um amigo, alguém de
sua confiança, e o coloque como co-sacador.
Assim que estiver de posse do talonário, preencha um cheque com oitocentos dólares e peça a
essa outra pessoa que o assine. Então, envie o cheque a Reg Thorpe. Isso deixará você a coberto,
futuramente.
"Encerro e desligo." Estava assinado "Bellis". Não em holograma. Datilografado.
– Minha nossa! – exclamou o escritor.
– Quando levantei, a primeira coisa que notei foi a máquina de escrever. Parecia que alguém a
caracterizara, como máquina de escrever-fantasma, em algum filme barato. Na véspera, ela havia sido
uma Underwood negro-escritório. Ao levantar-me – com uma cabeça que parecia do tamanho de
Dakota do Norte ela estava de um tom acinzentado.
As últimas frases da carta estavam atropeladas e desbotadas. Dei uma espiada e imaginei que
minha fiel e antiga Underwood chegara ao fim da linha, com toda a certeza. Provei algo na boca e fui
até a cozinha. Havia um saco de açúcar de confeiteiro aberto, em cima do balcão, com uma concha em
seu interior. Também havia açúcar de confeiteiro espalhado por todo canto, entre a cozinha e o
pequeno aposento onde eu trabalhava, naquela época.
– Você alimentava seu Fornit – disse o escritor. – Bellis gostava de coisas doces. Pelo menos,
você assim pensou.
– Sem dúvida. No entanto, embora indisposto e de ressaca como me encontrava, eu sabia
perfeitamente quem era o Fornit.
O editor enumerou nos dedos.
– Primeiro, Bellis era o sobrenome de solteira de minha mãe.
"Segundo, aquela frase, el bonzo seco. Era uma frase particular que eu e meu irmão
costumávamos usar, com o significado de loucura. Quando éramos crianças.
"Terceiro, e mais execrável, foi a escrita da palavra "burrice". Trata-se de uma palavra que
geralmente escrevo errada. Certa vez, tive um escritor gritantemente letrado, que costumava escrever
"refridgerador", com um d – em vez de "refrigerador" – pouco importando quantas vezes os revisores o
corrigissem. Esse mesmo sujeito, diplomado em Princeton, sempre escrevia "sombrancelha", em vez
de "sobrancelha".
A esposa do escritor deu uma risada súbita – tanto embaraçada, como alegre.
– Eu faço isso – disse ela.
– Tudo quanto quero dizer é que os erros ortográficos de um homem – ou de uma mulher – são
suas impressões digitais literárias. Perguntem a qualquer copydesk que tenha revisado algumas vezes
trabalhos do mesmo escritor.
"Não, Bellis era eu e eu era Bellis. No entanto, seu conselho era infernalmente bom. De fato,
achei-o um grande conselho. Contudo, aqui vai algo mais, o subconsciente deixa suas impressões
digitais, mas lá embaixo também existe um ser estranho. Um diabo de sujeito esquisito, que entende
um diabo de coisas. Eu jamais vira aquele termo "co-sacador", apesar de todo o meu conhecimento...
mas lá estava ele, era muito bom e, tempos depois, fiquei sabendo que realmente os bancos o usam.
"Peguei o fone, a fim de ligar para um amigo, e então senti aquela pontada de dor – incrível! –
varando-me a cabeça. Pensei em Red Thorpe, em seu radium e tornei a colocar precipitadamente o
fone no gancho. Procurei esse amigo pessoalmente, após tomar uma ducha, fazer a barba e examinarme
umas nove vezes ao espelho, para ter certeza de que minha aparência correspondia
aproximadamente à de um ser humano racional, como se presume que seja. Ainda assim, fiz-me um
monte de perguntas e vigiei-me intimamente. Creio serem bem poucos os indícios que uma ducha,
barba feita e uma boa dose de Listerine não consigam esconder. Esse amigo não era do meu ramo, o
que já significava algo. As notícias costumam voar, como sabem. Nos negócios. Por assim dizer. Aliás,
se ele fosse do ramo, saberia que Arvin Publishing, Inc., era responsável pela Logan's e gostaria de
saber que tipo de tramóia eu estava querendo armar. Como era alheio à atividade, nada perguntou e
pude falar-lhe de um empreendimento de auto-editoração em que estava interessado, uma vez que,
aparentemente, a Logan's decidira eliminar o departamento de ficção.
– Ele perguntou por que lhe dava o nome de Arvin Publishing? – quis saber o escritor.
– Perguntou.
– E o que você respondeu?
– Respondi – disse o editor, com um sorriso frio – que Arvin era o sobrenome de solteira de
minha mãe.
Houve uma breve pausa e depois o editor recomeçou a falar. Então, falou até o fim, quase sem ser
interrompido.
– Assim, comecei a esperar pelos cheques impressos, dos quais desejava exatamente um.
Para passar o tempo, eu me exercitava. Sabem como é – levantar o copo, flexionar o cotovelo,
esvaziar o copo, flexionar o cotovelo novamente. Até que, por fim, o exercício nos cansa e acabamos
caindo para diante, com a cabeça em cima da mesa. Aconteceram outras coisas, mas estas eram as
únicas que realmente me ocupavam a mente – a espera e o flexionamento. Que me recorde, aliás. Devo
acentuar isto, porque eu estava bêbado a maior parte do tempo e então, para cada coisa que recorde,
devem existir talvez cinqüenta ou sessenta que nem me passam pela cabeça.
"Deixei o emprego – o que provocou um suspiro de alívio geral, disto estou certo. Um suspiro
deles, porque não precisaram executar a tarefa existencial de me demitirem por loucura, de um
departamento não mais em existência; um suspiro meu, porque eu achava que não conseguiria
enfrentar novamente aquele edifício – o elevador, as lâmpadas fluorescentes, os telefones, a idéia de
tudo quanto recebia eletricidade.
"Escrevi a Reg Thorpe e sua esposa duas cartas, uma a cada um, durante aquele período de três
semanas. Lembro-me de ter escrito a dela, mas não a dele – como aconteceu com a carta de Bellis,
escrevi aquelas em momentos de blackocct. Contudo, eu revertia a meus velhos hábitos de trabalho
quando estava alto, assim como persistia em minha velha ortografia errada. Nunca deixava de usar um
carbono... e quando chegava a manhã seguinte, as cópias a carbono estavam por ali. Era como ler
cartas de um estranho.
"Não que as cartas fossem loucas. De maneira alguma. Aquela que terminei com o P.S. sobre o
liquidificador, foi muito pior. Aquelas cartas pareciam... quase racionais.
Ele parou e meneou a cabeça, lenta e cansadamente.
– Pobre Jane Thorpe! Não que as coisas parecessem tão ruins no final. Ela deve ter achado que o
editor de seu marido estava fazendo um altamente especializado – e humano – trabalho, ao ser
indulgente com ele, arrancando-o de uma depressão cada vez mais funda. Provavelmente já tivesse
ocorrido a ela a questão de ser ou não uma boa idéia alguém mostrar-se indulgente com uma pessoa
que está acalentando todo o tipo de fantasias paranóicas – fantasias que, em um caso, quase levaram ao
real assalto contra uma menininha. Se ocorreu, então ela preferiu ignorar os aspectos negativos, uma
vez que também estava sendo indulgente com o marido. Jamais a censurei por isso – Thorpe não era
apenas um ticket para refeição, alguma mula velha que precisava ser trabalhada e paparicada,
trabalhada e paparicada, até estar pronta para o matadouro; acontece que ela amava o cara. À sua
maneira, Jane Thorpe era uma grande dama. Assim, após ter vivido com Reg desde os Primeiros
Tempos aos Altos Tempos e finalmente aos Loucos Tempos, creio que ela concordaria com Bellis, ao
abençoar a corda bamba, sem desperdiçar a respiração xingando a queda. Naturalmente, quanto mais
bambos nos sentimos, mais difícil se torna equilibrar-nos, quando afinal chega o fim... mas mesmo
aquele rápido equilíbrio pode ser uma bênção, admito – pois quem prefere cair?
"Naquele curto período, recebi respostas de ambos – cartas extraordinariamente otimistas...
embora houvesse uma qualidade estranha e quase final naquele otimismo.
Era como se... bem, esqueçamos a filosofia barata. Se eu conseguir atinar com o significado,
falarei. Deixemos isso por ora.
"Reg passou a jogar cartas com os rapazes vizinhos, todas as noites. Quando as folhas começaram
a cair, eles achavam que Reg Thorpe era o próprio Deus, baixado à terra. Se não jogavam cartas ou
disputavam uma partida de Frisbee, discutiam literatura, com Reg animando-os delicadamente em seus
passos futuros. Ele arranjara um cachorrinho no abrigo de animais local e passeava com ele, de manhã
e à noite, enquanto isso conhecendo outros moradores do quarteirão, como acontece conosco, se
levamos nosso cão a passeio. Quem decidira que os Thorpe eram pessoas peculiares, agora começava a
pensar diferente. Quando Jane sugeriu que, sem aparelhagem elétrica ela poderia usar os serviços de
uma faxineira, Reg concordou imediatamente. Ela ficou pasma ante o jovial assentimento dele. Não se
tratava de uma questão de dinheiro – após Undenworld Figures, eles nadavam no ouro – tratava-se
deles, deduziu Jane. Eles estavam em toda parte, tal era o decreto de Reg, e que melhor agente para
eles do que uma faxineira, que andava por todos os cantos da casa, espiava debaixo das camas e
armários, talvez até dentro das gavetas também, caso elas não estivessem trancadas e depois fixadas
com pregos, por medida de segurança?
"Contudo, ele lhe disse que contratasse a mulher, acrescentou que se sentia um sujeito insensível,
por não haver pensado nisso mais cedo, mesmo embora ela insistiu em contar-me o detalhe – Reg
estivesse fazendo a maioria dos serviços pesados, como a lavagem de roupa, por exemplo. Reg só
impunha uma pequena condição: que a faxineira não tivesse permissão de entrar em seu estúdio.
"O melhor de tudo, o mais encorajador, na opinião de Jane, era o fato de que seu marido voltara a
trabalhar, agora em um novo romance. Ela lera os três primeiros capítulos e os considerara
maravilhosos. Tudo isto, segundo me escreveu, começara quando eu havia aceito "A Balada do Projétil
Flexível" para a Logan's – o período anterior, que havia sido de maré muito baixa. E ela me abençoava
por isso.
"Estou certo de que o agradecimento de Jane era sincero, embora sua gratidão não parecesse
conter muito calor e o otimismo de sua carta se mostrasse algo turvo – pronto, voltamos novamente a
isso. Naquela carta, seu otimismo assemelhava-se a um dia ensolarado, mas com aquelas nuvens de
bordas carregadas, prenunciando um temporal para breve.
"Todas essas boas notícias – jogos de cartas, o cachorro e a faxineira, além do novo romance – e,
no entanto, ela era inteligente demais para acreditar que o marido estivesse ficando bom novamente...
ou assim acreditei, apesar de em meu próprio fog, Reg viera exibindo sintomas de psicose. A psicose é
como câncer pulmonar, em um sentido – nenhum dos dois se cura espontaneamente, embora tanto os
pacientes de câncer como os lunáticos possam ter seus bons dias.
"Pode me dar outro cigarro, querida?
A esposa do escritor deu-lhe o cigarro.
– Afinal de contas – prosseguiu o editor, puxando seu isqueiro Ronson, os sinais da idéia fixa do
marido estavam por toda parte, em volta dela. Nada de telefone; nada de eletricidade. Ele afixara
plástico de embalar em todas as placas de interruptores.
Continuava colocando comida na máquina de escrever, tão regularmente, como a punha no prato
de seu novo cãozinho. Os universitários que moravam ao lado o julgavam um grande sujeito, mas não
o viam calçar luvas de borracha para recolher o jornal no alpendre pela manhã, devido a seus temores
sobre a radiação. Eles não o ouviam gemer enquanto dormia e nem tinham que consolá-lo, quando ele
acordava gritando, com terríveis pesadelos que não conseguia recordar.
"Você, minha querida – disse ele, virando-se para a esposa do escritor –, deve estar-se
perguntando por que Jane continuou em companhia do marido. Embora não tenha dito em palavras, a
idéias está em sua mente, não?
Ela assentiu.
– Exato. E não pretendo oferecer uma longa tese motivacional – a coisa conveniente sobre
histórias reais, é que só precisamos dizer – foi assim que aconteceu, deixando que os outros se
preocupem sobre o motivo. Em geral, ninguém jamais sabe por que coisas acontecem... em particular
as pessoas que dizem saber.
"Em termos de Jane Thorpe, no entanto, relativamente à sua percepção seletiva, tinham
acontecido coisas que eram um bocado boas. Contratou uma mulher negra de meia-idade para fazer a
faxina e se dispôs a explicar-lhe francamente as idiosincrasias do marido. A mulher, de nome Gertrude
Rulin, riu e disse que estava acostumada a pessoas de hábitos bastante estranhos: Jane passou a
primeira semana do serviço de Gertrude mais ou menos como se sentiu durante aquela primeira visita
aos vizinhos jovens do lado – esperando alguma explosão de loucura. Contudo, Reg encantou a
faxineira tão completamente como encantara os rapazes, conversando sobre o trabalho dela na igreja,
seu marido e o filho caçula, Jimmy que, segundo Gertrude, fazia Dennis o Terrível, parecer o próprio
tédio no primeiro grau escolar. Gertrude tinha onze filhos ao todo, mas havia um espaço de nove anos
entre Jimmy e o anterior. Esse filho temporão lhe tornava a vida dura.
"Reg parecia estar indo bem... pelo menos, olhando-se as coisas de uma certa forma.
Contudo, estava tão louco como sempre, é claro, o que também acontecia comigo. A loucura bem
pode ser uma espécie de projétil flexível, mas qualquer perito em balística que entenda do ofício, dirá
que duas balas jamais são iguais. A carta de Reg para mim falava ligeiramente sobre seu novo
romance, para então passar de imediato para os Fornits. Os Fornits em geral, Rackne em particular. Ele
especulava sobre se eles realmente queriam matar Fornits ou – achava mais provável – capturá-los
vivos e estudá-los.
Fechava a carta, dizendo, "Tanto meu apetite como minha visão de vida melhoraram
imensuravelmente depois que começamos nossa correspondência, Henry. Fico-lhe muito grato.
Afetuosamente, Reg" Um P.S. mais abaixo, perguntava casualmente se fora designado algum
ilustrador para sua história. Aquilo me provocou uma ou duas pontadas de culpa, bem como uma
rápida viagem ao armário de bebidas.
"Reg envolvia-se com os Fornits; eu com o álcool.
"Minha carta de resposta mencionava os Fornits apenas de passagem – a esta altura, eu estava
realmente paparicando o homem, pelo menos nessa questão; um elfo com o sobrenome de solteira de
minha mãe e meus hábitos pessoais de errar na ortografia estavam pouco me importando.
"O que passara a interessar-me, cada vez mais e mais, era o tema da eletricidade, microondas,
ondas radiofônicas e interferência do rádio irradiando-se de pequenos aparelhos eletrodomésticos, bem
como um baixo nível de radiação e só
Deus sabe o que mais. Fui à biblioteca e apanhei livros sobre o assunto; comprei livros que
falavam nisso também. Neles, havia muita coisa assustadora... e naturalmente, bem aquilo que eu
procurava.
Tomei providências para que meu telefone fosse desligado e a eletricidade cortada. Isso ajudou
durante algum tempo, mas certa noite, quando eu cambaleava na porta, bêbado, com uma garrafa de
Black Velvet em uma das mãos, a outra mão enfiada no bolso do sobretudo, vi aquele olhinho
vermelho no teto, espiando para mim. Céus, por um minuto, pensei que ia ter um ataque cardíaco. A
princípio, ele parecia um besouro... um grande besouro escuro, com um olho cintilante.
"Eu tinha uma lanterna Coleman, a gás, e a acendi. Imediatamente vi o que era. Só que, em vez
de ficar aliviado, aquilo me deixou pior. Assim que dei uma boa espiada na coisa, tive a impressão de
que podia sentir vastos e nítidos acessos de dor varando-me a cabeça – como ondas de rádio. Por um
momento, foi como se meus olhos houvessem girado nas órbitas, de maneira a permitirem que eu
olhasse meu próprio cérebro e, lá dentro, visse células soltando fumaça, ficando negras, morrendo. Era
um detector de fumaça – um dispositivo ainda mais recente do que os fornos de microondas, em 1969.
"Saí precipitadamente do apartamento e fui até o térreo – eu morava no quinto andar, mas então
estava sempre usando as escadas – e martelei a porta do zelador. Disse-lhe que queria aquela coisa fora
de minha casa, queria-a fora de lá em seguida, queria-a fora de lá ainda aquela noite, queria-a fora de lá
dentro de uma hora. Ele me fitou como se me julgasse absolutamente pirado – perdoem-me a
expressão – bonzo seco, e hoje posso compreender aquilo. Aquele detector de fumaça deveria fazer
com que me sentisse bem, presumia-se que me daria segurança. Hoje, é claro, eles são previstos em lei,
mas então constituíam um Grande Avanço, pago pela associação de moradores do prédio.
"O zelador o removeu – não demorou muito – mas não me perdia de vista e, em certa forma
limitada, eu podia entender o que sentia. Eu precisava barbear-me, fedia a uísque, tinha os cabelos
grudados à cabeça e meu sobretudo estava sujo. Ele certamente sabia que eu não estava mais
trabalhando; que minha televisão fora levada embora; que meu telefone e a energia elétrica haviam
sido voluntariamente cortados. O zelador me considerava louco.
"Posso ter estado louco mas – como Reg – não era burro. Apelei para o charme. Editores
precisam ter uma certa dose de charme, compreendam. Então, azeitei a situação que parecia
lamentável, com uma nota de dez dólares. Por fim, fui capaz de ajeitar as coisas, mas da maneira como
todos olhavam para mim, nas duas semanas seguintes – minhas duas últimas semanas no prédio – a
história sem dúvida viajou. O fato de nenhum membro da associação dos moradores procurar-me,
desgostoso com minha atitude ingrata, era particularmente revelador. Talvez pensassem que eu poderia
atacá-los com uma faca de carne.
"De qualquer modo, naquela noite tudo isso era de menos em meus pensamentos.
Sentei-me à luz da lanterna Coleman, a única luz nos três aposentos, excetuando-se toda a
eletricidade que, em Manhattan, passava pelas janelas. Eu tinha uma garrafa na mão e um cigarro na
outra. Fiquei olhando para a chapa no teto, onde estivera o detector de fumaça com seu único olho
vermelho – um olho tão imperceptível à luz do dia, que eu nem o notara. Considerei o fato inegável de
que, embora estivesse com toda a energia elétrica desligada em meu apartamento, existira aquele ítem
isolado e vivo... e onde havia um, poderia haver outros.
"Mesmo não havendo, todo o edifício pululava de fios – tinha tantos fios, como as células
malignas e os órgãos deteriorados enchendo o organismo de um moribundo de câncer. Fechando os
olhos, eu podia ver todos eles na escuridão de seus condutos, cintilando com uma espécie de luz verde
inferior. E, mais além, a cidade inteira. Um fio, quase inofensivo em si, ligado a um interruptor... o fio
além do interruptor, um pouco mais grosso, levando ao porão, através de um conduto, onde se unia a
outro fio ainda mais grosso... este internando-se debaixo da rua, até um volumoso punhado de fios,
estes últimos tão grossos, que em realidade eram cabos.
"Quando recebi a carta de Jane Thope, falando no plástico de embalar, parte de minha mente
reconhecia que ela encarava isso como um sinal da loucura de Reg – e essa parte sabia que eu teria de
reagir como se toda a minha mente a julgasse com razão. A outra parte de minha mente – de longe
agora a preponderante – pensou: "Que idéia maravilhosa!" e então cobri todas as chapas de
interruptores do apartamento da mesma forma que Reg havia feito, já no dia seguinte. Lembre-se, eu
era o homem que, supostamente; estava ajudando Reg Thorpe. De um modo um tanto desesperador,
chega a ser muito engraçado.
"Naquela noite, decidi ir embora de Manhattan. Havia uma velha casa da família, nas
Adirondacks, para onde eu poderia ir. A idéia pareceu excelente. A única coisa que me mantinha na
cidade, era a história de Reg Thorpe. Se "A Balada do Projétil Flexível" era o salva-vidas de Reg em
um mar de loucura, também era o meu – eu queria inserir aquela história em uma boa revista. Feito
isto, que tudo se danasse.
"Foi onde parou a não-tão-famosa correspondência Wilson-Thorpe, pouco antes de tudo ir por
água abaixo. Éramos como dois agonizantes viciados em drogas, comparando os méritos relativos da
heroína e das anfetaminas. Reg tinha Fornits em sua máquina de escrever. Eu tinha Fornits nas paredes
e ambos tínhamos Fornits em nossas cabeças.
"Ainda havia eles. Não esqueçam: eles. Não fazia muito tempo que eu andava oferecendo a
história, quando decidi que eles incluíam todos os editores de ficção das revistas em Nova York –
embora não existissem muitos, no outono de 1969. Se fossem todos reunidos, poderiam ser mortos
com um só cartucho de espingarda, algo que, não demorou muito, comecei a achar uma idéia
infernalmente boa.
"Foram precisos cinco anos, antes que eu pudesse ver a situação pela perspectiva deles.
Eu me indispusera com o zelador, um sujeito que só me via quando o calor era infernal e quando
era época de sua gratificação natalina. Quanto aos outros sujeitos... bem, ironicamente, muitos deles
eram realmente meus amigos. Na época, Jared Baker era o editor-assistente de ficção na Esquire e
ambos havíamos estado na mesma companhia de fuzileiros, na Segunda Guerra Mundial, por exemplo.
Tais sujeitos não ficavam apenas inquietos, após verem o novo e melhorado Henry Wilson. Ficavam
abismados. Se eu apenas enviasse a história aos possíveis interessados, com uma carta agradável de
apresentação, explicando a situação de qualquer modo, a versão que eu tinha dela – eu talvez houvesse
vendido a história de Thorpe quase em seguida. Contudo, oh, de maneira alguma, isso não era o
suficiente.
Não para aquela história. Eu precisava cuidar para que ela recebesse o tratamento pessoal. Assim,
andei de porta em porta com ela, um fedorento e grisalho ex-editor, de mãos trêmulas, olhos vermelhos
e uma grande equimose na face esquerda, produto de um choque contra a porta do banheiro, quando
ele se encaminhara para o vaso, no escuro, duas noites antes. Eu bem podia estar usando um letreiro
com a inscrição FUGITIVO DO HOSPÍCIO.
"Eu tampouco queria falar com eles em seus escritórios. De fato, era-me impossível. Há muito se
fora o tempo em que podia entrar em um elevador e subir quarenta andares.
Assim, eu os encontrava como os traficantes encontram os viciados – em parques, escadas ou, no
caso de Jared Baker, em uma casa de hamburgers, na Rua 49. Jared, pelo menos, ficaria satisfeito em
pagar-me uma refeição decente, mas já se fora o tempo, vocês compreendem, em que qualquer maitre
cioso do nome permitiria minha entrada em um restaurante freqüentado por pessoas do mundo dos
negócios.
O agente pestanejou.
– Recebi promessas negligentes de que a história seria lida, depois perguntas sobre como eu
estava, quanto andava bebendo. Recordo – vagamente – haver tentado dizer a uns dois deles que
vazamentos de eletricidade e radiação estavam deteriorando o pensamento de todo mundo. Lembro-me
também de que quando Andy Rivers, que editava ficção para American Crossings, aconselhou-me a
procurar ajuda profissional para meu estado, respondi que era ele quem precisava dessa ajuda.
– Vê aquelas pessoas na rua? – perguntei-lhe. Estávamos no Parque Washington Square. Metade
delas, talvez até mesmo três quartos delas, têm tumores cerebrais. Eu não lhe venderia a história de
Thorpe por nada, Andy. Diabo, você não a entenderia, nesta cidade. Seu cérebro está na cadeira
elétrica e você nem sabe disso.
"Eu tinha uma cópia da história em minha mão, enrolada com um jornal. Sacudi-a diante do nariz
dele, da maneira como se faz com um cão, para que fique ereto em um canto. Depois fui embora.
Lembro-me dele gritando para que eu voltasse, qualquer coisa sobre uma xícara de café e
conversarmos mais um pouco, mas então passei por uma loja vendendo discos com desconto, seus altofalantes
estrondeando heavy metal para a calçada, e filas de luzes fluorescentes, frias como gelo,
brilhando no interior.
Perdi a voz dele, em uma espécie de profundo zumbido dentro de minha cabeça.
Recordo haver pensado duas coisas – eu precisava sair logo da cidade, o mais depressa possível,
ou estaria acalentando meu próprio tumor cerebral – e era imperioso tomar um drinque, imediatamente.
"Naquela noite, voltando ao meu apartamento, encontrei uma nota debaixo da porta.
Dizia "Queremos você fora daqui, seu biruta." Joguei-a fora, sem lhe dar a menor importância.
Nós, veteranos em birutice, temos coisas mais importantes a preocupar-nos, do que notas anônimas de
inquilinos vizinhos.
"Eu refletia no que havia dito a Andy Rivers sobre a história de Reg. Quanto mais pensava nisso
– e mais drinques tomava – mais sentido fazia. O "Projétil Flexível" era curioso e, superficialmente,
fácil de ser seguido... mas abaixo da superfície era surpreendentemente completo. Estaria eu
imaginando que outro editor na cidade conseguiria apreender a história em todos os seus níveis?
Talvez outrora, mas eu ainda acharia isso, agora que meus olhos se tinham aberto? Teria eu realmente
pensado que havia espaço para apreciação e compreensão, em um local entupido de fios como uma
bomba de terrorista? Céus, havia voltagem vazando por todos os lados!
"Li o jornal, enquanto ainda havia luz do dia suficiente para isto, procurando esquecer todo o
maldito negócio por um momento e, ali, na página um do Times, havia um artigo sobre como o
material radiativo de usinas de força nuclear permanece desaparecendo – o artigo prosseguia,
teorizando que se houvesse nas mãos certas uma quantidade suficiente desse material, ele podia ser
facilmente usado para uma arma nuclear muito suja.
"Permaneci sentado à mesa da cozinha enquanto o sol se punha e, em minha mente, podia vê-los
batendo pó de plutônio, como os mineiros de 1849 batiam ouro. Apenas, eles não queriam explodir a
cidade com aquilo, oh, não! Eles o queriam apenas para salpicá-lo por aí e liquidar a mente de todos.
Eles eram os maus Fornits, e toda aquela poeira radioativa era fornus de má-sorte. Os piores fornus de
má-sorte de todos os tempos.
"Decidi que, afinal de contas, não queria vender a história de Reg – pelo menos, não em Nova
York. Saí da cidade, assim que chegaram os cheques que eu pedira. Quando estivesse no interior do
estado, poderia começar a enviá-la para as revistas literárias de fora da cidade. Sehanee Review seria
um bom lugar para começar, admiti, ou talvez Iowa Review. Eu poderia explicar a Reg mais tarde. Ele
compreenderia. Aquilo parecia resolver todo o problema, de modo que tomei um drinque. E o drinque
tomou o homem.
Por assim dizer. Entrei em blackout. Conforme resultou, só me restava mais um blackout.
"No dia seguinte, chegaram os talões de cheques de minha Companhia Arvin. Preenchi um deles
a máquina e fui ver meu amigo, o "co-sacador". Houve outro daqueles aborrecidos interrogatórios, mas
desta vez, mantive a calma. Eu queria aquela assinatura. Conseguia-a, finalmente. Fui a um
estabelecimento que fornecia material impresso e providenciei para que me fizessem papel de
correspondência com o timbre da Companhia Arvin, comigo esperando. Carimbei um endereço de
retorno em um envelope comercial, datilografei o endereço de Reg (o açúcar de confeiteiro já fora
removido de minha máquina de escrever, porém as teclas ainda tinham uma tendência a colar-se umas
nas outras) e acrescentei uma breve nota pessoal, dizendo que nenhum cheque a um escritor já me dera
mais prazer pessoal... e estava sendo sincero. Isso ainda é verdade. Passou-se quase uma hora, antes
que eu me decidisse a pô-lo no correio – simplesmente, não conseguia saber até que ponto ele parecia
oficial. Era muito difícil, para um fedorento bêbado, que em cerca de dez dias não trocara a roupa de
baixo, chegar a essa vital conclusão.
O editor fez uma pausa, esmagou o cigarro no cinzeiro e olhou para seu relógio. Então,
curiosamente, como o chefe do trem anunciando que a composição chegou a alguma cidade
importante, falou:
– Chegamos ao inexplicável.
"Este é o ponto de minha história que mais tem interessado aos dois psiquiatras e vários
analisadores mentais com quem estive associado nos meus trinta meses de vida seguintes. Foi a única
parte que me forçavam a desdizer, como sinal de que eu estava ficando bem. Segundo um deles
declarou, "Esta é a única parte de sua história que não pode ser explicada como indução censurável...
uma vez, isto é, seu sentido de lógica tenha sido recuperado". Finalmente, eu a desmenti, porque tinha
certeza – mesmo eles não tendo – de que estava ficando bem e sentia uma maldita vontade de sair do
sanatório.
Pensei que se não desse o fora de lá em pouco tempo, acabaria maluco novamente.
Assim, voltei atrás – Galileu também fez isso, quando mantiveram seus pés no fogo – mas nunca
desmenti nada para mim mesmo. Não afirmo que tenha realmente acontecido o que vou dizer; apenas
digo ser a minha crença de que aconteceu. Trata-se de uma pequena qualificação, mas crucial para
mim.
"Portanto, meus amigos, vamos ao inexplicável:
"Levei os dois dias seguintes preparando-me para uma mudança da cidade. Por falar nisso, a idéia
de dirigir o carro não me perturbava em absoluto. Quando eu era criança, havia lido que o interior de
um carro é um dos lugares mais seguros para ficar-se durante uma tempestade elétrica, já que os pneus
de borracha funcionam como isoladores quase perfeitos. Realmente, eu ansiava por entrar em meu
velho Chevrolet, levantar os vidros de todas as janelas e rodar para fora daquela cidade, que já
começara a considerar um poço de raios. Não obstante, em meus preparativos incluía-se a remoção da
lâmpada do teto, cuja tomada seria vedada com plástico de embalagem, além de girar o botão da luz
inteiramente para a esquerda, a fim de eliminar a iluminação do painel.
"Quando entrei em meu apartamento, pretendendo passar nele a última noite, o lugar estava
vazio, exceto pela mesa da cozinha, a cama e minha máquina de escrever no estúdio. Aliás, a máquina
estava no chão. Não era minha intenção levá-la comigo – havia demasiadas más associações ligadas a
ela e, por outro lado, as teclas iam ficar grudadas para sempre. Que o próximo inquilino fique com ela,
pensei – ele e também Bellis.
"Era apenas o pôr-do-sol e o lugar tinha uma coloração esquisita. Eu estava totalmente bêbado e
tinha outra garrafa no bolso do sobretudo, contra as vigílias noturnas. Passei pelo estúdio, acho que
querendo ir até o quarto. Lá eu me sentaria na cama, pensaria sobre fios, eletricidade, radiação livre e
beberia, até ficar embriagado o suficiente para dormir.
"O que eu chamava de estúdio era, em realidade, a sala de estar. Eu a tornara meu local de
trabalho, porque tinha a melhor iluminação de todo o apartamento uma grande janela dando para oeste,
parecendo chegar até o horizonte. Era algo próximo do Milagre dos Pães e dos Peixes, em um
apartamento de quinto andar em Manhattan, mas a linha de visão lá estava. Eu não a questionava,
apreciava-a, apenas. Aquele aposento era cheio de uma límpida, adorável claridade, mesmo nos dias
chuvosos.
"A qualidade da luz noturna, contudo, era espectral. O sol poente inundara a sala com um clarão
avermelhado. Claridade de fornalha. Vazio, o aposento parecia grande demais. Meus calcanhares
faziam ecos uniformes, no assoalho de madeira.
"A máquina de escrever estava no meio do piso e eu ia apenas passar por ela, quando vi que havia
um pedaço rasgado de papel, enfiado debaixo do rolo – o que me sobressaltou, pois sabia que não
havia papel algum na máquina, quando saíra da última vez para comprar uma nova garrafa.
"Olhei em torno, procurando se havia alguém – algum intruso – ali dentro comigo.
Contudo, não era bem em intrusos, assaltantes ou pivetes que eu pensava, mas em... fantasmas.
"Notei um espaço rasgado no papel da parede, à esquerda da porta do quarto.
Compreendi, então, de onde proviera o papel na máquina de escrever. Alguém havia,
simplesmente, arrancado um pedaço do papel de parede.
"Eu ainda olhava para aquilo, quando ouvi um único, mas distinto ruído claque! – embora quase
imperceptível, atrás de mim. Dei um salto e girei, com o coração em disparada na garganta. Estava
aterrorizado, mas sabia perfeitamente que som era aquele – quanto a isso, não havia dúvida nenhuma.
A gente trabalha com palavras a vida inteira e conhece bem o som de uma tecla da máquina de
escrever batendo contra o papel, mesmo em um quarto vazio ao crepúsculo, onde não há ninguém
batendo a tecla.
Todos olharam para ele no escuro, as faces como borrados círculos brancos. Ninguém disse nada,
mas uns se aproximaram mais dos outros. A esposa do escritor segurava firmemente uma das mãos do
marido.
– Eu me senti... fora de mim. Irreal. Talvez seja sempre assim que nos sentimos, ao atingirmos o
ponto do inexplicável. Caminhei lentamente até a máquina de escrever.
Meu coração batia como louco em minha garganta, mas mentalmente eu estava calmo...
inclusive, gelado.
"Claque! Outra tecla saltou. Desta vez, eu a vi – a tecla ficava na terceira fileira, a partir do topo,
do lado esquerdo.
"Agachei-me lentamente sobre os joelhos. Então, todos os músculos em minhas pernas ficaram
bambos de repente e quase encolhi pelo resto do movimento, até cair sentado diante da máquina de
escrever, com meu sujo sobretudo London Fog espalhado à minha volta, como a saia de uma jovem, ao
fazer sua mais reverente e profunda mesura. A máquina de escrever emitiu aquele ruído mais duas
vezes, rapidamente, pausou, tornou a emiti-lo. Cada claque produzia a mesma espécie de eco surdo que
meus pés haviam feito no assoalho.
"O papel de parede havia sido colocado no rolo da máquina, de maneira a que a parte com a cola
seca ficasse para fora. As letras estavam onduladas e empastadas, mas pude lê-las: rackn, diziam.
Depois, houve mais um claque! e a palavra era rackne.
"Então... – ele pigarreou e sorriu de leve. – Mesmo após tantos anos, é difícil dizer isto... apenas
falar o que houve. Tudo bem. O simples fato, sem qualquer enfeite, é o seguinte: eu vi uma mão saindo
da máquina de escrever. Uma mão incrivelmente pequenina. Saiu de entre as teclas B e N, na última
fileira, enrolada em si como um punho, para movimentar a barra do espaçamento. A máquina saltou
um espaço – muito depressa, como um soluço – e a mão recuou para onde viera.
A esposa do agente riu com estridência.
– Ria com vontade, Marsha – disse suavemente o agente, e ela riu.
As batidas de teclas começaram a soar um pouco mais rápido – prosseguiu o editor – e, após
algum tempo, pude ouvir ofegar a criatura que movia as teclas, da maneira como alguém ofega, ao
trabalhar duro, chegando mais e mais perto de seu limite físico. Após algum tempo, a máquina mal
imprimia alguma coisa. A maioria das teclas se enchera com aquela velha matéria gomosa, mas eu
podia ler as letras. Estava escrito Rackne está morr, e então a tecla do e ficou presa à cola. Olhei para
aquilo por um momento e então, estirando um dedo, libertei-a. Não sei se a criatura – Bellis –
conseguiria libertá-la sozinha. Acho que não. Contudo, eu não queria ver... vê-la... tentar. Apenas a
visão daquele pulso já era suficiente para deixar-me à beira do desequilíbrio. Se visse o elfo inteiro, por
assim dizer, creio que ficaria realmente louco. E não havia a questão de fugir dali, porque toda a força
das pernas me abandonara.
"Claque-claque-claque, aqueles diminutos grunhidos e soluços de esforço e, após cada palavra,
aquele punho pálido, sujo e oleoso de graxa, saindo entre o B e o N para martelar a barra do espaço.
Não sei ao certo quanto isso durou. Sete minutos, talvez.
Talvez dez. Ou talvez para sempre.
"Por fim, os claques pararam e percebi que não o ouvia mais respirar. Talvez o entezinho
houvesse perdido os sentidos... talvez apenas tivesse desistido e ido embora... ou talvez houvesse
morrido. Podia ter tido um ataque de coração ou coisa assim. Minha única certeza é de que a
mensagem não havia sido completada. Ao todo, ela dizia, em caixa baixa: rackne está morrendo é o
garotinho jimmy thorpe que não sabe diga a thorpe que rackne está morrendo garotinho jimmy está
matando rackne e... isso era tudo.
"Encontrei forças para me firmar nos pés e então saí dali. Caminhei em largas passadas na ponta
dos pés, como se a criatura tivesse ido dormir e, se eu tornasse a produzir aqueles ecos surdos no
assoalho, ela talvez acordasse, para começar novamente a datilografar... Acho que se isso acontecesse,
o primeiro claque me poria gritando. E continuaria gritando, até que meu coração ou a cabeça
explodissem.
"Meu Chevrolet estava no pátio do estacionamento, no fim da rua, cheio de gasolina, já carregado
e pronto para a partida. Coloquei-me atrás do volante, e então recordei a garrafa no bolso do sobretudo.
Minhas mãos tremiam tanto, que eu a deixei cair, mas ela aterrou em cima do banco e não se quebrou.
"Lembrei-me dos blackouts e, meus amigos, naquele momento exato um blackout era exatamente
do que eu precisava – e foi exatamente o que aconteceu. Recordo haver tomado o primeiro e segundo
goles do gargalo da garrafa. Recordo ter ligado a chave do carro e depois de ouvir Sinatra no rádio,
cantando "That Old Black Magic", o que parecia bem ajustado à situação. Em vista das circunstâncias.
Por assim dizer. Lembro-me de ter acompanhado a canção e de beber mais alguns goles. Eu estava na
última fila do estacionamento e podia ver a luz do tráfego na esquina, mudando segundo a passagem
do tempo. Fiquei pensando naqueles estalidos de teclas na sala vazia e no clarão avermelhado que ia
fanando em meu estúdio. Pensei naqueles sons arquejantes, como se algum elfo ginasta houvesse
pendurado pesos de linha de pesca nas extremidades da tecla O e fizesse exercícios de levantamento,
dentro da minha velha máquina de escrever. Pensei também na superfície áspera do avesso daquele
retalho de papel de parede. Minha mente insistiu em querer examinar o que poderia ter acontecido,
antes que eu chegasse ao apartamento... insistia em ver a coisa – ele – Bellis – saltando, agarrando o
pedaço frouxo do papel de parede junto à porta do quarto, por ser o único ainda existente no local com
qualquer semelhança de papel – pendurando-se nele – e finalmente o rasgando, carregando-o em sua
cabeça para a máquina de escrever, como a uma folha de palmeira nipa. Fiquei procurando imaginar
como é que ele – a criatura – conseguira colocar o pedaço de papel em torno do rolo da máquina.
Como nada disso tinha aparência de blackout, então fiquei bebendo. Frank Sinatra parou de cantar,
houve uma publicidade para o Crazy Eddie's e depois Sarah Vaughan passou a cantar "I'm Gonna Sit
Right Down and Write Myself a Letter" (Vou-me sentar bem aqui e escrever uma carta para mim
mesmo) e isso era algo mais que podia relacionar à situação. Afinal, eu havia escrito para mim
recentemente ou, pelo menos, pensava que tinha escrito, até essa noite, quando acontecia algo, dandome
motivo para considerar minha postura naquela questão, por assim dizer. Cantei juntamente com a
boa e velha Sarah Soul, e foi quando devo ter adquirido velocidade de escape pois, em meio ao
segundo estribilho, sem a menor pausa em absoluto, eu estava botando as tripas para fora, enquanto
alguém primeiro me dava tapas nas costas, em seguida erguia-me os cotovelos, atrás de mim, depois os
baixando e tornando a dar-me palmadas. Era o motorista de caminhão. A cada palmada sua, eu sentia
um enorme jato de líquido subir em minha garganta e quase voltar novamente para dentro do corpo,
exceto que o homem me erguia os cotovelos e, quando fazia isso, eu tornava a vomitar. A maioria de
meu vômito não se compunha de Black Velvet, mas de água do rio. Quando finalmente tive forças para
erguer a cabeça o suficiente e espiar em torno, eram seis horas da tarde e três dias depois; eu jazia na
rampa do Rio Jackson, na Pensilvânia oeste, cerca de cento e cinqüenta quilômetros ao norte de
Pittsburgh. Meu Chevrolet caíra no rio e sua traseira era visível, apontando para o alto. Eu ainda
conseguia ler o adesivo de McCarthy, colado no pára-choque.
"Arranja-me outra Fresca, meu bem? Tenho a garganta seca como o inferno.
A esposa do escritor foi buscar-lhe a soda, silenciosamente. Quando a entregou a ele, abaixou-se
impulsivamente e beijou sua face enrugada, como couro de crocodilo. Ele sorriu, e seus olhos
cintilaram à claridade mortiça. Uma bondosa e delicada mulher, não obstante, ela não se deixou
enganar, em absoluto, por aquele cintilar. Jamais era a alegria que punha olhos brilhantes daquela
maneira.
– Obrigado. Meg.
Ele bebeu profundamente, tossiu, rejeitou com um aceno a oferta de um cigarro.
– Já fumei os suficientes por hoje. Vou parar de fumar inteiramente. Em minha próxima
encarnação. Por assim dizer.
"Nem preciso contar o resto de minha história. Ela teria contra si o único pecado de que qualquer
história pode ser realmente culpada – é previsível. Eles pescaram cerca de quarenta garrafas de Black
Velvet de meu carro, muitas delas vazias. Eu balbuciava sobre elfos e eletricidade, sobre Fornit,
mineradores de plutônio e fornus. Decidiram que eu estava totalmente louco e, claro, era exatamente o
que acontecia comigo.
"Agora, temos aqui o que aconteceu em Omaha, enquanto eu dirigia por lá segundo os talões de
crédito para gasolina, encontrados no porta-luvas do Chevrolet. Enquanto eu dirigia por cinco estados
do norte. Tudo isto, compreendam, foi informação que obtive de Jane Thorpe, durante um longo e
penoso período de correspondência, que culminou com um encontro a dois em New Haven, onde ela
hoje reside, pouco depois que recebi alta do sanatório – uma recompensa por, finalmente, voltar atrás
em minha história.
Findo aquele encontro, choramos nos braços um do outro, e foi quando acreditei ser possível
haver ainda uma vida real para mim, talvez mesmo a felicidade.
"Naquele dia, por volta de três da tarde, bateram à porta da residência dos Thorpe. Era um garoto
mensageiro do telégrafo. O telegrama tinha sido enviado por mim, última peça de nossa infortunada
correspondência. Dizia o seguinte:
REG TENHO INFORMAÇÃO CONFIANÇA DE QUE RACKNE ESTÁ MORRENDO É O
GAROTINHO SEGUNDO BELLIS BELLIS DIZ NOME DELE É JIMMY FORNIT SOME
FORNUS HENRY.
"Caso tenha passado por suas mentes aquela maravilhosa pergunta de Howard Baker O que ele
sabia e quando ele soube? direi isto: eu sabia que Jane contratara uma faxineira; e não sabia – exceto
através de Bellis – que essa faxineira tinha por filho um garotinho endiabrado chamado Jimmy. Terão
de aceitar minha palavra por isso, embora eu deva acrescentar, com toda sinceridade, que os
psiquiatras ocupados com meu caso nos dois anos e meio seguintes não me deram o menor crédito.
"Jane estava na mercearia, quando o telegrama chegou. Ela o encontrou, após a morte de Reg, em
um de seus bolsos traseiros da calça. A hora da transmissão e da entrega estava anotada nele,
juntamente com a linha informando Sem telefone. Entrega pessoal.
Jane disse que, embora o telegrama tivesse apenas um dia, havia sido tão manuseado que dava a
impressão de haver sido recebido um mês antes.
"De certa maneira, esse telegrama, aquelas vinte e quatro palavras foram o verdadeiro projétil
flexível, e eu o disparei bem no cérebro de Reg Thorpe, por toda a distância a partir de Paterson, Nova
Jersey. Eu estava tão infernalmente bêbado, que nem mesmo me lembrava de tê-lo feito.
"Durante suas duas últimas semanas de vida, Reg se ajustara a um padrão que parecia a própria
normalidade. Levantava-se às seis, preparava o desjejum para si mesmo e a esposa, depois escrevia por
uma hora. Por volta das oito, trancava seu estúdio e levava o cão para um longo e despreocupado
passeio na vizinhança. Mostrava-se sempre acessível em tais passeios, parando para conversar com
quem quisesse palestrar com ele, amarrando o cachorro fora de um café próximo e tomando uma xícara
de café pelo meio da manhã. Depois, recomeçava a caminhada. Raramente voltava para casa antes do
meio-dia. Em muitos dias, chegava ao meio-dia e meia ou uma da tarde. Parte disto era um esforço
para escapar à gárrula Gertrude Rulin, segundo acreditava Jane, porque o padrão de seu marido só
começara a solidificar-se, uns dois dias depois da faxineira começar a trabalhar para eles.
"Reg fazia um almoço leve, deitava-se por cerca de uma hora, depois se levantava e escrevia por
duas ou três horas. Ao anoitecer, às vezes visitava os rapazes vizinhos, com Jane ou sozinho; em outras
ocasiões; ele e Jane iam ao cinema ou apenas ficavam lendo na sala de estar. Deitavam-se cedo, Reg
geralmente um pouco antes de Jane. Ela escreveu que havia muito pouco sexo entre eles e que, quando
havia, era sem êxito para ambos. "Contudo, o sexo não é importante para a maioria das mulheres",
disse ela, "e Reg vinha trabalhando bem novamente, o que constituía um substituto razoável para ele.
Eu diria que, naquelas circunstâncias, essas duas últimas semanas foram as mais felizes nos últimos
cinco anos. "Eu quase chorei ao ler isto.
"Eu ignorava tudo sobre Jimmy, mas não era esse o caso de Reg. Ele estava a par de tudo, exceto
do fato mais importante – que Jimmy passara a ir com sua mãe para o trabalho.
"Como deve ter ficado furioso ao receber meu telegrama e perceber o que sucedia! Ali estavam
eles, afinal. E, aparentemente, sua própria esposa era um deles, porque ela estava na casa, quando
Gertrude e Jimmy lá se encontravam. E ela nunca lhe dissera uma só palavra sobre Jimmy. O que me
tinha ele escrito, em uma carta anterior? Às vezes, desconfio de minha esposa."
"Quando ela voltou para casa, no dia em que o telegrama chegou, descobriu que Reg se
ausentara. Havia uma nota, em cima da mesa da cozinha, dizendo, "Meu bem – fui à livraria. Volto à
hora do jantar". A nota pareceu a Jane perfeitamente normal... mas se ela soubesse de meu telegrama, a
própria normalidade daquelas palavras a teria deixado terrivelmente amedrontada, creio eu. Jane
compreenderia que Reg a imaginava como tendo mudado de lado.
"Reg nem chegou perto de uma livraria. Foi ao Empório de Armas Little John's, no centro da
cidade. Comprou uma automática 45 e dois mil cartuchos de munição. Teria comprado uma AK-70, se
Little John's possuísse permissão para vendê-las. Reg queria proteger seu Fornit, compreendam. De
Jimmy, de Gertrude, de Jane. Deles.
"Na manhã seguinte, tudo transcorreu dentro da rotina estabelecida. Jane recorda ter pensado que
seu marido usava uma suéter muito grossa para um dia de outono tão quente, mas isso foi tudo. A
suéter, naturalmente, era por causa da arma. Ele saiu para passear com o cão, levando a 45 enfiada no
cinto.
"Reg seguiu diretamente para o restaurante onde costumava tomar seu café matinal, sem paradas
ou conversas durante o trajeto. Levou o cãozinho até a área de descarga de mercadorias, amarrou sua
correia a um trilho e voltou para casa, por ruas traseiras.
"Estava a par da programação dos rapazes vizinhos, sabia que eles não se encontrariam em casa.
Sabia também onde eles guardavam uma duplicata da chave. Entrou na casa, foi para o andar de cima e
ficou vigiando sua própria residência.
"Às oito e quarenta, viu Gertrude Rulin chegar. Ela não estava sozinha. Em sua companhia, havia
realmente um menino pequeno. O comportamento turbulento de Jimmy Rulin, na classe do primeiro
grau, convenceu a professora e o conselheiro-chefe, quase imediatamente, de que todos (exceto talvez
a mãe de Jimmy, que descansaria com a ausência do filho) passariam melhor, caso o menino esperasse
mais um ano, antes de freqüentar a escola. Jimmy estava farto de repetir o jardim-da-infância e,
durante a primeira metade do ano, ia para a escola no período da tarde. As duas creches existentes na
zona de Gertrude encontravam-se lotadas, e ela não podia trabalhar à tarde para os Thorpe, porque já
tinha outro compromisso como faxineira, de quatorze às dezesseis horas, no lado oposto da cidade.
"O desfecho de tudo, foi o consentimento relutante de Jane, quanto a Gertrude poder levar Jimmy
consigo, até que conseguisse providenciar um outro arranjo. Ou até Reg descobrir, como estava prestes
a ocorrer.
"Jane achava que talvez o marido não se incomodasse, já que, ultimamente, vinha sendo muito
cordato sobre tudo. Por outro lado, ele poderia ter um ataque de nervos. Se tal acontecesse, teriam que
ser feitos outros arranjos. Gertrude disse que compreendia. E, acima de tudo, estipulou Jane, o garoto
não devia tocar em qualquer coisa pertencente a Reg. Gertrude garantiu que assim seria; a porta do
dono da casa estava trancada, e trancada ficaria.
"Thorpe deve ter cruzado os dois pátios como um atirador de tocaia, cruzando a terra-deninguém.
Ainda não vira o menino. Moveu-se ao longo da lateral da casa. Ninguém na sala de
refeições. Ninguém no quarto. E então, no estúdio – onde Reg morbidamente esperara vê-lo – lá se
encontrava ele. O rosto do garoto parecia afogueado de excitamento e, sem dúvida. Reg deve ter
acreditado que, finalmente, ali estava um legítimo agente deles.
"O garoto empunhava uma espécie de máquina do raio-da-morte e a apontava para a mesa de
trabalho... enquanto Reg podia ouvir Rackne gritando, do interior de sua máquina de escrever.
"Talvez julguem que eu esteja atribuindo dados subjetivos a um homem que agora se encontra
morto. Ou, em palavras mais rudes, inventando coisas. Pois não estou. Na cozinha, tanto Jane como
Gertrude ouviam o nítido som trinado da pistola espacial de plástico que Jimmy empunhava. Ele a
estivera usando pela casa inteira, desde que começara a vir com a mãe e, a cada dia, Jane tinha
esperanças de que as pilhas do brinquedo se extinguissem. Não havia engano quanto ao som.
Tampouco havia engano sobre o lugar de onde ele vinha – o estúdio de Reg.
"Compreendam, o garoto era realmente do material de Dennis o Terrível, se havia um lugar na
casa onde ele não deveria ir, era justamente esse o lugar onde tinha de ir, para não morrer de
curiosidade. Ele não demorou muito a descobrir que Jane tinha uma chave do estúdio de Reg sobre a
platibanda da lareira na sala de refeições. Jimmy já teria entrado antes no estúdio? Creio que sim. Jane
disse recordar haver dado uma laranja a ele, três ou quatro dias antes; mais tarde, quando limpava a
casa, encontrou cascas da laranja debaixo do pequeno sofá do estúdio. Reg não gostava de laranjas –
dizia-se alérgico a elas.
"Jane deixou cair na pia o lençol que lavava e correu para o quarto de dormir. Ouvia o ruidoso
ríá-icá-iiá da pistola espacial e também ouvia Jimmy gritando: "Eu vou te pegar! Você não pode fugir!
Posso ver você pelo VIDRO!" E... ela disse... disse ter ouvido algo gritando. Um som agudo e
desesperado, segundo afirmou, tão cheio de dor, que era quase insuportável.
"Quando ouvi aquilo", disse ela, "compreendi que teria de abandonar Reg, pouco importando o
que acontecesse, porque os contos da carochinha eram verdadeiros... a loucura era contagiosa. Sim,
pois quem eu ouvia era Rackne; de algum modo, aquele garotinho levado estava matando Rackne,
matando-o com os disparos de uma arma espacial, comprada por dois dólares na casa Kresge's.
"A porta do estúdio estava escancarada, com a chave na fechadura. Mais tarde, nesse mesmo dia,
vi uma das cadeiras da sala de refeições encostada junto à lareira, com o assento todo marcado pelos
tênis de Jimmy. O menino estava inclinado para a mesa da máquina de escrever de Reg. Ele – Reg –
possuía um antigo modelo de máquina de escrever, do tipo para escritório, com partes de vidro nas
laterais. Jimmy tinha o cano de sua pistola espacial encostado a uma daquelas partes de vidro e
disparava para o interior da máquina de escrever. Uá-uá-uá, e impulsos púrpuras de luz eram
disparados contra a máquina de escrever. De repente, pude compreender tudo quanto Reg já dissera
sobre eletricidade, porque embora aquele brinquedo fosse apenas movido por pilhas elétricas
inofensivas, realmente dava a impressão de expelir ondas venenosas, que me varavam a cabeça e
carbonizavam meu cérebro.
"Eu vi você aí!" gritava Jimmy, e seu rosto estava tomado pela alegria infantil – era algo belo e
terrível ao mesmo tempo. "Você não vai poder fugir, Capitão Futuro! Você está morto, alienígena!" E
aqueles gritos... ficando mais fracos... menos intensos...
"Pare com isso, Jimmy!" gritei.
"Ele saltou. Eu o assustara. Virou-se... olhou para mim... estirou-me a língua... e tornou a encostar
o cano da pistola no painel de vidro, recomeçando a atirar – uã-uã-uã – e expelindo aquela nojenta luz
purpúrea.
"Gertrude vinha chegando pelo corredor, gritava que ele parasse, que saísse dali, que ia levar a
maior surra de sua vida... quando então a porta da frente escancarou-se com ímpeto e Reg surgiu no
corredor, berrando. Bastou-me um olhar para ele e compreendi que estava insano. A arma encontravase
em sua mão.
"Não mate o meu filhinho!" gritou Gertrude quando o viu, avançando para contê-lo.
Reg simplesmente a empurrou para um lado.
"Jimmy nem parecia perceber o que acontecia – apenas continuou disparando sua pistola espacial
para dentro da máquina de escrever. Eu podia ver aquela luz purpúrea pulsando na escuridão entre as
teclas, uma luz semelhante à produzida por aqueles arcos elétricos, a mesma sobre a qual dizem que
não podemos olhar sem óculos protetores especiais, porque ela poderia cozinhar as retinas, cegandonos.
"Reg entrou, roçou violentamente em mim, derrubando-me.
"RACKNE!" gritou ele. "VOCÊ ESTÁ MATANDO RACKNE!"
"E, mesmo enquanto Reg cruzava o estúdio às carreiras, aparentemente pretendendo matar aquela
criança", disse-me Jane, "tive tempo de pensar nas muitas vezes em que Jimmy estivera ali, disparando
sua arma contra a máquina de escrever, enquanto eu e sua mãe estávamos no andar de cima, trocando a
roupa de cama, ou no pátio dos fundos, pendurando a roupa lavada, sem ouvirmos o uá-uáuá... sem
ouvirmos aquela coisa... o Fornit... lá dentro, gritando.
"Jimmy não parou, nem mesmo quando Reg irrompeu no estúdio – apenas ficou disparando
contra a máquina de escrever, como se soubesse que aquela era sua última chance. Desde então, tenhome
perguntado se Reg não estaria certo também sobre eles.
Talvez eles apenas flutuem por aí, de vez em quando penetrando na cabeça de uma pessoa, como
alguém mergulhando em uma piscina. Em seguida, eles fazem esse alguém executar o trabalho sujo,
insistindo em serem atendidos. Depois, o sujeito em que eles estiveram, pergunta, "Como? Eu? Fiz o
quê?"
"Um segundo antes de Reg chegar lá, o grito no interior da máquina de escrever tornou-se um
breve guincho esganiçado – e vi sangue espalhar-se por todo o interior daquela placa de vidro, como se
o que quer que existisse lá, finalmente acabasse de explodir, como dizem que um animal vivo
explodirá, se colocado em um forno de microondas. Sei que isto pode parecer loucura, mas eu vi
aquele sangue – ele bateu no vidro em um jato, antes de começar a escorrer.
"Peguei ele! exclamou Jimmy, altamente satisfeito. "Peguei..."
"Então, Reg o jogou através do estúdio, em toda a distância. Jimmy se chocou contra a parede. A
pistola foi arrancada de sua mão, bateu no chão e se quebrou. Nada mais era além de plástico e pilhas
Eveready, naturalmente.
"Reg espiou dentro da máquina de escrever e deu um grito. Não foi um grito de dor ou de fúria,
embora nele houvesse fúria – era, principalmente, um grito de pesar. Virou-se então para o menino.
Jimmy tinha escorregado para o chão e o que quer que houvesse sido – se é que fora algo mais do que
apenas um garotinho travesso – agora era apenas uma criança aterrorizada de seis anos. Reg apontou a
arma para ele e isso é tudo de que me lembro.
O editor terminou sua soda e colocou a lata a um lado, cuidadosamente.
– Gertrude e Jimmy Rulin recordam o suficiente para preencher a lacuna – disse ele. – Jane
gritou, "Reg, NÃO!– Quando Reg se virou para fitá-la, ela conseguiu levantar-se e atracou-se com o
marido. Ele a baleou, estilhaçando-lhe o cotovelo esquerdo, mas Jane não o soltou. Enquanto
continuava atracada a ele, Gertrude chamou o filho e Jimmy correu para ela.
"Reg empurrou Jane e tornou a baleá-la. Agora, a bala passou raspando pelo lado esquerdo de seu
crânio. Menos de meio centímetro para a direita, e o projétil a teria matado. Há pouca dúvida quanto a
isso e nenhuma quanto à certeza de que Reg mataria Jimmy Rulin e talvez também sua mãe, se não
fosse a intervenção de Jane Thorpe.
"Ele baleou o garoto – quando Jimmy correu para os braços da mãe, logo depois da porta do
estúdio. A bala penetrou na nádega esquerda do garoto, em um trajeto para baixo.
Saiu pela parte superior da coxa esquerda, sem ofender o osso, passando através da pele de
Gertrude Rulin. Houve muito sangue, porém nenhum dano importante a qualquer dos dois.
"Gertrude bateu a porta do estúdio e carregou seu filho que chorava e sangrava, corredor abaixo,
até deixar a casa pela porta da frente.
O editor tornou a fazer uma pausa, pensativo.
– Jane estaria sem sentidos, na ocasião, ou deliberadamente preferiu esquecer o que aconteceu em
seguida. Reg sentou-se em sua poltrona de escritório e encostou o cano da 45 contra o meio da testa.
Apertou o gatilho. O projétil não lhe varou o cérebro e o transformou em um vegetal vivo, nem viajou
em semicírculo pelo crânio, saindo inofensivamente no ponto mais distante. A fantasia era flexível,
mas o projétil final foi o mais rijo possível. Reg caiu para diante, em cima da máquina de escrever,
morto.
"Quando a polícia irrompeu, encontraram-no desse jeito. Jane estava sentada em um canto
afastado, semi-inconsciente.
"A máquina de escrever estava coberta de sangue e, presumivelmente, também cheia dele;
ferimentos na cabeça são muito, muitíssimo hemorrágicos.
"Todo o sangue era Tipo O.
"O tipo do sangue de Reg Thorpe.
"E esta, senhoras e senhores, é a minha história. Não, posso dizer mais nada.
De fato, a voz do editor se fora reduzindo, até não passar de um fosco sussurro.
Não houve a costumeira tagarelice pós-reunião, nem mesmo a desajeitadamente brilhante
conversa que as pessoas às vezes usam para cobrir a indiscreção momentânea em algum coquetel ou,
pelo menos, para disfarçar o fato de que a situação, em algum ponto, ficou muito mais séria do que em
geral acontece, quando por ocasião de um jantar.
Não obstante, quando o escritor viu o editor encaminhar-se para seu carro, foi incapaz de conter
uma pergunta final.
– A história – disse ele. – O que aconteceu à história?
– Está se referindo à...
– À "Balada do Projétil Flexível", exatamente. À história de Reg Thorpe, que provocou tudo isso.
Aquele foi o real projétil flexível – para você, se não para ele. Que diabo aconteceu a uma história que
era tão infernalmente espetacular?
O editor abriu a porta de seu carro; era um pequeno Chevette azul, tendo no para-choque traseiro
um adesivo que dizia AMIGOS NÃO DEIXAM QUE AMIGOS DIRIJAM EMBRIAGADOS.
– Bem, ela jamais foi publicada. Se Reg possuía uma cópia a carbono, deve tê-la destruído após
estar de posse do meu recibo e aceitação da história – considerando-se seus sentimentos paranóicos
sobre eles, o que seria bem condizente com a situação.
"Eu tinha comigo seu original mais três fotocópias, quando mergulhei no Rio Jackson.
Os quatro estavam em uma pasta de papelão. Se houvesse colocado essa pasta no porta mala, hoje
ainda teria a história, uma vez que a traseira de meu carro não chegou a mergulhar – e, mesmo que
mergulhasse, as laudas se teriam secado. Contudo, eu a queria perto de mim, de modo que coloquei a
pasta no banco dianteiro, ao lado do motorista. As janelas estavam arriadas, quando bati na água. As
laudas... presumo que apenas tenham sido levadas boiando pela correnteza, chegando até o mar. Antes
quero acreditar nisso, do que em irem apodrecendo com o resto do lixo no fundo daquele rio, inclusive
comidas pelos peixes locais ou algo ainda menos agradável esteticamente.
Acreditar que foram levadas para o mar é mais romântico e ligeiramente mais improvável, porém
quando se trata daquilo em que prefiro crer, acho que ainda posso ser flexível.
"Por assim dizer.
O editor entrou em seu pequeno carro e afastou-se. O escritor ficou parado, espiando até as luzes
traseiras piscarem e desaparecerem. Então se virou. Meg estava ali, parada à cabeceira da alameda, no
escuro, sorrindo um pouco incertamente para ele. Tinha os braços apertadamente cruzados sobre o
busto, embora a noite fosse cálida.
– Somos os últimos dois – disse ela. – Quer entrar?
– Naturalmente.
A meio caminho, na alameda, ela parou e perguntou:
– Não há Fornits em sua máquina de escrever, há, Paul?
E o escritor que, por vezes – com freqüência – perguntava-se de onde, exatamente, vinham as
palavras, respondeu, em tom corajoso:
– É claro que não. Em absoluto! Os dois entraram em casa, de braços dados, e fecharam a porta
contra a noite.Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-39326617244591834272015-10-01T17:47:00.000-03:002015-10-02T00:18:58.937-03:00William Bradley Montserrat - O outro cara, penúltima parte.<br />
<br />
Will chegara à mesa, com os braços entrelaçados pelas costas, junto a Tommy Benn, e isso provocou piadinhas da parte de Lian.<br />
- Estou com ciúmes Tommy, você sabe que eu sou seu amor. - Todos da mesa sorriem descontraidamente, incluindo Becky que estava, desde quando William Bradley saíra para o banheiro, enfeitiçada por aquela tecnologia chamada "celular". De alguma forma Camille havia percebido uma afeição mais monótona no rosto de Will, e apercebera uma gotinha de sangue quase escondida dentro da curva do lábio esquerdo.<br />
- Que merd# é essa no teu rosto, garoto? - Ela fica com os olhos contraídos, fitando-o.<br />
- Ah - Ele põe a mão atrás da cabeça, expressando confusão - Acho que um mosquito me picou no canto da boca, nada demais. - Ele envia-lhe um sorriso de canto de boca, logo após senta-se ao lado de Becky na mesa.<br />
- O que você acha, esse vestido ou esse? - Becky pergunta, mostrando-lhe a tela do celular iluminada com imagens de vestidos para bailes.<br />
- O que você escolher, estará perfeito para mim. - Ele pisca para ela e é retribuído com um beijo molhado de batom vermelho por seus lábios.<br />
- Sua boca está com gosto de sangue, amor.<br />
- "<i>Eu sei que está acabei de merendar um desgraçado antipático, porém muito saboroso. -</i> Bradley pensa, não é ele ali pensando, mas ele ainda estava lúcido para controlar-se. - Já disse, foi o mosquito. - Ele observara de uma forma repetitiva, engraçando-a.<br />
- Maldito mosquito.<br />
- Pois é.<br />
- Vão ficar nesse namorico idiota ou vão comer? - Lian fala fazendo gestos com as mãos, apontando para a comida. - Se não quiserem tudo bem, o sanduíche do Queen's é tão bom que eu provavelmente comeria dois ou três, até quatro. - Ele acena para Bobbie do outro lado do balcão, e ele devolve-lhe com um abanar de vento com seu bloco de anotações.<br />
Bobbie era o dono do restaurante, garçom e dono. Trabalhava seriamente e reconhecia os garotos (com a exceção de William) que sempre andavam por ali por vagas tardes ou noites de sexta.<br />
- Deixa de ser idiota. - Camille rebate com um empurrão de ombro nele.<br />
A conversa é finalizada nas primeiras mordidas nos sanduíches. Do outro lado do balcão, o garçom Bobbie abre um telefone antigo (modelo que abre e fecha) e disca o número do cozinheiro. Depois de alguns pipes que significavam o cell estava chamando, sempre aparecia a mesma mensagem, "<i>Caixa postal, deixe recado após o sinal"</i> - Estava muito barulho no Queen's naquele início de noite, mas se estivesse em um dia vago, onde há um ou dois sentados na mesa que sempre pedem por fritas e sucos prontos na hora, ele ouviria. Dentro do vaso. Abaixo de 94 quilos de gorduras mortas e apodrecendo, deitado com a cabeça virada para cima e recostada na parede que cercava os vasos sanitários, fitando a luz com olhos-mortos.<br />
Bradley cuidou disso. Na verdade. Ele cuidou de tudo.<br />
Ele passa a língua abaixo dos lábios superiores depois de engolir uma mordida do sanduíche, mas não é o gosto do pão com carne de hambúrguer e todos os demais componentes que estão lá dentro incrivelmente assados, mas sim, aquele sangue que ficou na sua boca e mente.<br />
Will lembra das palavras em francês que a professora havia ensinado para turma no primeiro semestre de prova:<br />
<i>"délicieux, savoureux, remarquable"</i>. - O que seria... <i>"delicioso, saboroso, marcante".</i><br />
Como ele pensou, não fora preciso poucos litros de sangue ou poucos milímetros, até mesmo ouvir aqueles badalares de medo surgir de dentro do coração do pobre homem, foi preciso apenas sentir o cheiro de sangue.<br />
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Apenas esse simples gesto despertou a loucura em sua cabeça, a fome. Will se pega recordando:<br />
- Aí cara, tem cigarros aí? - O cozinheiro diz.<br />
- Não, foi mal.<br />
- Problemas na urina, não estou conseguindo botar pra fora, saca? - Ele diz levantando as sobrancelhas. - Então um cigarrinho ia bem para relaxar.<br />
- Eu entendo, gostaria de poder ajudar, mas não tenho nada e nenhum de meus amigos fumam. - William responde.<br />
O cozinheiro adentra uma das portas e fecha-a, deixando a tranca rodar de "livre" para "ocupado".<br />
Levanta as tampas do sanitário e se senta. Respirando fundo, alto demasiadamente. William escuta, da mesma forma que escuta as batidas aceleradas do coração dele, como se estivesse acabado de correr 12 quilômetros sem perder o pique. Ele começa a cantar Happy-Days e aquela canção ecoa por dentro do banheiro e se abafa diante dos forros de gesso do teto. Will Bradley liga a torneira para prestar atenção em outra coisa senão aquele coração pulsante que provavelmente viria a óbito por infarte.<br />
Uma infame voz vêm a ele e ele sabe como se chama:<br />
-"<i>Está sentindo o cheiro da urina sangrada dele? É um pobre homem, dê a ele uma morte digna. Vamos lá Will eu sei que você quer." </i>- William iniciara uma canção, "Society - Eddie Vedder", para descontrair aquela mente perturbada. Mas é em vão.<br />
Ele escuta aquelas badaladas e vai passando uma mão por cima da outra de forma gananciosa, elas aceleram e aceleram como o coração de um cavalo em corrida. Ele canta a música mais rapidamente. E olha pelo reflexo do espelho.<br />
Vê a si próprio pulando a porta do banheiro e frases do tipo "O que quer aqui cara?", "Não vê que estou ocupado?". Tudo acontece muito rápido, e sangue espicha no teto. Tudo acontece dentro daquelas portas e ele se sente preso do outro lado do espelho. Vira de costas em um lado inverso ao que estava, dentro do espelho, a porta sai de "ocupado" para "livre", seus dedos tocam o buraco na porta que servia como uma maçaneta invisível para abrir e fecha-la quando quisessem, ela vai se abrindo lentamente conforme Will anda para ver o que tinha acontecido ali.<br />
Ele vê o sujeito em um estado péssimo e limpa tudo: O teto, as portas, e usa um pano de chão encontrado próximo a porta. Cobre o rosto do sujeito com o mesmo, mas o pano está escorregadio e cai no chão. Ele dá passos largos para trás e põe as mãos sobre a pia - recostando-se. Respirando fundo.<br />
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<br />Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-89481456110582426172015-09-30T18:39:00.003-03:002015-09-30T18:39:52.765-03:00William Bradley Montserrat.- E o outro cara.<i><br /></i>
<i>Mate para viver ou acabe com a sua própria vida, mas não deixe-o te pegar. Pois o desejo que isso não estivesse acontecido será bem maior do que o medo de morrer.</i><br />
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Lá estava ele de pé encarando a coisa. Não conseguia ver o final de suas extensões por uma camuflagem chamada "escuro". Pois ali, estavam glóbulos brancos em um corpo de pêlos. Dentes deformados, arqueados para lados distintos, além destes, duas presas - as únicas partes dentárias retas.<br />
Estava lá sem fazer um som. Mas ele sabia que seu medo o trairia e o faria correr para longe.<br />
Naquele momento sua imaginação foi embora e aquela fera diante do espelho também.<br />
Ele estava sozinho, porém vivo, mas...<br />
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<blockquote class="tr_bq">
por quanto tempo?</blockquote>
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A aula de biologia já estava pela metade. Deeds Stomps, ou se preferir,(por um breve momento é claro, ele não queria ser chamado assim), Starkley Dimmon Stomps.- Ele sabia que era um nome péssimo. - Leves e mesquinhos cabelos acendrados em tons não-tão-brancos, arqueados para trás decerto com um gel vagabundo - Deixando as bordas capilares das extremidades - direita e esquerda - à desejar. Fazia o jeito Louco "einsteiniano".<br />
Suas roupas, paletó de lã e um colete tricotado também a base de lã, o faziam parecer um cara extremamente culto. Mas as bebedeiras nos sábados e domingos podiam desmentir.<br />
Seu vocabulário era abrangente de:<br />
"<i>Sim, pois não</i>" e "<i>obséquio/benevolente</i>" e um pouco de "<i>camaradas/camaradagem</i>",<br />
mas claro, somente nos dias que dava aula naquela escola, o que dava a ele 4 dias de palavras como:<br />
"C*zão","Vad!azinha","Tiras"(sim ele ainda chamava "policiais" de tiras), "Mordefronha" assim dessa forma como uma palavra só. O resto dá para adivinhar facilmente. Ele falava como Rod Stewart cantava, em uma versão menos ga#y e rouca.<br />
- Abram vossos livros na página 171 por obséquio.- A sala é abafada por sons de papéis densos dobrando-se ressoadamente e alguns tiques de canetas.- Gratificado! - Suas mãos estão abertas livremente por cima da mesa de professores diante dos alunos. Seus olhos fitam a matéria daquele dia no papel rotineiro. - Iremos falar hoje de algumas espécies de morcegos hematólogos. - Ele reajusta os óculos fundo-de-garrafa para nivelar com os olhos castanhos. Seus olhos desviam-se para a janela de vidro e ele pensa consigo que podia estar bebendo no bar do Z,"<i>talvez se eu pudesse correr até o corredor e driblar a diretora que há essa hora está de pé no corredor igual a um espantalho, então, o resto não seria problema algum. São apenas 7 quilômetros até o Z, e quando passar da faxada da escola eu poderia ir andando tranquilamente." </i>- Mas o pensamento se esvai e novamente ele toma à olhar para toda a turma do fundamental dois, 9° ano. - "<i>Que besteira... Eles precisam de mim mais do que eu deles, não posso fazer isso."</i><br />
<br />
Aquele assunto trouxe arrepios da nuca até o fim das costas para William Bradley. Pois memórias lhe levavam para 1752, 1791, 1858 e 1931, períodos esses que algumas pessoas o feriram e ele quase morreu, quase se foi de verdade, para sempre.<br />
Fogos, comparações, prata, acusações. Depois de 1858, ele jamais quisera voltar a obter talheres de prata em casa, isso lhe era como "alimentar-se" com veneno. Era estranho naquele castelo que morava, tão alto e extenso, os talheres fossem de plástico ou metal. A verdade era que ninguém cozinhava mesmo, e somente William tentara ser normal. Mas, naquele mesmo ano, meses depois, uma faxineira que fora contratada por meio período duas vezes na semana, estranhamente sumiu. Lógico que os investigadores locais desconfiaram de onde ela trabalhava, o único emprego. Ainda sobrevoava a casa dos 17, e pairava o término da faculdade de ciências aplicáveis, (O dinheiro era somente pela carência do de seus pais, ela era bonita e vinha de pais pobres, precisava do próprio sustento), ela era uma "gênia incubada na pobreza". Elysa Ann, rosto redondo e cabelos cacheados. Sua boca tinha um aspecto molhado em um tom vermelho flamejante. Curvas altamente simétricas e perfeitas. William ainda tentara dominar seu desejo por carne humana, demorou muito para que isso se tornasse real. A princípio um garoto de aspecto jovem morando sozinho em um castelo que pertenceu a lordes antigo era de fato estranho. O mais estranho foi ter encontrado o corpo.<br />
Seminu e sem algumas partes do corpo, tais como: O PESCOÇO - arrancado e separado do tronco e cabeça. Porém sem sinal de lâminas. ANTEBRAÇOS - Separado das mãos e bíceps. E finalmente as pernas. Estavam intactas. Mas no meio. Na região sexual (foi preciso alguém ter que limpar todo o sangue ao redor do corpo e estancar aquele chafariz macabro, para depois remover a blusa apenas cortando com uma tesoura, que tinha um desenho de uma boca e uma língua no meio deles - devia ser uma dessas bandas de rock que jovens de 17 menos curtem). E então temos um ESTÔMAGO destroçado. Entranhas estavam para fora(eles estranharam o tamanho da barriga - gorda - em um corpo bem magro e saudável). E o pior veio depois... Ninguém dos legistas haviam realmente tocado no corpo. Porque se tivessem... Teriam visto o estrago verdadeiro. O corpo parecia um travesseiro de plumas(com exceção do estômago) , que se apertasse bem teria noção que nenhuma pluma estaria ali, apenas uma pele seca de sangue e vazia de todo o resto. Isso explicava claramente a foto que a mãe dela mostrou aos investigadores - Elysa na praia com os amigos com um tom de pele queimado, certamente frequentava praias, jogando vôlei com um óculos de sol na cara e aquela maldita blusa.<br />
Era como se aquela blusa fizesse apologia de que alguém ou algo que fizera aquilo estivesse gostado bastante, passando a língua nos lábios. Saboreando-os.<br />
William pensa consigo;<br />
"<i>Mas foi gostoso. Tudo na verdade. Desde de os gritos berrantes de súplica pela própria vida. Até ela ter acertado minha cabeça com uma pá achando que tinha me matado, e depois eu voando em cima dela simplificando toda a história, fatalmente, o final mais esperado de todos...".</i><br />
Bradley era um cara legal, meigo. Jamais se recusara a ajudar alguém quando essa pessoa estava realmente precisando.<br />
Mas o outro cara.<br />
Ele assentiu para o reflexo no espelho com os longos cabelos atrás e curtos e cortados na frente também caídos na testa. Negros como o reflexo.<br />
Alguém lá vai surgindo dentro da escuridão, de repente toda a sala estava afundada em uma ausência de luz, o tempo parou. do outro lado "o outro cara" sorri para ele.<br />
- O outro cara. - Ele solta em um tom de sussurro.<br />
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- Morcegos hematólogos podem se alimentar de sangue humano mas acontece raramente. - Deeds diz, apontando com a varinha indicadora à algumas anotações na lousa. - Talvez uns caipiras ou viajantes que estão indo pela a primeira vez para alguma viagem à grutas ou florestas. Indo de encontro ao habitat deles. Se raramente eles mordem humanos, então também, raramente o encontro é fatal. Sabemos que nossos camaradas não podem se alimentar de todo o líquido sanguíneo de uma vez só, mas em camaradagem com seus outros amigos famintos, se assim posso dizer, eles fazem estrago. Fazem uma verdadeira bagunça.<br />
"-<i>Isso é verdade não é? William." </i>- Do outro lado, no seu reflexo, aquilo lhe contava.<br />
Era preciso somente um cheiro de sangue, o resto era liberado por quase um século sem provar gosto de sangue animal ou humano. Ele era um sanguessuga diferente. Se ele se conter, sem incidentes, gados sumidos e encontrado mortos á quilômetros de distância, humanos desaparecidos e depois descobertos de uma forma deplorável, então ele poderia sobreviver comendo comida normal de um ser humano. O grupo de ufologia adolescente da rua - Plentz, 98 - culpava logicamente os alienígenas (se houvessem os amiguinhos raivosos de outros planetas e descobrissem o que William vinha fazendo, certamente o próximo a sumir seria ele).<br />
Era como uma ânsia forte crescendo e crescendo dentro de si. Sob duas salas de distância, vinte e cinco metros retos, alguém se corta com um papel, o polegar derrama algumas gotinhas de sangue. William Bradley sente o cheiro.<br />
Uma risada em silêncio de algo dentro de si o diz:<br />
"-<i> Você poderia me libertar, não é? Imagine o sangue. Vermelho vivo. É puro, eu reconheço, um sangue infantil. Este não têm nem pêlos no saco ainda - Sangue virgem é o melhor - é como aquela sobremesa de pudim ou gelatina que você encontra em um dia quente - É refrescante! </i><br />
<i>Imagine William... Aquela caixa de suco ambulante. Poderia espremê-lo como uma fruta, até então sentir o seu suco descer por sua boca. Depois a carcaça nós jogaremos em um buraco, ou em um triturador tamanho grande. Imagine William, Imagine. </i><br />
<i>Apenas imagine".</i><br />
<i><br /></i>
Algumas horas depois:<br />
Deeds Stomps estava sentado na sala dos professores, que coincidentemente era vizinha a sala que havia dado aula. Está em um clima de fim de aula com todo o barulho dos alunos conversando, rindo e berrando - Ele não via razão para a qual aqueles garotos faziam aquilo, certamente o assunto "palmatórias e rigidez" passavam de longe por suas casas. Ele não culpa-os, pois aqueles tempos foram de fato horríveis.<br />
- Professor, pode dar uma palavrinha comigo? - William estava de pé na porta com a mão na maçaneta quase adentrando a sala, esperando apenas um olhar de aprovação.<br />
-"<i>Na verdade não</i>" - Deeds pensa. Logo depois vem algo mais cansado a mente. "<i>Ah, eu não vou falar isso</i>" - Sim, meu camarada, o que se passa?<br />
- É sobre a aula de hoje.<br />
- Não anotou a agenda, ou talvez, não anotou os exercícios. Você estava desviado hoje, eu percebi. Mas se for somente isso, poderá pedir aos seus amigos, sabia? Um segredo entre nós, eles não mordem.<br />
Um sussurro quase automático sai de imediato a essa afirmação - "<i>Mas eu sim".</i><br />
- O que disse, Will?<br />
- Eu disse, "não é nada disso".<br />
- Então, qual o seu interesse nisso?<br />
- Os morcegos, hemafolos.<br />
- Hematólogos, Will...<br />
- Sim perdoe-me. "Hematólogos" - Os dedos de William fazem um sinal de aspas, um tipo de mini-deboche. - Eu gostaria de saber se eles mordem tudo que está pela frente ou se há algum tipo de limitação ou talvez um tipo de autocontrole de quem morder.<br />
- Aonde quer chegar William? - Sua face muda de feliz para um jeito duvidoso em poucos milésimos.<br />
- Se existe alguma limitação para o que eles mordem, saca? Se há algo que eles não fazem, não sei se eles caçam sempre. Eu quero saber o que substitui o sangue. - O rosto de Deeds se espanta com aquilo em um sessão de pés tremendo e pernas cruzadas e os olhos um pouco esbugalhados.<br />
William percebe que está quase entregando o jogo, e recobra-se, consertando:<br />
- É para uma pesquisa de um cursinho que estou fazendo, aproveitando a aula, não têm pessoa melhor para perguntar a respeito do que meu próprio professor.<br />
Aquele espanto vai embora e William respira por dentro em sinal de alívio.<br />
- Ah e porque não disse antes? Tome pegue isto. - Atrás deles há uma estante de livros e ele deda um e puxa com o indicador, ele cai sobre a palma de sua mão, logo, ele estica para dá-lo para Will.<br />
- O que é isto?<br />
- Leia homem!<br />
- Universos de voadores, Vol.1?<br />
- Tudo o que precisa, não somente sobre morcegos mais sobre todo o resto.<br />
Will observa um pouco a capa de couro do livro. E se dá conta de abrir e olhar o sumário para ver onde estava a parte que falava sobre morcegos.<br />
- Página 76, tipos de morcego, alimentações e habitats.<br />
-"<i>Veremos o que eu como, estou com fome a bastante tempo... William, </i><br />
<i>seja bonzinho. Alimente-me."</i><br />
<i><br /></i>
William Bradley estica os pés em cima da mesa de casa, dentro de seu quarto. Não era um castelo como antes, eles haviam queimado aquele, mas era uma casa com uma aparência americana. Os móveis eram atualizados, nada de formações rústicas, era algo sofisticado e caro. Paredes pintadas, não mais madeira. Um forro de gesso no teto. Seu quarto tinha papel de parede, uma família amarela sentada em um sofá - (era isso que jovens daquela época gostavam de assistir.) Ele havia pesquisado sobre aquela época em um laptop depois de terminar o curso de informática quando ingressou de volta à cidade, passou décadas escondido na floresta, e tinha que se adaptar ao núcleo humano novamente. Vendeu o baú de jóias que levou consigo, do castelo, para a floresta. Ele não sabia que as pessoas comprariam aquelas velharias por muito dinheiro, bem mais alto do que comprou, tanto dinheiro que não tinha onde colocar tudo que recebeu.<br />
- Bem vejamos... - Seus polegares circulam a capa do livro, sua mão direita abre e a esquerda vai até a boca para roer as unhas.<br />
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Página 76 -</div>
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Insetívoros<br />
Alimentam-se de mosquitos, mariposas, besouros, baratas e outros insetos, capturando-os em pleno vôo.<br />
<br />
Polinívoros/Nectarívoros<br />
Alimentam-se de néctar, pólen e, às vezes, de parte florais.<br />
<br />
Frugívoros<br />
Alimentam-se basicamente de frutas.<br />
<br />
Carnívoros<br />
Alimentam-se de peixes, rãs, camundongos, aves e outros morcegos.<br />
<br />
Piscívoros<br />
Alimentam principalmente de peixes, mas inclui também em sua dieta crustáceos e insetos.<br />
<br />
Hematófagos<br />
Alimentam exclusivamente de sangue.<br />
<br />
Obs: Há um tipo de morcego que se alimenta de tudo isso. Um alimento substituindo o outro conforme sua necessidade, de alguma forma, é um tipo de anomalia genética e é muito raro acontecer. Estima-se 0000000000000000000000000000000000000000000000000000001% tem chances de ser um morcego assim. Apenas um único animal assim na história foi capturado, analisado e registrado, dando a ele o nome de um personagem fictício do cinema - Sim, Conde Drácula.<br />
E pode ser bem menos que esse valor, pois, com base nos estudos da genética do animal, certamente poderia ter sido fruto de outra união anormal entre animais de diferentes alimentação, tais como:<br />
Hematófagos+frugívoros.<br />
Carnívoros+ Piscívoros.<br />
E etc.<br />
Tentaram fazer um morcego assim, utilizaram um hematólogo, o alimentando com todos os tipos de comida, durou 5 meses até ele ser encontrado em estado vegetativo dentro da gaiola. Estudos disseram que ele não sentia gosto dos alimentos e seu organismo se adaptou, por ora, logo depois rejeitou sentindo uma saudade mútua de sangue.<br />
William rejeitou o resto. Era informação inútil.<br />
- "<i>Então eu só preciso tentar, alimentar normal, sem mais sangue;animal ou humano;nada. Apenas tentar." </i>- Ele pensa.<br />
<br />
Ele estava no Queen's, um restaurante de comida rápida. Sentado uma hora observando o cardápio outra observando o cozinheiro que assava batatas fritas no óleo e as escorria em um escorredor inox. Ele também observava William. E parecia um robô também - observando-o sempre, e assando as batatas sem precisar olhar.<br />
- William, já escolheu amorzinho? - Becky diz. Uma loira de olhos azuis e cabelos relaxados até a cintura. Ela era do tipo "dada à todos", não fazia o tipo de William, até por que ele não tinha um, mas ele precisava se camuflar novamente, então uma namorada era do tipo, "eu sou alguém de família, faço o que jovens fazem, não coloquem seus olhos gordos em mim". Mas aquele cara da fritura, o que raios ele quer? - Will pensa e então coloca o cardápio sobre a mesa e diz a Becky:<br />
- Eu gostaria de comer o que você vai comer, meu amor.<br />
Bradley faz uma análise mental de todo mundo que está ao seu redor em sua mesa:<br />
Comigo estão mais dois casais, Tommy Benn e Jenny Torbes , Lian Silvestein e Camille Noobysin.<br />
Tommy era loiro e tinha olhos castanhos, não era muito de papo. Jenny era a divertida do grupo e rira sobre quase tudo, sua melhor amiga Camille era totalmente ao contrário, usava roupas pretas e não sorrira muito - era surpresa para qualquer amigo quando ela abrira a boca e você podia ver pequenos quadrados metálicos. Eles falavam algo do tipo "Camil você usa aparelho?", e ela pensava em dá uma resposta curta e grossa como "Claro seu retardado, não vê?, mas a resposta era longe disso, "Sim, faz mais de um ano" - Ela tinha amigos que estavam próximos bem mais que um ano e até eles não sabia da existência desse aparelho. Lian era forte e definido, atraía muitos olhares das outras mesas, garotas das quais olhavam para ele e ele sempre retribuía o favor com uma piscadinha quando Camille não estava olhando. Becky era muito amorosa, se entregava muito fácil a alguém. E é só. Suas curvas são encontradas em qualquer modelo, mas aquele jeito de morder os lábios enquanto fixava os olhos em algo é único.<br />
- Eu preciso ir ao banheiro pessoal, volto já. - Will diz.<br />
- Limpa bem essa bunda! - Lian diz. Tommy apenas olha de lado de um jeito esquisito e ri.<br />
- Não quero mãos sujas de fezes tocando a comida, isso me dá nojo. - Camille diz, e Jenny apenas a observa com um olhar bravo. Becky não liga muito, está ocupada no whatsapp com os amigos e não dá bola para as bobagens que seus amigos dizem.<br />
- O que é? Apenas dei minha opinião... Não pode nem fazer isso agora? - Ela continua com o olhar bravo sobre Jenny mas tudo é apagado com o garçom chegando e puxando de dentro do bolso o seu bloco de pedidos.<br />
- Já se decidiram?<br />
- Batatas fritas e hambúrguer de frango com catupiri. - Tommy diz e olha para Jenny. - E para minha gatinha um frango empanado, não é isso amor? - Ele passa a mão no cabelo dela em um gesto afetivo. Ela afaga as bolas dele por baixo da mesa e ele dá um pulinho sentado. Depois ela anui pra ele com a cabeça.<br />
- Sim e o que mais, vocês três vão querer alguma coisa? - Camille observa o estofado vermelho vivo onde todos estão sentado e diz em um sussurro para si mesmo "eu odeio essa cor". Lian responde por ela que vão querer o mesmo do que os amigos pediram.<br />
- E você mocinha? - Bobbie diz.<br />
Becky ainda estava no cell e não prestou atenção no que Bobbie disse. Tommy estala os dedos diante dela, como um hipnotizador faz para acordar alguém do transe.<br />
- Aê retardada! - Ela acorda daquele mundo virtual e o observa confusamente. - Ele perguntou o que quer.<br />
- Ah sim, me desculpa - ela bate a ponta do celular touch na cabeça de forma patética para simbolizar o quanto estava desleixada. - Vou querer duas sodas de limão e... - ela olha para o cardápio na mesa pela ponta dos olhos, pois ela ainda não tinha se decidido o que realmente iria querer, Will passou a maior parte do tempo com o cardápio, então... - Ela chega a uma conclusão. - Dois hambúrgueres especiais, mas sem muitas ervilhas nos dois.<br />
Bobbie sai andando de costas por um momento e dando a frente para a bancada novamente, abrindo a tábua que servia tanto de porta quanto de mesa no balcão. Some depois da cortina onde dava para a cozinha.<br />
Lian faz uma piadinha de garçom, da qual somente ele ri.<br />
Está lotado naquela noite no Queen's. Pessoas entram e saem constantemente. Afinal a comida saíra em pouco mais de dez minutos, por isso o restaurante era apelidado de "O mais rápido da cidade e gostoso" pelos jornais locais.<br />
Se inicia uma guerra de canudos na mesa entre Tommy e Lian. As garotas conversam sobre roupas e variedades da moda.<br />
O cara que assava as fritas fora substituído porque havia ido ao banheiro e ou talvez fumar um cigarro do lado de fora e não voltou mais, afinal, as coisas não podiam parar, clientes com fome são clientes nervosos e clientes bravos não costumam pagar pelo o que comem, apenas vão embora.<br />
Dentro do banheiro, alguém está imóvel sentado no aparelho sanitário. Suas calças não estão caídas. Suas pernas estão esticadas para ambos os lados.<br />
William está diante do espelho alisando os cabelos para traz. Pelo canto de sua boca uma gotinha de sangue escorre.<br />
"<i>Ótimo Will... Esse é você. Esse somos nós."</i> - Uma breve aura dentro do espelho diz e some. Pensamentos ficam distantes quando alguém bate na porta.<br />
- Ei cara, está com dor de barriga é? A comida já chegou. - Ele reconhece a fala de Tommy de longe, "aquele cabelo loiro partidinho como se fosse uma mulherzinha". - ele pensa.<br />
Tommy abre a porta. - Aê mano que merd# é essa no seu rosto?<br />
- Uma mosquito me picou no rosto cara, apenas.... um patético mosquitinho. - Will pisca para ele depois de dizer. De uma forma convincente. Esperando uma piadinha patética.<br />
- Ainda bem. Porquê se fosse em outro lugar, você não ia gostar. - Ele estende a mão sobre o ombro de William Bradley. Os dois saem do banheiro como se fossem irmãos, ligados pelo braço nas costas.<br />
Dickinson está sentado no aparelho olhando para a luz, sua garganta totalmente dilacerada. Embora fosse negro, naquele momento, ninguém podia dizer como era seu tom de pele. Estava um tom adoecido.<br />
Will repete a frase em seu consciente.<br />
-"<i>Apenas um mosquitinho patético".</i> - dessa vez, ele ri incontrolavelmente entrelaçado com Tommy, o apertando forte. Tommy ri de volta para ele, inocentemente.<br />
<blockquote class="tr_bq">
- <i>"</i><i>O próximo será você Tommy."</i></blockquote>
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- continua...<br />
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30/09/15 - Próxima postagem amanhã, dia 01/10/15.<br />
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Uma boa noite.</div>
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....</div>
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Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-49405738204000351042015-09-27T22:17:00.001-03:002015-09-27T22:17:10.940-03:00Caminhões - Stephen king's short story - <br />
O nome do sujeito era Snodgrass e percebi que se aprontava para fazer alguma
maluquice. Arregalara os olhos, mostrando o branco, como um cão prestes a brigar. Os dois
garotos que entraram derrapando no estacionamento com um velho Fury tentavam falar com
ele, que mantinha a cabeça inclinada para um lado como se estivesse ouvindo outras vozes.
Tinha uma barriguinha de chope que aparecia sob o terno de boa qualidade que já estava
começando a ficar brilhante nos fundilhos das calças. Era um vendedor e mantinha a maleta
de amostras perto de si, como um cão de estimação adormecido.
― Tente o rádio outra vez ― disse o motorista de caminhão sentado ao balcão.
O cozinheiro de minutas sacudiu os ombros e ligou o rádio. Tentou sintonizá-lo em
toda a faixa de ondas, mas só conseguiu captar estática.
― Passou muito depressa ― protestou o motorista de caminhão. Pode ter saltado
alguma estação.
― Diabo ― resmungou o cozinheiro.
Era um negro idoso com um sorriso de dentes de ouro e não encarava o motorista.
Olhava para o estacionamento através do janelão que ia de ponta a ponta da
lanchonete.
Lá fora estavam sete ou oito caminhões pesados, os motores ligados em baixa
rotação, num rugido preguiçoso como de enormes gatos ronronando. Dois Macks, um
Hemingway e quatro ou cinco Reos. Carretas de transporte interestadual, com inúmeras
placas de licença e antenas flexíveis de radio-transmissores curvadas para trás das cabines.
O Fury dos garotos estava de rodas para cima no final de compridas e curvas marcas
de derrapagem no cascalho do estacionamento. Fora reduzido a um monte de sucata. Na
estrada do desvio para a parada de caminhões estava um Cadillac todo amassado, o
proprietário olhando pelo pára-brisas estilhaçado como um peixe estripado. Óculos com
aros de tartaruga pendiam-lhe de uma das orelhas.
A meio caminho entre o Cadillac e o estacionamento jazia o corpo de uma jovem,
que saltara do carro ao ver que este ia bater. Conseguiu saltar em pé, mas não teve a mínima
chance de escapar. Era a pior de todos, embora estivesse caída de bruços. Uma nuvem de
moscas zumbia sobre ela.
No outro lado da estrada, uma velha camioneta Ford fora jogada através do
guardrail. O acidente ocorrera havia uma hora. Ninguém passara por ali desde então. Da
janela era impossível ver a auto-estrada e o telefone não funcionava.
― Girou depressa demais ― protestou novamente o motorista de caminhão. ―
Você devia...
Foi então que Snodgrass explodiu. Derrubou a mesa ao levantar-se, quebrando
xícaras e provocando uma chuva de açúcar. Seus olhos estavam mais desvairados que
nunca, o queixo caído. Repetia sem parar:
― Temos que cair fora daqui temos-que-cair-fora-daqui temosquecairforadaqui...
O rapaz gritou e sua namorada berrou.
Eu ocupava o tamborete mais próximo à porta e o agarrei pela camisa, mas ele se
soltou com um arranco. Estava totalmente alucinado. Seria capaz de atravessar a porta de
uma caixa-forte de banco.
Bateu a porta e começou a correr pelo cascalho, em direção à vala de drenagem no
lado esquerdo. Dois dos caminhões partiram no seu encalço, os canos de descarga verticais
lançando a escura fumaça de óleo diesel para o céu, as enormes rodas traseiras levantando
uma saraivada de cascalho.
Snodgrass não poderia estar a mais que cinco ou seis passos da orla do
estacionamento plano quando se voltou a fim de olhar para trás, o pavor estampado no
rosto. Seus pés se embaraçavam e ele tropeçou, quase caindo. Recuperou o equilíbrio, mas
já era tarde demais.
Um dos caminhões abriu passagem e o outro atacou, a enorme grade do radiador
brilhando selvagemente ao sol. Snodgrass gritou, um som alto e agudo, quase abafado pelo
forte ronco do pesado Reo.
O caminhão não o derrubou ou arrastou. Na verdade, isto seria melhor. Ao
contrário, lançou-o para cima e para o lado, como uma bola de futebol chutada por um
jogador.
Por um instante, Snodgrass ficou silhuetado contra o céu quente da tarde, como um
espantalho mutilado. Depois, sumiu na vala de drenagem.
Os freios do enorme caminhão assoviaram como o sopro de um dragão, as rodas
dianteiras se travaram, cavando sulcos no cascalho do estacionamento, e o monstro parou
antes que a carreta se desgovernasse. Filho de uma puta.
A garota no reservado gritou. Virei a cabeça e constatei que o motorista de
caminhão apertara o copo com tanta força a ponto de quebrá-lo. Não creio que ele já tivesse
percebido. Leite e gotas de sangue pingavam no balcão.
O cozinheiro negro parecia petrificado junto ao rádio, um pano de pratos na mão,
total perplexidade no rosto. Seus dentes de ouro brilhavam. Por um instante não houve
qualquer ruído exceto o zumbido do relógio elétrico de parede e o ronco do motor do Reo
que voltava para junto dos colegas. Então, a garota começou a chorar e tudo ficou bem ―
ou, ao menos, melhor.
Meu carro estava ao lado da lanchonete, também reduzido a sucata. Era um Camaro
1971 e eu ainda estava pagando as prestações. Mas creio que isso já não fazia diferença.
Não havia ninguém nos caminhões.
O sol brilhava e se refletia nas cabinas vazias. Os volantes giravam sozinhos. Não
se podia pensar muito a respeito. Quem pensasse muito naquilo, enlouqueceria. Como
Snodgrass.
Duas horas se passaram. O sol começou a descer no horizonte. Lá fora, os
caminhões patrulhavam em círculos lentos, ou descrevendo oitos. As luzes de
estacionamen-to e as lanternas se haviam acendido.
Percorri duas vezes o comprimento do balcão, a fim de desenferrujar as pernas, e
depois fui sentar-me num reservado junto à grande janela da frente. Era uma parada de
caminhões típica, próxima à rodovia principal, instalações completas de serviços nos
fundos, com bombas de gasolina e óleo diesel. Os motoristas de caminhão vinham ali para
comerem tortas e tomarem café.
― Moço?
A voz era hesitante.
Virei-me. Eram os dois garotos do Fury. O rapaz aparentava dezenove anos. Tinha
cabelos compridos e uma barba rala, que só agora começava a engrossar. Sua namorada
parecia ainda mais moça.
― Sim?
― O que lhe aconteceu?
Sacudi os ombros.
― Eu vinha para Pelson pela rodovia interestadual ― respondi. ― Um caminhão
vinha atrás de mim ― pude vê-lo de longe pelo retrovisor ― com o pé na tábua. Era
possível escutá-lo a um quilômetro e meio de distância na rodovia. Ultrapassou um
Volkswagen e o jogou para fora da estrada com uma rabada da carreta, da mesma maneira
que a gente joga uma bola de papel para fora da mesa com um peteleco. Pensei que o
caminhão também fosse sair da estrada. Nenhum motorista conseguiria controlar uma
carreta rabeando daquela maneira. Mas não saiu. O Volkswagen capotou seis ou sete vezes
e explodiu. E o caminhão apanhou o próximo carro da mesma forma. Aproximava-se de
mim e tratei de pegar depressa a rampa de saída.
Ri sem entusiasmo, concluindo:
― Vim dar bem numa parada de caminhão, dentre todos os lugares possíveis. Pulei
da frigideira e caí no fogo.
A garota engoliu em seco.
― Vimos um ônibus Greyhound na pista da contramão. Passava... por cima dos
carros.
Explodiu e incendiou-se, mas, antes disso, foi... uma carnificina.
Um ônibus Greyhound. Era novidade ― e ruim.
Lá fora, todos os faróis se acenderam de repente ao mesmo tempo, banhando o
estacionamento numa luz fantasmagórica, sem profundidade. Grunhindo, os caminhões
continuavam a patrulhar de um lado para outro. Os faróis pareciam dar-lhes olhos e, na
crescente penumbra do crepúsculo, as escuras carrocerias das enormes carretas pareciam os
ombros quadrados e encolhidos de gigantes pré-históricos.
O cozinheiro indagou:
― É seguro acender as luzes?
― Acenda e logo saberemos ― repliqueis.
Ele acionou os interruptores e uma série de globos sujos de moscas se acendeu ao
longo do teto. Ao mesmo tempo, um letreiro fluorescente situado lá fora piscou e começou a
anunciarem luzes coloridas: "Parada de Canvnhões & Lanchonete Conant's ― Boa
Comida." Nada aconteceu. Os caminhões prosseguiram o patrulhamento.
― Não consigo entender ― disse o motorista de caminhão, que descera do
tamborete junto ao balcão e andava de um lado para outro, a mão enrolada num grande
lenço vermelho.
― Nunca tive problemas com meu carro. Sempre se portou bem. Parei aqui um
pouco depois de uma hora, para comer um prato de espaguete e acontece isso ― gesticulou
com o braço e a ponta do lenço drapejou como uma bandeira. ― Meu caminhão agora está
lá fora, aquele com a luz traseira esquerda meio apagada. Rodo com ele há seis anos, mas se
eu puser os pés fora daquela porta...
― Isso é só o começo ― disse o cozinheiro, os olhos semicerrados e um tanto
vidrados. A coisa deve estar feia, se o rádio parou de funcionar. É apenas o começo.
A garota estava branca como leite.
― Isso não interessa ― disse eu ao cozinheiro. ― Pelo menos por enquanto.
― O que causaria isso? ― indagou o motorista de caminhão, preocupado. ―
Tempestades elétricas na atmosfera? Testes nucleares? O quê?
― Talvez estejam zangados ― respondi.
Por volta das sete horas, aproximei-me do cozinheiro.
― Em que condições estamos aqui? Quero dizer, se precisarmos permanecer por
algum tempo.
Ele franziu a testa.
― Não muito mal. Ontem foi dia de entregas. Recebemos trezentos bifes para
hambúrgueres, frutas e legumes em conserva, cereais, ovos... só temos o leite que está na
geladeira, mas a água é do poço. Se for preciso, nós cinco poderemos ficar aqui mais ou
menos um mês.
O motorista de caminhão se aproximou e piscou para nós.
― Meus cigarros acabaram. Ora, aquela máquina de cigarros...
― A máquina não é minha ― disse o cozinheiro. ― Não, senhor.
O motorista trazia consigo uma barra de aço que pegara no depósito dos fundos.
Começou a trabalhar na máquina de cigarros.
O rapaz encaminhou-se à iluminada vitrola automática e enfiou uma moeda na
fenda.
John Fogarty começou a cantar sobre ter nascido no bayou.
Sentei-me e olhei pela janela. Avistei imediatamente algo que não me agradou.
Uma leve pick-up Chevrolet juntara-se à patrulha, como um pônei em meio a grandes
cavalos de tração. Observei-a até que ela passou imparcialmente sobre o cadáver da moça
do Cadillac. Então, desviei o olhar.
― Eu os fabriquei! ― gritou a garota com súbito desespero. ― Eles tão podem!
O namorado mandou-a calar a boca. O motorista conseguiu arrombar a máquina de
cigarros e pegou seis ou oito maços de Viceroy. Distribuiu-os por diversos bolsos e depois
abriu um maço. Pela expressão de seu rosto, fiquei em dúvida se ele pretendia fumar os
cigarros ou comê-los.
Outro disco começou a tocar na vitrola automática. Às oito e meia, a energia
elétrica acabou.
Quando as luzes se apagaram, a garota gritou ― um grito que cessou bruscamente
quando o namorado lhe tapou a boca com a mão. O som da vitrola morreu num lamento
grave e arrastado.
― Que diabo! ― disse o motorista de caminhão.
― Cozinheiro! ― chamei. ― Tem velas?
― Acho que sim. Espere... sim, aqui estão algumas.
Levantei-me e fui pegar as velas. Depois de acendê-las, começamos a distribuí-las
pelo salão.
― Tomem cuidado ― adverti. ― Se incendiarmos este lugar, será o diabo.
O cozinheiro soltou uma risadinha soturna:
― Você deve saber.
Quando acabamos de colocar as velas, o garoto e a namorada estavam encolhidos,
muito juntos, e o motorista se postara à porta dos fundos, observando mais seis caminhões
pesados que ziguezagueavam por entre as ilhas de concreto onde se situavam as bombas de
gasolina e óleo diesel.
― Isto altera a situação, não é mesmo? ― perguntei.
― Exatamente, se a energia acabou de vez.
― Até que ponto?
― A carne estragará dentro de três dias. Os ovos também. As latas e os cereais não
serão problema. Mas isto não é o pior. Sem a bomba, não teremos água.
― Por quanto tempo?
― Sem a bomba? Temos água para uma semana.
― Encha todo o vasilhame que encontrar, até esvaziar a caixa. Onde ficam os
sanitários?
Há água potável nas caixas.
― O banheiro dos empregados é aí nos fundos. Mas será preciso sair para chegar
aos banheiros dos fregueses.
― Lá no prédio do posto de serviço?
Eu não estava preparado para aquilo. Ainda não.
― Não. Basta sair pela porta lateral e andar ao longo da parede.
― Arranje-me dois baldes.
Ele me trouxe dois baldes galvanizados. O rapaz se aproximou.
― Que estão fazendo?
― Precisamos de água. Toda a que conseguirmos.
― Então, arranje-me um balde.
Entreguei-lhe um dos meus.
― Jerry! ― gritou a pequena. ― Você...
Ele olhou para ela, que calou a boca mas pegou um guardanapo de papel e começou
a rasgá-lo nas pontas. O motorista de caminhão fumava um cigarro e sorria para o chão.
Não disse nada.
Fomos à porta lateral pela qual eu entrara naquela tarde e paramos por um instante,
observando as sombras que se movimentavam com o deslocamento dos caminhões.
― Agora? ― perguntou o rapaz.
Seu braço roçou no meu e os músculos saltavam e vibravam como arames
retesados. Se alguém lhe esbarrasse, ele subiria direto para o céu.
― Relaxe ― disse-lhe eu.
Ele sorriu de leve. Um sorriso amarelo, mas melhor que nada.
― Tudo bem.
Esgueiramo-nos para fora.
O ar da noite refrescara. Grilos cantavam no capim e sapos coaxavam na vala de
drenagem. Lá fora, o ronco dos caminhões era mais alto e ameaçador, o ronco de feras.
De dentro, parecia um filme. Aqui fora, era real; a gente podia ser morto.
Deslizamos ao longo da parede lateral de azulejos. Um pequeno beiral
proporcionava-nos alguma sombra. Meu Camaro estava imprensado contra a cerca em
frente a nós, a luz fraca do letreiro à beira da estrada refletindo-se no metal e nas poças de
gasolina e óleo.
― Vá ao banheiro das mulheres ― sussurrei. ― Encha o balde com a água da caixa
da privada e espere.
O ronco dos motores diesel não se alterara. Era engraçado: tínhamos a impressão de
que os caminhões se aproximavam, mas eram apenas os ecos provocados pelas paredes. A
distância até os banheiros era apenas seis metros, mas parecia muito maior.
Ele abriu a porta do banheiro das senhoras e entrou. Passei pela porta e logo entrei
no banheiro dos homens. Senti os músculos se relaxarem e soltei o ar dos pulmões num
assovio. Avistei-me de relance no espelho, um rosto pálido e tenso, com olhos escuros.
Tirei a tampa de louça da caixa da privada e enchi o balde. Derramei um pouco de
água de volta à caixa, para evitar que se entornasse com o movimento do balde e fui até a
porta.
― Ei!
― Sim? ― sussurrou ele.
― Está pronto?
― Estou.
Tomamos a sair. Demos talvez seis passos antes que os faróis nos incidissem no
rosto.
O caminhão se aproximara sorrateiramente, os grandes pneus quase não rodando
sobre o cascalho. Estava à espera e agora saltava contra nós, as lâmpadas elétricas dos faróis
brilhando em círculos selvagens, a enorme grade cromada do radiador parecendo rosnar.
O rapaz ficou petrificado, o pavor estampado no rosto, os olhos inexpressivos, as
pupilas contraídas ao tamanho de cabeças de alfinete. Dei-lhe um forte empurrão,
derramando metade da água do seu balde.
― Corra!
O trovão daquele motor diesel se transformou num grito agudo. Estendi o braço por
cima do ombro do rapaz, a fim de abrir a porta, mas antes que eu pudesse alcançá-la ela foi
aberta por dentro. O garoto mergulhou por ela e eu o segui de perto. Olhei para trás a fim de
ver o caminhão ― um enorme Peterbilt ― beijar de raspão a parede externa azulejada,
arrancando trechos irregulares do azulejo. Escutei um barulho de atordoar os ouvidos, como
dedos gigantescos arranhando um quadro-negro. Então, o pára-lamas dianteiro e o canto da
grade do radiador bateram na porta ainda aberta, lançando uma chuva de estilhaços de vidro
blindado e quebrando as dobradiças de aço inoxidável como se rasgassem papel higiênico.
A porta voou pela noite como algo num quadro de Dali e o caminhão acelerou o motor em
direção ao estacionamento da frente, o escapamento pipocando como uma rajada de
metralhadora. Produzia um som raivoso de desapontamento.
O garoto colocou o balde no chão e se deixou cair nos braços da namorada, trêmulo.
Meu coração batia com força no peito e minhas pernas pareciam feitas de água. E,
por falar em água, tínhamos conseguido voltar com o total de um balde e um quarto. Mal
parecia valer o risco.
― Quero bloquear aquela porta ― disse eu ao cozinheiro. ― Como o faremos?
― Bem...
O motorista do caminhão interpôs:
― Por quê? Um daqueles caminhões enormes não conseguiria enfiar uma roda por
ali.
― Não são os enormes caminhões que me preocupam.
O motorista começou a procurar um cigarro nos bolsos.
― Temos algumas folhas de zinco no depósito de suprimentos ― disse o
cozinheiro. ― O patrão ia fazer um barracão para guardar o gás de butano.
― Vamos tapar a porta com elas e escorá-las com os cavaletes dos reservados.
― Isso ajudará ― concordou o motorista.
O trabalho durou cerca de uma hora e, no final, todos nós participamos dele,
inclusive a garota. O resultado foi razoavelmente sólido. Naturalmente, razoavelmente
sólido não seria o bastante se algo batesse ali a toda a velocidade. Creio que todos nós
tínhamos consciência disto.
Ainda restavam três reservados alinhados ao longo da grande janela da frente e
sentei-me num deles. O relógio na parede atrás do balcão parara às 8:32, mas calculei que
devia ser dez horas. Lá fora, o caminhão rondava, roncando. Alguns partiram com destino
ignorado, para cumprirem outras missões; outros haviam chegado. Agora, havia três pickups
circulando com ar importante entre seus irmãos maiores.
Comecei a cochilar e, em vez de contar carneiros, contei caminhões. Quantos havia
no Estado? Quantos no país? Carretas, pick-ups, pranchões, basculantes, caminhões
comuns, caminhões militares, caminhões às dezenas de milhares. E ônibus. A visão de
pesadelo de um ônibus urbano, duas rodas na sarjeta e duas na calçada, rugindo e ceifando
os pedestres apavorados como se fossem pinos de boliche.
Livrei-me da idéia, estremecendo, e caí num sono leve e intranqüilo.
Devia ser alta madrugada quando Snodgrass começou a gritar. A fina lua nova se
erguera no céu e brilhava geladamente através de uma alta camada de nuvens. Um novo
som se juntara ao barulho lá fora, fazendo contraponto ao rugido grave e preguiçoso dos
grandes caminhões. Olhei para lá e avistei uma enfardadeira de feno circulando perto do
letreiro apagado. O luar se refletia nos cones afiados do rolo giratório.
O grito veio outra vez, inequivocamente da vala de drenagem:
― Socorro... socorro!
― Que foi isso?
Era a garota quem perguntava. Nas sombras, seus olhos estavam esbugalhados e ela
parecia terrivelmente assustada.
― Nada ― respondi.
― Socorro... socorro!
― Ele está vivo ― sussurrou a pequena. ― Oh, Deus, está vivo.
Eu não precisava vê-lo. Podia imaginá-lo perfeitamente bem. Snodgrass caído meio
para dentro e meio para fora da vala de drenagem, a espinha e as pernas quebradas, o terno
cuidadosamente passado sujo de lama, o rosto pálido e arquejante voltado para a lua
indiferente...
― Não escutei nada ― declarei. ― Você escutou?
Ela me encarou:
― Como pode ser capaz disto? Como?
― Ora, se você o acordasse, ele talvez escutasse alguma coisa repliquei, esticando o
polegar na direção do rapaz. ― Talvez ele fosse até lá. Você gostaria?
Suas feições começaram a tremer e contrair-se, como se costuradas por uma agulha
invisível.
― Nada ― disse ela. ― Não há nada lá fora.
Voltou para perto do namorado e apoiou a cabeça no peito dele. Mesmo
adormecido, ele a abraçou.
Ninguém mais acordou. Snodgrass gritou, chorou e berrou durante muito tempo.
Depois, parou.
Raiar do dia.
Outro caminhão chegou, uma enorme jamanta para transporte de automóveis. Logo
um trator tipo bulldozer se juntou a ele. Aquilo me assustou.
O motorista de caminhão se aproximou e me beliscou o braço.
― Venha até os fundos ― sussurrou, excitado. Os outros ainda dormiam. ― Venha
ver uma coisa.
Acompanhei-o ao depósito de suprimentos. Lá fora, cerca de dez caminhões
patrulhavam a parte dos fundos. A princípio, não percebi qualquer novidade.
― Está vendo? ― perguntou ele, apontando. ― Bem ali.
Então, eu vi. Uma das pick-ups estava parada. Imóvel como uma pedra; desprovida
de toda e qualquer ameaça.
― Sem combustível?
― Exato, companheiro. E eles não podem reabastecer-se sozinhos. Ganhamos a
parada.
Tudo que temos a fazer é esperar.
Sorriu e pegou um cigarro.
Era cerca de nove horas e eu comia um pedaço do pastelão da véspera à guisa de
café da manhã quando a buzina de ar comprimido começou ― toques prolongados e
agudos, que sacudiam o cérebro da gente. Fomos às janelas e olhamos para fora. Os
caminhões estavam imóveis, os motores em marcha-lenta. Uma enorme carreta Reo com
cabine vermelha viera quase até a estreita faixa de grama que separava a lanchonete do
estacionamento. Àquela distância, a grade quadrada do radiador era imensa e assassina.
Os pneus eram da altura do peito de um homem.
A buzina tornou a soar; toques agudos e famintos, que viajavam em linha reta e
ecoavam de volta. Havia um padrão definido. Curtos e longos, em alguma espécie de ritmo.
― Isso é código Morse! ― exclamou de repente o rapaz, que se chamava Jerry.
O motorista de caminhão se voltou para ele:
― Como sabe?
O rapaz corou um pouco:
― Aprendi na tropa de escoteiros.
― Você? ― perguntou o motorista. ― Você? Puxa!
E sacudiu a cabeça.
― Não interessa ― interpus. ― Lembra-se o suficiente para...
― Claro. Deixem-me escutar. Têm um lápis?
O cozinheiro entregou-lhe um lápis e ele começou a escrever letras num guardanapo
de papel. Depois de algum tempo, parou de escrever.
― Está apenas repetindo incessantemente a palavra "Atenção." Esperem.
Esperamos. A buzina continuava a emitir toques longos e curtos no ar silencioso da
manhã. Então, o padrão se alterou e o rapaz recomeçou a escrever. Debruçados por cima de
seus ombros, vimosa mensagem tomar forma: "Alguém deve bombear combustível.
Esse alguém não será molestado. Todo o combustível deve ser bombeado. Isso será
feito agora. Alguém tem que bombear combustível agora."
Os toques de buzina continuaram, mas o rapaz parou de escrever.
― Está apenas repetindo "Atenção", outra vez ― informou ele.
O caminhão repetiu inúmeras vezes a mensagem. Não gostei do aspecto das
palavras, escritas no guardanapo com letras de forma. Pareciam máquinas, impiedosas,
implacáveis. Não haveria meio-termo com aquelas palavras. A gente obedecia, ou não.
― Bem ― disse o rapaz ―, o que faremos?
― Nada ― replicou o motorista de caminhão.
Tinha o rosto excitado, mudando constantemente de expressão.
― Só precisamos esperar ― prosseguiu. ― Todos eles devem ter pouco
combustível. Um dos pequenos já parou, lá nos fundos. Só precisamos...
A buzina cessou. O caminhão deu marcha à ré, juntando-se aos colegas.
Aguardavam em semicírculo, com os faróis apontados para nós.
― Há um bufdozer lá fora ― anunciei.
Jerry olhou para mim:
― Acha que demolirão o prédio?
― Sim.
Ele olhou para o cozinheiro.
― Não podem fazer isso, podem?
O cozinheiro sacudiu os ombros.
― Devemos votar ― disse o motorista. ― Nada de chantagem, com os diabos! Só
precisamos esperar.
Era a terceira vez que repetia aquela frase, como um encantamento:
― Muito bem ― repliquei. ― Vote.
― Espere ― disse imediatamente o motorista.
― Acho que devemos reabastecê-los ― declarei. ― Podemos esperar por uma
oportunidade melhor de fugirmos. Cozinheiro?
― Ficamos aqui dentro ― respondeu ele. ― Querem ser escravos deles? É isso que
acabará acontecendo. Querem passar o resto da vida trocando filtros de óleo cada vez que...
uma daquelas coisas tocar a buzina? Eu não.
Olhou sombriamente pela janela, concluindo:
― Eles que fiquem sem combustível.
Olhei para o rapaz e a moça.
― Acho que ele tem razão ― disse Jerry. ― É a única maneira de detê-los. Se
alguém fosse socorrer-nos, já teria chegado. Deus sabe o que está acontecendo em outros
lugares.
E a garota, com Snodgrass no olhar, confirmou com a cabeça e aconchegou-se ao
rapaz.
― É isso aí, então ― disse eu.
Fui à máquina de cigarros e peguei um maço sem olhar a marca. Havia um ano que
eu deixara de fumar, mas aquela me parecia uma boa ocasião para recomeçar. A fumaça me
ardeu nos pulmões.
Vinte minutos se passaram. Os caminhões aguardavam lá fora. Nos fundos,
começavam a fazer filas nas bombas de combustível.
― Acho que foi tudo um blefe ― disse o motorista de caminhão. Apenas...
Então, soou um ronco mais alto, áspero e sincopado, o rugido de um motor se
acelerando, diminuindo e tornando a acelerar-se. O bufdozer.
Brilhava ao sol como uma jaqueta amarela, um Caterpillar com barulhentas esteiras
de aço. Vomitava fumaça negra pelo cano de descarga vertical ao girar para ficar de frente
para nós.
― Vai atacar ― disse o motorista, com uma expressão de total surpresa estampada
no rosto. ― Vai atacar!
― Recuem ― disse eu. ― Para trás do balcão.
O trator ainda acelerava o motor. As alavancas de controle movimentavam-se
sozinhas.
De repente, a lâmina se ergueu, uma pesada curva de aço com torrões de terra
ressecados. O calor fazia tremer o ar acima do cano de descarga em chaminé. Com um
tremendo rugido de poder, o bulldozer avançou diretamente para nós.
― O balcão! ― gritei, dando um empurrão no motorista de caminhão.
Todos se moveram a um só tempo.
Havia uma estreita calçada de concreto entre a grama e o cascalho do
estacionamento. O trator avançou por cima dela, erguendo momentaneamente a lâmina, e
depois esbarrou de frente na parede. A vidraça explodiu para dentro com um barulho
estrondoso de tosse e a esquadria de madeira rompeu-se em lascas. Um dos globos do teto
caiu, espalhando mais vidro partido. A louça caía das prateleiras. A garota gritava mas o
som quase se perdia sob o rugido constante e poderoso do Caterpillar.
O trator deu marcha à ré, passando ruidosamente pela castigada faixa de grama, e
tornou a ataca, deslocando e espatifando os reservados que restavam. A vitrine de salgadinhos
caiu do balcão, lançando pedaços de pastelão a rodopiarem pelo chão.
O cozinheiro estava agachado com os olhos fechados e o rapaz abraçava a garota. O
motorista tinha os olhos esbugalhados de pavor.
― Precisamos detê-los ― balbuciou ele. ― Diga-lhes que obedeceremos, que
faremos tudo...
― Um pouco tarde demais, não acha?
O Caterpillar tornou a recuar, preparando-se para nova carga. Novos arranhões em
suas lâminas brilhavam ao sol. Tomou a avançar com um tremendo rugido e, desta feita,
derrubou a coluna situada à esquerda do que antes era a janela. Aquela parte do telhado ruiu
estrondosamente, levantando uma nuvem de pó de reboco.
O trator recuou, libertando-se dos escombros. Atrás dele, vi o grupo de caminhões
que aguardavam o resultado.
Agarrei o cozinheiro.
― Onde estão os barris de óleo?
Os fogões da cozinha funcionavam a gás de butano contido em botijões, mas eu vira
os duetos de uma fornalha de aquecimento ambiente.
― Nos fundos do depósito ― disse ele.
Segurei o braço do rapaz.
― Venha comigo.
Levantamo-nos e corremos para o depósito. O trator tornou a atacar e o prédio
estremeceu. Mais duas ou três investidas e o Caterpillar conseguiria chegar ao balcão para
tomar uma xícara de café.
Havia dois grandes tambores de óleo com saídas para a fornalha e torneiras de
controle.
Perto da porta dos fundos estava uma caixa com vidros de suco de tomate vazios.
― Pegue aqueles vidros, Jerry.
Enquanto ele obedecia, tirei a camisa e rasguei-a em tiras. O trator continuava a
atacar, cada investida acompanhada pelo barulho de mais destruição.
Usei as torneiras para encher quatro vidros e Jerry enfiou nos gargalos tiras da
camisa.
― Joga futebol? ― perguntei.
― Joguei no ginásio.
― Muito bem. Faça de conta que está avançando para a linha de gol.
Voltamos à lanchonete. Toda a parede da frente estava aberta ao ar livre. Cacos de
vidro faiscavam como diamantes. Uma pesada viga caíra diagonalmente através da abertura.
O trator recuava para retirá-la e refleti que desta vez ele viria sem parar, arrancando
os tamboretes e demolindo o próprio balcão.
Ajoelhamo-nos, estendendo as garrafas.
― Acenda ― disse eu ao motorista.
Ele tirou os fósforos do bolso, mas suas mãos tremiam tanto que os deixaram cair
ao chão. O cozinheiro os apanhou, riscou um e as tiras de camisa se incendiaram.
― Depressa ― disse eu.
Corremos, o rapaz um pouco à frente. Cacos de vidro estalavam sob nossos sapatos.
Um cheiro quente de óleo pairava no ar. Tudo parecia muito nítido e audível.
O trator avançou.
O rapaz esgueirou-se sob a viga e ficou silhuetado em frente da pesada lâmina de
aço temperado. Fui para a direita. O primeiro lançamento de Jerry foi curto. O segundo
atingiu a lâmina e as chamas se espalharam inofensivamente.
Ele tentou dar meia-volta mas o bulldozer o alcançou, como um rolo compressor
com quatro toneladas de aço. O rapaz levantou os braços e desapareceu, esmagado.
Fiz um giro e atirei um dos vidros na cabine aberta e o outro no motor. Ambos
explodiram ao mesmo tempo, numa enorme cortina de chamas.
Por um instante, o barulho do motor do bulldozer ergueu-se num grito quase
humano de dor e raiva. O trator descreveu uma curva louca, destruindo o canto esquerdo da
lanchonete, e se dirigiu, como um bêbado, para a vala de drenagem.
As lagartas de aço estavam sujas de sangue e onde o rapaz estivera existia algo
semelhante a uma toalha amarrotada e embolada.
O trator quase chegou à vaia, com as labaredas saindo por baixo do capô do motor e
do interior da cabine. Então, explodiu num gêiser de fogo.
Recuei e quase tombei sobre uma pilha de escombros. Senti um cheiro quente que
não era só de óleo. Cabelos incendiados. Eu estava em chamas.
Agarrei uma toalha de mesa, comprimi-a contra a cabeça, corri para trás do balcão e
mergulhei a cabeça na pia com força suficiente para rachar o fundo. A pequena gritava
incessantemente o nome de Jerry, numa litania aguda e insana.
Virei-me e vi a imensa jamanta avançando lentamente contra a indefesa frente da
lanchonete.
O motorista de caminhão gritou e correu para a porta lateral.
― Não! ― berrou o cozinheiro. ― Não faça isso...
Mas o motorista passou pela porta e correu na direção da vala de drenagem, em
direção ao campo aberto existente além desta.
O caminhão devia estar de sentinela fora do campo de visão daquela porta lateral ―
um pequeno furgão com o letreiro "Lavanderia Wong" pintado na parte do lado. Atropelou
o motorista antes que nos déssemos conta disso. Então, foi-se e só o motorista ficou,
contorcido no cascalho. Seus sapatos tinham sido atirados à distância.
A jamanta avançou vagarosamente através da faixa de concreto e da grama,
passando sobre os restos mortais do rapaz e parando com o enorme focinho enfiado na
lanchonete.
A buzina de ar emitiu um súbito e ensurdecedor toque agudo, seguido por outro e
mais outro.
― Pare! ― choramingou a garota. ― Pare... oh, por favor, pare!
Mas as buzinadas prosseguiram durante muito tempo. Levei apenas um minuto para
identificar o ritmo. Era o mesmo de antes: a jamanta queria combustível para si e seus
colegas.
― Eu irei ― disse eu ao cozinheiro. ― As bombas estão destrancadas? O
cozinheiro meneou afirmativamente a cabeça. Parecia ter envelhecido cinqüenta anos.
― Não! ― gritou a pequena, atirando-se sobre mim. ― Você tem que detê-los!
Quebre-os, incendeie-os...
Sua voz tremeu e morreu na garganta, produzindo um engasgado soluço de dor e
tristeza.
O cozinheiro segurou-a. Contornei a extremidade do balcão, abrindo caminho por
entre as ruínas, e saí pela porta dos fundos do depósito de suprimentos. Meu coração batia
com muita força quando saí para o sol quente. Queria outro cigarro, mas não se fuma perto
de bombas de combustível.
Os caminhões continuavam alinhados em fila. O furgão da lavanderia postara-se em
frente a mim, no outro lado do cascalho, observando-me como um cão de fila agachado,
rosnando e grunhindo. O menor gesto em falso e ele me esmagaria. O sol se refletia no párabrisa
vazio. Era como olhar para o rosto de um imbecil.
Puxei a alavanca da bomba para a posição "Ligada" e peguei a mangueira;
desatarraxei a tampa do primeiro tanque e comecei a bombear combustível.
Levei meia hora para esvaziar o primeiro tanque subterrâneo e depois fui para a
segunda ilha de bombas. Alternava-me entre gasolina e óleo diesel. Os caminhões
enfileiravam-se interminavelmente. Agora, eu começava a compreender. Começava a ver.
No país inteiro as pessoas faziam a mesma coisa que eu ou jaziam mortas como o motorista
de caminhão, com os sapatos atirados longe e grandes marcas de pneus na barriga
esmagada.
Então, o segundo tanque secou e passei para o terceiro. O sol castigava-me como
uma marreta e minha cabeça principiava a doer por causa dos vapores do combustível.
Tinha calos na pele macia entre o polegar e o indicador. Calos de sangue. Mas os caminhões
nada sabiam a respeito. Saberiam a respeito de tubulações com vazamentos, juntas
queimadas, eixos grimpados, mas não a respeito de calos de sangue, insolação ou
necessidade de gritar. Só precisavam saber uma coisa a respeito de seus antigos donos: eles
sangravam. Nós sangrávamos.
O último tanque se esvaziou e larguei a mangueira no chão. Ainda havia mais
caminhões, formando uma fila que dobrava a esquina do prédio. Virei a cabeça para aliviar
uma cãibra no pescoço e esbugalhei os olhos. A fila saía pela frente do estacionamento e
continuava pela estrada até perder de vista, dupla, tripla. Era como um pesadelo da Los
Angeles Freeway na hora do rush. O horizonte parecia tremer e dançar com os gases de
escapamento; o ar fedia com a poluição.
― Não ― disse eu. ― Acabou o combustível. Até a última gota, pessoal.
Um motor roncou mais forte, pesado, uma vibração que abalava os dentes da gente.
Um enorme caminhão prateado se aproximava, um caminhão-tanque. Trazia escrito na
lateral: "Use Phillips 66 ― O Combustível dos Jatos!"
Uma pesada mangueira caiu da traseira.
Fui até lá, peguei-a, abri a tampa do primeiro tanque subterrâneo e atarraxei a boca
da mangueira. O caminhão começou a bombear combustível para o depósito. O fedor de
petróleo infiltrou-se em mim ― o mesmo cheiro que os dinossauros deviam sentir quando
se atolavam em poças de alcatrão. Enchi os outros dois tanques subterrâneos e voltei ao
trabalho.
Minha consciência começou a falhar até que perdia noção do tempo e do número de
caminhões. Eu desenroscava a tampa, enfiava a mangueira no buraco, bombeava até que o
líquido quente e pesado começasse a transbordar e recolocava a tampa. Os calos de sangue
estouraram e o pus me escorria até os pulsos. A cabeça latejava como um dente podre e o
estômago se revoltava, indefeso contra os vapores fétidos dos hidrocarbonetos.
Eu ia desmaiar. Ia desmaiar e isto seria o meu fim. Continuaria a bombear até cair.
Então, senti as mãos escuras do cozinheiro.
― Vá para dentro ― disse ele. ― Descanse. Cuidarei disto até o anoitecer. Procure
dormir.
Entreguei-lhe a bomba.
Mas não consigo dormir.
A garota está adormecida, estendida no balcão com uma toalha por travesseiro, e
seu rosto não se relaxa nem durante o sono. É o rosto sem tempo, sem idade, da bruxa
guerreira. Vou acordá-la daqui a pouco. Já está anoitecendo e faz cinco horas que o
cozinheiro está lá fora.
E os caminhões ainda continuam a chegar. Olho pela janela quebrada e vejo que
seus faróis se estendem por dois quilômetros e meio, ou mais, cintilando como safiras
amarelas na crescente penumbra. Devem estar enfileirados até a rodovia, talvez além dela.
A garota terá que fazer o seu turno, também. Mostrar-lhe-ei como. Ela vai dizer que
não consegue, mas conseguirá. Quer continuar viva.
Querem ser escravos deles? ― perguntara o cozinheiro. É isso que acabará
acontecendo.
Querem passar o resto da vida trocando filtros de óleo cada vez que uma daquelas
coisas tocar a buzina?
Poderíamos fugir, talvez. Agora, seria fácil chegar à vala de drenagem, do jeito
como eles estão enfileirados. Correr através dos campos, passando pelos locais pantanosos
onde os caminhões atolariam como mastodontes, e ...
... voltar às cavernas!
Desenhar na pedra com carvão. Este é o deus-lua. Isto é uma árvore. Isto é um
caminhão Mack matando um caçador.
Nem mesmo isso. Atualmente, grande parte do mundo está pavimentada. E para
enfrentar os campos e pântanos existem tanques, half-tracks, viaturas equipadas com lasers,
masers, radares guiados pelo calor. Pouco a pouco, eles conseguirão transformar o planeta
no mundo que desejam.
Posso imaginar grandes comboios de caminhões basculantes aterrando o grande
Pântano Okefenokee com areia, bulldozers rasgando os parques nacionais e as florestas,
aplanando a terra, compactando-a numa vasta superfície plana. Então, os caminhões chefes
chegando...
Mas são máquinas. Não importa o que lhes tenha acontecido, a consciência de
massa que tenham adquirido, não se podem reproduzir. Dentro de cinqüenta ou sessenta
anos serão carcaças enferrujadas, desprovidas de toda e qualquer ameaça, sucata imóvel
para ser apedrejada e cuspida pelos homens.
E se fecho os olhos agora, posso ver as linhas de montagem em Detroit, Dearborn,
Youngstown e Mackinac, caminhões novos sendo montados por operários que não batem
cartões de ponto, mas simplesmente caem mortos e são substituídos.
O cozinheiro já está começando a cambalear um pouco. Além disso, é idoso.
Preciso acordar a garota.
Dois aviões deixam rastros de vapor prateado acima do horizonte oriental que vai
escurecendo.
Eu gostaria de acreditar que existem pessoas a bordo deles.Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-70680203379258364882015-09-26T20:03:00.000-03:002015-09-26T20:03:31.759-03:00JERUSALEM'S LOT2 de outubro de 1850<br />
<br />
CARO BONLS,<br />
Como foi bom entrar no hall frio e cheio de correntes de ar aqui em Chapelwaite,
cada osso doendo por causa daquela abominável carruagem, necessitando aliviar de
imediato minha bexiga dilatada ― e ver uma carta endereçada a mim em sua inimitável
garatuja sobre a obscena mesinha de cerejeira junto à porta! Pode ter certeza de que tratei de
decifrá-la tão logo as necessidades do corpo foram satisfeitas (num banheiro friamente
decorado do andar térreo, onde pude ver o hálito transformar-se em vapor diante de meus
olhos).
Alegro-me por saber que você se recobrou do miasma que há tempo lhe atacava os
pulmões, embora lhe assegure que compreendo o dilema moral com que a cura o afetou.
Um abolicionista enfermo curado pelo clima ensolarado da Flórida escravagista!
Ainda assim, Bones, peço-lhe, como um amigo que também penetrou no vale da treva, que
se cuide bem e não se aventure a regressar a Massachusetts até que seu corpo o permita.
Sua esplêndida mente e incisiva pena não nos podem prestar serviços se você for
transformado em pó; e se a zona sulista é saudável para você, não existe nisso uma justiça
poética?
Sim, a casa é tão boa quanto fui levado a acreditar pelos testamenteiros de meu
primo, embora um tanto mais sinistra. Situa-se numa enorme e protuberante ponta de terra a
cerca de cinco quilômetros ao norte de Falmouth e quinze quilômetros ao norte de Portland.
Nos fundos há cerca de um hectare e meio de terra onde o mato cresceu da maneira mais
formidável que se possa imaginar ― juníperos, cipós, arbustos e várias espécies de
trepadeiras sobem selvagemente sobre os pitorescos muros de pedra que separam a
propriedade das terras da municipalidade. Horríveis imitações de estatuária grega espiam
cegamente através do mato emaranhado, do topo de vários cômoros ― na maior parte dos
casos, parecem prestes a se lançarem sobre os passantes. Os gostos de meu primo Stephen
parecem ter variado por toda a faixa entre o inaceitável e o simplesmente horrível. Há uma
esquisita casinha de verão que foi praticamente encoberta pelo sumacre vermelho e um
grotesco relógio de sol no meio do que outrora deve ter sido um jardim. Acrescenta o toque
final de loucura.
Mas a vista da sala de visitas é compensação mais que suficiente; domino um
estonteante panorama das rochas no sopé de Chapelwaite Head e do próprio Atlântico.
Uma enorme janela em forma de sacada arredondada se abre para essa vista, tendo
ao lado uma enorme secretária que lembra um sapo. Será ótimo para o início do romance do
qual venho falando há tanto tempo (sem dúvida cansativamente).
Hoje foi um dia cinzento, com ocasionais pancadas de chuva. Ao olhar para fora,
tudo me parece um estudo em cor de ardósia ― os rochedos, velhos e gastos como o próprio
Tempo, o céu e, naturalmente, o mar que se choca contra as presas de granito lá
embaixo com um som que não é propriamente um som, mas uma vibração ― sinto as ondas
nas solas dos pés enquanto escrevo. A sensação não é de todo desagradável.
Sei que desaprova meus hábitos solitários, caro Bones, mas asseguro-lhe que estou
bem e feliz. Calvin está comigo, prático, calado e confiável como sempre, e tenho certeza de
que em meados da semana teremos colocado tudo em ordem e providenciado as necessárias
entregas da cidade ― e um batalhão de mulheres para começar a tirar a poeira deste lugar!
Terminarei por aqui ― ainda há muitas coisas para ver, aposentos para explorar e,
sem dúvida, mil e uma execráveis peças de mobília a serem examinadas por estes olhos
delicados. Mais uma vez, meus agradecimentos pelo toque familiar proporcionado por sua
carta e por sua perseverante consideração.
Recomende-me à sua esposa e receba minha amizade.
CHARLES.
6 de outubro de 1850
CARO BONES,
Que lugar, este!
Continua a espantar-me ― da mesma forma que as reações dos habitantes da vila
mais próxima à minha mudança para cá. É um lugarejo esquisito, com o pitoresco nome de
Preacher's Comer. Foi lá que Calvin contratou a remessa de nossas provisões semanais.
A outra tarefa, de providenciar um suprimento de lenha suficiente para o inverno,
também foi cumprida. Mas Cal retornou com o semblante sombrio e quando lhe perguntei
qual era a dificuldade, respondeu de modo bastante sério:
― Eles acham que o senhor é louco, Sr. Bones!
Ri e repliquei que talvez tivessem ouvido falar da febre cerebral que me acometeu
depois da morte de minha Sarah ― não há dúvida de que eu disse minhas loucuras naquela
ocasião, como você pode atestar.
Mas Cal protestou que ninguém sabia coisa alguma a meu respeito exceto através de
meu primo Stephen, que contratara os mesmos serviços que estou providenciando agora.
― O que disseram, senhor, foi que qualquer pessoa capaz de morar em Chapelwaite
deve ser louca ou corre o risco de enlouquecer.
Isso me deixou completamente perplexo, como você bem pode imaginar, e indaguei
quem lhe fizera a espantosa comunicação. Cal explicou que fora encaminhado a um
madeireiro rabugento e um tanto embrutecido chamado Thompson, que possui cem hectares
de pinheiros, bétulas e abetos e corta as árvores em toras com o auxilio dos cinco filhos, a
fim de vendê-las às fábricas de papel em Portland e fornecer lenha aos moradores das
redondezas.
Quando Cal, ignorando o estranho preconceito do madeireiro, deu-lhe o endereço
aonde a lenha devia ser entregue, o tal Thompson o encarou boquiaberto e declarou que
enviaria seus filhos com a lenha, em plena luz do dia e pela estrada litorânea.
Cal, aparentemente confundindo meu divertimento com preocupação, apressou-se
em acrescentar que o homem cheirava a uísque barato e passara a dizer tolices sobre um
lugarejo abandonado, os parentes do primo Stephen... e vermes! Cal terminou de tratar o
negócio com um dos filhos de Thompson, o qual, pelo que entendi, também era carrancudo
e não estava muito sóbrio nem perfumado. Depreendo que ocorreu uma reação do mesmo
tipo no próprio lugarejo de Preacher's Corner, na venda local, onde Cal falou com o
proprietário, embora este fosse mais do tipo mexeriqueiro.
Nada disso me preocupou muito; sabemos como os rústicos adoram enriquecer suas
vidas com o cheiro de escândalo e mitos, e suponho que o pobre Stephen e seu lado da
família tenham sido um alvo fácil. Como eu disse a Cal, é mais que provável que um
homem que tombou morto quase no alpendre de sua própria casa tenha provocado fofocas.
A casa, em si, é um espanto constante. Vinte e três cômodos, Bones! Os lambris que
forram os andares superiores e a galeria de retratos estão mofados mas ainda sólidos.
Quando me postei no quarto de dormir de meu falecido primo, no andar de cima,
pude ouvir os ratos correndo por detrás dos lambris; deviam ser grandes, pelo barulho ―
quase como se pessoas andassem ali. Eu detestaria encontrar um deles no escuro; ou mesmo
à luz do dia, por falar nisso. Ainda assim, não notei buracos nem fezes de ratos. Esquisito.
A galeria superior está forrada com maus retratos em molduras que devem valer
uma fortuna. Alguns têm alguma semelhança com Stephen, da maneira como me recordo
dele. Creio que identifiquei corretamente meu Tio Henry Boone e sua esposa Judith; os
outros são desconhecidos. Suponho que um deles talvez seja meu notório avó, Robert.
Entretanto, o lado da família de Stephen é praticamente desconhecido para mim, o
que sinto muitíssimo. O mesmo bom humor que se irradiava das cartas de Stephen para mim
e Sarah, o mesmo brilho de elevada intelectualidade, aparece nesses retratos, por piores que
sejam. Por quantas razões tolas as famílias se dispersam! Um escritório arrombado, palavras
ásperas entre dois irmãos que morreram há três gerações, e descendentes inocentes são
desnecessariamente afastados. Não posso deixar de refletir sobre como foi uma felicidade
você e John Petty conseguirem entrar em contato com Stephen quando tudo parecia indicar
que eu seguiria minha Sarah através dos Portões Celestiais ― e como foi uma infelicidade o
destino nos roubar a oportunidade de nos conhecermos pessoalmente. Como eu adoraria
ouvir Stephen defender as estátuas e móveis de nossos ancestrais!
Contudo, .não permita que eu denigra este local ao extremo. É verdade que o gosto
de Stephen diferia do meu, mas por baixo do verniz das aquisições feitas por ele, existem
peças (muitas delas cobertas com capas nos cômodos superiores) que são verdadeiras obrasprimas.
Camas, mesas e pesados arabescos escuros lavrados em teca e mogno; muitos
dormitórios e salas de recepção, o escritório superior e a pequena sala de visitas possuem
um encanto sombrio. Os assoalhos são de pinho-de-riga que brilha com uma luz interna e
secreta. Aqui existe dignidade; dignidade e o peso dos anos. Ainda não posso dizer que
gosto, mas respeito. Estou ansioso por observar as mudanças que acompanham as
transformações deste clima setentrional.
Cristo, como sou prolixo! Escreva logo, Bones. Relate-me seus progressos e conte-
me as novidades que tem a respeito de Petty e do resto. E, por favor, não cometa o erro de
tentar persuadir qualquer de seus novos conhecidos sulistas a adotarem à força suas opiniões
― consta-me que nem todos eles se contentam em replicar apenas com palavras, como
costuma fazer nosso prolixo amigo Sr. Calhoun.
Seu afetuoso amigo
CHARLES.
16 de outubro de 1850.
CARO RICHARD,
Olá, e como vai você? Tenho pensado freqüentemente em você desde que estabeleci
residência aqui em Chapelwaite e esperado notícias suas ― e agora recebo uma carta de
Bones dizendo-me que me esqueci de deixar meu novo endereço no clube! Fique certo de
que eu lhe escreveria eventualmente, de qualquer modo; já que às vezes me parece que
meus amigos verdadeiros e leais são tudo o que me resta no mundo, isto é certo e
perfeitamente normal. E, meu Deus, como nos espalhamos! Você em Boston, escrevendo
fielmente para The Liberator (ao qual também enviei meu endereço, por falar nisso),
Hanson na Inglaterra, em mais uma de suas malditas excursões, e o pobre Bones na própria
cova dos leões, curando os pulmões.
Tudo por aqui vai correndo tão bem quanto se pode esperar, Dick, e esteja certo de
que lhe farei um relato completo quando não estiver tão pressionado por certos eventos que
vêm ocorrendo ― creio que sua mente jurídica talvez fique bastante intrigada por certos
acontecimentos em Chapelwaite e cercanias.
Nesse ínterim, tenho um favor a lhe pedir, caso você estiver disposto a fazê-lo.
Lembra-se do historiador que me apresentou no banquete do Sr. Clary para levantar fundos
para nossa causa? Creio que se chamava Bigelow. De qualquer forma, ele mencionou que
tinha por hobby colecionar curiosidades históricas e folclóricas referentes exatamente à esta
zona em que estou residindo. O favor, portanto, é o seguinte: poderia você entrar em contato
com ele e indagar que fatos históricos, fragmentos de folclore ou boatos generalizados ― se
existirem ― ele talvez conheça a respeito de um lugarejo abandonado chamado
JERUSALEM'S LOT, próximo a uma vila chamada Preacher's Corner, no Rio Royal? O rio,
em si, é um tributário do Androscoggin e conflui com este a aproximadamente dezoito
quilômetros da foz perto de Chapelwaite. Eu ficaria imensamente grato e, o que é mais
importante, talvez se trate de algo momentoso.
Ao passar os olhos nesta carta, sinto que fui um pouco lacônico com você, Dick,
pelo que me desculpo sinceramente. Fique certo de que me explicarei em breve e, até lá,
envio minhas mais calorosas lembranças a sua esposa, aos seus dois lindos filhos e,
naturalmente, a você também.
Seu afetuoso amigo
CHARLES.
16 de outubro de 1850
CARO BONES,
Tenho algo a lhe contar que parece estranho (e mesmo um pouco inquietante) para
Cal e para mim também ― veja o que pensa a respeito. No mínimo, servirá para diverti-lo
enquanto combate os mosquitos!
Dois dias depois que coloquei no correio minha última carta para você, um grupo de
quatro jovens senhoras veio de Preacher's Comer, sob a supervisão de uma senhora idosa
com fisionomia competente e intimidadora, chamada Sra. Cloris, a fim de colocar a casa em
ordem e remover parte da poeira que me fez espirrar a cada passo. Todas pareciam um
pouco nervosas ao cumprirem suas tarefas; na verdade, uma senhorita assustada emitiu um
gritinho quando entrei na sala de visitas superior enquanto ela fazia a limpeza.
Indaguei à Sra. Cloris quanto a isso (ela limpava o hall do andar térreo com uma
sombria determinação que deixaria você espantado, os cabelos presos num lenço estampado
desbotado) e ela se voltou para mim com ar decidido:
― Elas não gostam da casa. E eu também não gosto, senhor, porque sempre foi uma
casa ruim.
Fiquei boquiaberto ante a resposta inesperada e ela prosseguiu num tom mais suave:
― Não quero dizer que Stephen Boone não fosse uma boa pessoa, porque era;
limpei a casa de quinze em quinze dias, às quintas-feiras, durante todo o tempo em que ele
esteve aqui, da mesma forma que a limpei para seu pai, Sr. Randolph Boone, até que ele e a
esposa desapareceram em 1818. O Sr. Stephen era bondoso e delicado, assim como o senhor
também me parece (perdoe meu modo de falar, mas sou assim mesmo), mas a casa é e
sempre foi ruim; nenhum Boone jamais foi feliz aqui desde que seu avó Robert e o irmão
dele, Philip, brigaram por causa de... (aqui ela fez uma pausa, com ar quase culposo)...
coisas roubadas, em 1789.
Que memória tem essa gente, Bones!
A Sra. Cloris prosseguiu:
― A casa foi construída em infelicidade e tem sido habitada com infelicidade;
derramou-se sangue em seus assoalhos (como talvez você não saiba, Bones, meu Tio
Randolph envolveu-se num acidente na escada do porão que tirou a vida de sua filha
Marcella; depois, suicidou-se numa crise de remorso. O incidente está relatado numa das
cartas que Stephen me escreveu na triste ocasião do aniversário de sua falecida irmã); houve
desaparecimentos e acidentes.
― Tenho trabalhado aqui, Sr. Boone, e não sou cega nem surda. Tenho escutado
sons horríveis nas paredes, senhor, sons horríveis... baques, quedas e, uma vez, um estranho
lamento que parecia mesclado com riso. Fez-me o sangue gelar nas veias. É um lugar
tenebroso, senhor.
E calou-se, talvez temendo haver falado demais.
Quanto a mim, mal sabia se devia ficar ofendido ou divertido, curioso ou
simplesmente realista. Temo que a diversão tenha ganho a parada, naquele dia.
― E de que desconfia, Sra. Cloris? Fantasmas arrastando correntes?
Mas ela se limitou a me fitar de modo estranho.
― Talvez existam fantasmas. Mas aquilo nas paredes não são fantasmas. Não são
fantasmas quem chora e balbucia como os condenados ao inferno, tropeçando e esbarrando
na escuridão. É...
― Vamos, Sra. Cloris ― instei com ela. ― A senhora já chegou a este ponto. Não
pode acabar o que começou?
A mais estranha expressão de terror, ressentimento e ― eu seria capaz de jurar ―
temor religioso passou-lhe pelo rosto.
― Alguns não morrem ― sussurrou ela. ― Alguns continuam vivos nas sombras
do Nada... para servirem a Ele!
E foi o fim. Continuei a espicaçá-la por alguns minutos, mas ela se tornou cada vez
mais obstinada e recusou-se a falar mais. Afinal, desisti, temendo que ela recobrasse o
controle e abandonasse a casa.
Foi o final do episódio, mas ocorreu um segundo na noite seguinte. Calvin acendera
um fogo no térreo e eu estava sentado na sala de visitas, passando os olhos num exemplar da
The Intelligencer e quase cochilando ao som da chuva soprada pelo vento contra as vidraças
da grande janela panorâmica. Sentia-me confortável como só é possível numa noite como
aquela, quando toda a miséria fica lá fora e todo o conforto e calor estão dentro de casa;
todavia, pouco depois Cal surgiu à porta, parecendo excitado e um pouco nervoso.
― Está acordado, senhor? ― indagou.
― Quase ― respondi. ― O que é?
― Encontrei lá em cima algo que acho que o senhor deveria ver replicou ele, com o
mesmo ar de excitação contida.
Levantei-me e o acompanhei. Enquanto subíamos a larga escadaria, Cal disse:
― Eu estava lendo um livro no escritório do andar de cima ― um livro meio
esquisito ― quando escutei um barulho na parede.
― Ratos ― disse eu. ― Foi só isso?
Ele parou no patamar, encarando-me solenemente. O lampião que ele segurava
lançava sombras fantasmagóricas nas cortinas escuras e nos retratos quase invisíveis que
agora pareciam mais zombar que sorrir. Lá fora, o vento se elevou num uivo e amainou com
relutância.
― Não são ratos ― disse Cal. ― Foi um som de baque, um tropeçar por trás das
estantes, depois um horrível gorgolejar... horrível, senhor. Arranhões, como se alguém
tentasse sair... para me atacar!
Bem pode imaginar meu assombro, Bones. Calvin não é do tipo que se entrega a
loucas fantasias da imaginação. Comecei a ter a impressão de que, afinal, havia um mistério
nesta casa ― e, talvez, um mistério muito feio, mesmo.
― E então? ― perguntei.
Tínhamos retomado a caminhada pelo corredor e pude ver a luz do escritório
projetando-se no chão da galeria. Observei-a com alguma trepidação. A noite já não me
parecia confortável.
― O barulho de arranhões cessou. Depois, as pancadas surdas recomeçaram, desta
vez afastando-se de mim. Parei um instante e juro que escutei um riso estranho, quase
inaudível! Fui à estante e comecei a empurrar e puxar, julgando que pudesse haver uma
divisória, ou uma porta secreta.
― Encontrou alguma?
Cal parou à porta do escritório.
― Não... mas encontrei isto!
Entramos e vi um buraco preto, quadrado, na estante esquerda. Naquele ponto, os
livros eram falsos e o que Cal encontrara era um pequeno esconderijo. Iluminei-o com
minha lanterna e vi apenas uma grossa camada de poeira, que devia representar o acúmulo,
de décadas.
― Havia apenas isto ― disse Cal em voz baixa, entregando-me uma folha de papel
amarelado.
Tratava-se de um mapa, desenhado em linhas pretas finas como fios de teia de
aranha ― o mapa de um lugarejo, ou vila. Havia talvez sete prédios e um deles, nitidamente
marcado com uma torre de igreja, trazia a seguinte legenda: O VERME QUE
CORROMPIA.
No canto esquerdo superior, ao que devia ser o noroeste do vilarejo, uma seta
apontava: Chapelwaite.
Calvin disse:
― Na vila, senhor, alguém se referiu supersticiosamente a um lugarejo abandonado
chamado Jerusalem's Lot. É um lugar que todos evitam.
― E isto? ― indaguei, passando o dedo sob a estranha legenda abaixo da torre.
― Não sei.
Uma lembrança da Sra. Cloris, imperiosa e, não obstante, atemorizada, passou-me
pela mente.
― O Verme... ― murmurei.
― Sabe alguma coisa a respeito, Sr. Boone?
― Talvez... Seria divertido procurarmos esse vilarejo amanhã, não acha, Cal?
Ele assentiu, os olhos brilhando. Depois disso, passamos quase uma hora
procurando alguma fenda na parede atrás do pequeno esconderijo encontrado por Cal, mas
sem o menor sucesso. Os ruídos que Cal mencionara não se repetiram.
Naquela noite, fomos dormir sem outras aventuras.
Na manhã seguinte, Cal e eu começamos a andar pelos bosques. A chuva da noite
anterior cessara, mas o céu estava sombrio, com nuvens baixas. Percebi que Cal me olhava
com ar de dúvida e apressei-me em assegurar-lhe que se me cansasse ou se a jornada fosse
muito longa eu não hesitaria em deixar o caso de lado. Equipamo-nos com um lanche, uma
ótima bússola Buckwhite e, naturalmente, o antigo e estranho mapa de Jerusalem's Lot.
Era um dia estranho e sombrio; nenhuma ave parecia piar, nenhum animal parecia
mover-se enquanto avançávamos por entre os escuros troncos dos pinheiros, em direção
sudeste. Os únicos sons eram os de nossos passos e o contínuo quebrar do Atlântico contra
os rochedos do litoral. O cheiro do mar, quase sobrenaturalmente pesado, era nosso
companheiro perene.
Não percorremos mais que três quilômetros quando topamos com uma estrada
quase oculta pelo mato, do tipo que antigamente chamavam "estrada de toros"; ela seguia
em nosso rumo geral e tratamos de segui-la, avançando com rapidez. Falávamos pouco. O
dia silencioso e ameaçador pesava sobre nossos espíritos.
Por volta das onze horas, escutamos o barulho de água corrente. O resto da estrada
fazia uma curva forte para a esquerda e, no outro lado de um riacho pedregoso e espumante,
como uma aparição, estava Jerusalem's Lot!
O riacho teria talvez dois metros e meio de largura, atravessado por uma pinguela
coberta de musgo. No lado oposto, Bones, estava o mais perfeito lugarejo que você poderia
imaginar, compreensivelmente castigado pelo tempo, mas espantosamente preservado.
Várias casas, construídas no estilo austero porém sobranceiro pelo qual os puritanos são
merecidamente famosos, aglomeravam-se junto à margem íngreme do riacho. Mais além, ao
longo de uma rua coberta de mato rasteiro, havia três ou quatro construções que deveriam
ter sido estabelecimentos comerciais e, mais adiante, a torre da igreja marcada no mapa,
erguendo-se para o céu cinzento e parecendo indescritivelmente sinistra, com sua pintura
descascada e a cruz enferrujada inclinada para um lado.
― O lugar merece o nome ― disse Calvin, baixinho, ao meu lado.
Atravessamos a pinguela e começamos a explorar a vila ― e é aqui que meu relato
se torna ligeiramente espantoso, Bones. Portanto, prepare-se!
O ar parecia pesado ao caminharmos entre os prédios; pesado como chumbo. Os
prédios se encontravam em estado de deterioração ― postigos arrancados, telhados ruídos
sob o peso de nevascas passadas, janelas poeirentas e escancaradas. Sombras de cantos
esquisitos e ângulos tortos pareciam formar poças sinistras.
Primeiro, entramos numa velha e apodrecida taverna ― de algum modo, não
parecia correto invadirmos as casas nas quais as pessoas se abrigavam quando queriam
privacidade. Uma velha tabuleta, castigada pelo tempo, pendurada acima da porta rachada
anunciava que ali existira a HOSPEDARIA E TAVERNA CABEÇA DE JAVALI. A porta
se abriu com um rangido infernal do único gonzo que restava e entramos no ambiente
sombrio. O cheiro de mofo e podridão era vaporoso e quase insuportável. Além dele,
parecia haver um cheiro ainda mais profundo, um odor pegajoso e pestilento, um cheiro de
muitos anos e da podridão da idade. Um fedor como o que poderia escapar de caixões
funerários apodrecidos ou de tumbas violadas. Levei o lenço ao nariz e Cal me imitou.
Observamos o local.
― Meu Deus, senhor... ― disse Cal com voz sumida.
― Nunca foi tocado ― terminei por ele.
E, de fato, não fora. Mesas e cadeiras pareciam guardiães fantasmas vigiando o
local, empoeiradas, castigadas pelas extremas alterações de temperaturas pelas quais é
famoso o clima da Nova Inglaterra, mas, exceto isso, perfeitas ― como se tivessem
aguardado durante as décadas silenciosas e cheias de ecos que aqueles que haviam há muito
partido retornassem à taverna para pedirem copos de cerveja ou doses de uísque, jogarem
cartas e acenderem cachimbos de barro. Um pequeno espelho quadrado, inteiro, estava
pendurado junto ao regulamento da casa. Entende o significado, Bones? Os meninos são
famosos por explorarem os locais abandonados e cometerem vandalismos; não existe uma
casa "assombrada" que ainda tenha vidraças intactas, por mais aterrorizante que seja a
reputação dos fantasmas que nela habitam; nenhum cemitério sombrio deixa de ter ao
menos uma das lápides danificadas por meninos travessos. Certamente deve existir em
Preacher's Comer ao menos uma dúzia de meninos travessos, a menos de três quilômetros
de Jerusalem's Lot. Não obstante, a vidraça do taverneiro (que lhe deve ter custado uma boa
nota) estava intacta ― assim como os outros objetos frágeis que encontramos em nossas
explorações do local. Os únicos danos em Jerusalem's Lot foram causados pela Natureza
impessoal. A implicação é óbvia: Jerusalem's Lot é um local evitado por todos. Mas por
quê? Tenho um palpite, mas nem mesmo ouso mencioná-lo; tenho que prosseguir até o
perturbador final de nossa visita.
Subimos aos dormitórios e encontramos as camas feitas, jarras de água feitas de
estanho cuidadosamente arrumadas ao lado delas. A cozinha estava igualmente intocada
exceto pela poeira dos anos e por aquele horrível fedor de apodrecimento. A taverna, em si,
seria o paraíso para um antiquário; só o maravilhosamente exótico fogão alcançaria um belo
preço nos leilões de Boston.
― O que acha, Cal? ― perguntei ao retornarmos à vacilante luz do dia.
― Acho que é algo ruim, Sr. Boone ― replicou ele à sua maneira lúgubre. ― E
creio que devemos ver mais, para ficar sabendo melhor.
Demos pouca atenção às outras lojas ― havia uma loja de celeiro, mofados arreios
de couro ainda pendurados em pregos enferrujados, uma mercearia, um depósito com tábuas
de carvalho e de pinho ainda empilhadas, uma ferraria.
A caminho da igreja no centro do lugarejo, entramos em duas casas. Ambas eram
do mais perfeito estilo puritano, cheias de objetos pelas quais um colecionador daria os
olhos da cara, ambas abandonadas e impregnadas do mesmo fedor podre.
Nada parecia viver ou mover-se nas cercanias exceto nós dois. Não vimos insetos,
aves, nem mesmo uma teia de aranha formada num canto de janela. Só poeira.
Afinal, chegamos à igreja. Erguia-se acima de nós, sinistra, pouco convidativa, fria.
As vidraças estavam negras com a escuridão do interior e qualquer vestígio de Deus ou de
santidade já se afastara há muito tempo. Disso, tenho certeza. Galgamos os degraus e
coloquei a mão na grande aldrava de ferro. Um olhar grave e sombrio passou de mim a
Calvin e foi retribuído. Abri a porta. Quanto tempo se passara desde que eia fora aberta pela
última vez? Eu diria com segurança que era o primeiro a tocá-la em cinqüenta anos; talvez
mais. Dobradiças emperradas pela ferrugem gritaram quando a empurrei. O cheiro de
podridão que nos sufocou era quase palpável. Cal produziu um som engasgado na garganta
e virou involuntariamente a cabeça em busca de ar fresco.
― Senhor ― disse ele ―, tem certeza de que está...?
― Estou bem ― respondi calmamente.
Mas não me sentia calmo, Bones, não reais do que me sinto agora. Acredito,
juntamente com Moisés, Jereboão, e com o nosso Hanson (quando está com disposição
filosófica), que existem lugares espiritualmente nocivos, prédios nos quais o leite do cosmos
se tomou azedo e rançoso. Aquela igreja era um desses locais; eu seria capaz de jurar.
Entramos num comprido vestíbulo equipado com uma empoeirada série de cabides
e prateleiras contendo hinários. Não tinha janelas. Lampiões de azeite ocupavam nichos nas
paredes. Uma sala normal, pensei, até que ouvi Calvin prender bruscamente a respiração e
vi o que ele já notara.
Era uma obscenidade.
Não me atrevo a descrever aquela gravura elaboradamente emoldurada a não ser
para dizer o seguinte: o desenho tinha o estilo carnudo de Rubens; representava um grotesco
travesti de uma madonna com o filho; criaturas estranhas, meio encobertas pelas sombras,
rastejavam ao fundo.
― Meu Deus ― murmurei.
― Não existe Deus aqui ― disse Calvin.
E suas palavras deram a impressão de ficar suspensas no ar.
Abri a porta que dava para a igreja propriamente dita e o fedor se transformou num
miasma quase asfixiante.
À tremeluzente meia-luz da tarde, os bancos se enfileiravam fantasmagoricamente
na direção do altar. Acima deles, um alto púlpito de carvalho e um nártex coberto de
sombras onde rebrilhava ouro.
Com um soluço engasgado, Calvin, um protestante devoto, fez o Sinal da Cruz.
Apressei-me em imitá-lo. Pois o ouro era uma cruz grande, lindamente lavrada ―
mas pendurada de cabeça para baixo, símbolo da Missa de Satã.
― Devemos manter a calma ― escutei minha própria voz dizer. Devemos manter a
calma, Calvin. Devemos manter a calma.
Mas uma sombra me tocara o coração e tive um medo como nunca senti antes.
Passei sob o guarda-chuva da morte e pensava que não existia outro mais escuro. Mas
existe.
Existe.
Caminhamos pela alameda entre os bancos, nossos passos ecoando acima e ao redor
de nós. Deixamos pegadas na poeira. E, no altar, havia outros tenebrosos objetos de arte.
Não deixarei, não posso deixar, que minha mente volte a eles.
Comecei a subir ao púlpito.
― Não, Sr. Boone! ― exclamou Cal de repente. ― Tenho medo...
Mas eu já chegara ao topo. Um enorme livro estava aberto sobre a estante, escrito
tanto em latim como em estranhos caracteres rúnicos que, aos meus olhos inexperientes,
pareciam ser druídicos ou pré-célticos. Anexo um cartão com vários daqueles símbolos,
desenhados de memória.
Fechei o livro e li as palavras gravadas na capa de couro: De Vermis Mysteriis. Meu
latim está enferrujado, mas ainda é capaz de traduzir: Os Mistérios do Verme.
Quando minhas mãos tocaram o livro, aquela maldita igreja e o rosto pálido de
Calvin, erguido para mim, pareceram dançar diante de meus olhos. Tive a impressão de
escutar vozes graves, cantantes, cheias de um temor hediondo e, não obstante, ansioso ― e,
além desse som, um outro que parecia encher as entranhas da Terra. Uma alucinação, sem
dúvida mas, no mesmo momento, a igreja se encheu com um som muito real, que só
consigo descrever como um enorme e macabro giro sob meus pés. O púlpito estremeceu sob
meus dedos; a cruz profanada tremeu na parede.
Saímos juntos, Cal e eu, abandonando o local à sua escuridão, e nenhum de nós
ousou olhar para trás até que atravessamos a tosca pinguela sobre o riacho. Não direi que
maculamos os mil e novecentos anos que o homem gastou para deixar de ser um selvagem
apavorado e supersticioso ao fugirmos dali correndo; contudo, seria um mentiroso se
afirmasse que nos retiramos calmamente.
Eis minha narrativa. Você não deve perturbar sua cura com a idéia de que a febre
me atacou outra vez; Cal pode confirmar tudo o que escrevi nestas páginas, inclusive aquele
barulho horrível.
Portanto, termino aqui, dizendo apenas que gostaria de vê-lo pessoalmente (pois sei
que grande parte de meu assombro se desvaneceria de imediato) e que continuo seu amigo e
admirador.
CHARLES.
17 de outubro de 1850
PREZADOS SENHORIOS:
Na mais recente edição de seu catálogo de artigos domésticos (isto é, Verão de
1850), reparei num preparado de nome Veneno Para Ratos.
Gostaria de adquirir uma (1) lata de dois quilos e meio do referido preparado, ao
preço mencionado de trinta centavos ($ 0,30). Anexo selos para a resposta. Favor endereçar
a:
Calvin McCann, Chapelwaite, Preacher's Corner, Município de Cumberland,
Maine.
Grato por sua atenção ao meu pedido.
Atenciosamente
CALVIN McCANN.
19 de outubro de 1850
CARO BONES,
Acontecimentos de natureza inquietadora.
Os ruídos na casa têm aumentado de intensidade. Estou chegando cada vez mais à
conclusão de que não são apenas ratos que se movem dentro de nossas paredes. Calvin e eu
realizamos outra busca infrutífera, procurando nichos ou passagens ocultas, mas nada
encontramos. Como ficaríamos desajustados num dos romances da Sra. Radcliffe! Cal
alega, porém, que grande parte do ruído vem do porão e é lá que pretendemos dar busca
amanhã. O fato de saber que a irmã do Primo Stephen lá encontrou seu desafortunado fim
não contribui para tranqüilizar-me.
A propósito, o retrato dela está pendurado na galeria superior. Marcella Boone, se o
pintor conseguiu retratá-la com fidelidade, era uma coisinha tristonha e bonita; sei que
morreu solteira. Às vezes, penso que a Sra. Cloris tinha razão: é uma casa ruim.
Certamente não teve outra coisa senão dissabores para seus ocupantes anteriores.
Todavia, tenho mais a dizer quanto à temível Sra. Cloris, pois tive hoje minha
segunda conversa com ela. Na qualidade de pessoa mais equilibrada de Preacher's Comer
que conheci até o momento, fui procurá-la esta tarde, após uma desagradável entrevista que
relatarei a seguir.
A lenha deveria ter sido entregue esta manhã e, quando passou o meio-dia sem que
ela chegasse, resolvi ir ao lugarejo em meu passeio diário. Meu objetivo era visitar
Thompson, o madeireiro com quem Calvin tratou o negócio.
Foi um dia lindo, cheio do vigor brilhante do outono, e quando cheguei à casa dos
Thompson (Cal, que permaneceu em casa para examinar melhor a biblioteca do Tio
Stephen, deu-me a orientação adequada) sentia-me com a melhor disposição que já tive
nestes últimos dias e estava preparado para desculpar o atraso de Thompson na entrega da
lenha.
O local era um maciço emaranhado de mato e prédios arruinados necessitados de
pintura; à esquerda do celeiro, uma enorme porca, cevada para o abate em novembro,
grunhia e fuçava no chiqueiro enlameado; no quintal cheio de lixo entre a casa e os outros
prédios, uma mulher num esfarrapado vestido de tecido riscado jogava às galinhas o milho
que trazia no avental. Quando a saudei, virou para mim um rosto pálido e insípido.
A repentina mudança de expressão, de total vácuo e parvoíce para um terror
frenético foi digna de ser observada. Só posso pensar que ela me tomou pelo próprio
Stephen, pois ergueu a mão com os dedos esticados no sinal de mau-olhado e gritou. A
comida das galinhas se espalhou pelo chão e as aves se asustaram, esvoaçando a cacarejar.
Antes que eu pudesse emitir um som, a figura corpulenta e ameaçadora de um
homem vestido apenas com roupas de baixo compridas saiu pesadamente da casa
empunhando uma espingarda numa das mãos e trazendo um garrafão de bebida na outra.
Pelo brilho avermelhado no olhar e o modo trôpego de andar, deduzi que fosse Thompson, o
madeireiro, em pessoa.
― Um Boone! ― rugiu ele. ― Maldito seja!
Largou o garrafão, que rolou pelo chão, e fez também o sinal de mau-olhado.
Com a maior equanimidade que consegui reunir nas circunstáncias, declarei:
― Vim porque a lenha não foi. Pelo acordo que você fez com meu criado...
― Maldito seja seu criado, também!
E, pela primeira vez, percebi que por detrás da atitude agressiva ele procurava
ocultar um medo mortal. Comecei a temer seriamente que, em sua excitação, ele pudesse
realmente usar a espingarda contra mim. Tentei falar cautelosamente:
― Como um gesto de cortesia, você poderia...
― Maldita seja sua cortesia!
― Muito bem, então ― repliquei com a dignidade que me foi possível. ― Desejolhe
um bom-dia até que consiga controlar-se melhor.
Com isso, dei-lhe as costas e comecei a caminhar em direção ao lugarejo.
― Não volte mais aqui! ― berrou ele atrás de mim. ― Fique com seus demônios,
lá em cima! Maldito! Maldito! Maldito!
Atirou uma pedra que me atingiu o ombro. Não lhe dei a satisfação de esquivar-me.
Portanto, fui procurar a Sra. Cloris, decidido a decifrar ao menos o mistério da
inimizade de Thompson. Ela é viúva (e não me venha com sua conversa de casamenteiro,
Bones; ela tem pelo menos quinze anos mais que eu e já passei dos quarenta) e mora
sozinha num encantador chalé à beira-mar. Encontrei-a pendurando a roupa lavada e ela
pareceu genuinamente satisfeita por ver-me. Constatei que isto foi um grande alívio; é quase
indescritivelmente vexatório ser um pária por motivo incompreensível.
― Sr. Boone ― cumprimentou ela, com uma leve reverência. ― Se veio para tratar
de lavagem de roupa, saiba que não aceito serviço depois de setembro. Meu reumatismo
causa tantas dores que já é sacrifício bastante lavar minha própria roupa.
― Eu gostaria que a lavagem de roupa fosse o assunto de minha visita. Vim pedir
ajuda, Sra. Cloris. Preciso saber tudo que a senhora seja capaz de me contar a respeito de
Chapelwaite e de Jerusalem's Lot, bem como o motivo pelo qual a gente daqui me encara
com tanto temor e desconfiança!
― Jerusalem's Lot! O senhor sabe a respeito disso, então?
― Sim ― respondi. ― E visitei o local com meu companheiro, há uma semana.
― Meu Deus!
Ela ficou branca como leite e cambaleou. Estiquei a mão a fim de ampará-la. Seus
olhos rolavam horrivelmente e, por instante, tive certeza de que ela ia desmaiar.
― Sra. Cloris, sinto muito se disse algo que..
― Entre ― convidou ela. ― O senhor precisa saber. Meu bom Jesus, os dias ruins
voltaram!
Recusou-se a falar até terminar de preparar chá forte em sua cozinha ensolarada.
Quando o chá ficou pronto, ela passou algum tempo a fitar pensativamente o
oceano.
Inevitavelmente, nossos olhares foram atraídos para o promontório de Chapelwaite,
onde a casa dominava o panorama do mar. O grande janelão refletia como um brilhante os
raios do sol poente. Uma vista linda mas estranhamente perturbadora. De repente, ela se
voltou para mim e declarou com veemência:
― Sr. Boone, precisa deixar Chapelwaite imediatamente!
Fiquei perplexo.
― Tem havido um hálito ruim no ar desde que o senhor se mudou para aquela casa.
Na semana passada ― desde que o senhor colocou os pés naquele lugar amaldiçoado ―
aconteceram presságios e portentos. Um epíploo na face da lua; bandos da bacuraus que
fazem ninhos nos cemitérios; um nascimento anormal. O senhor tem que partir!
Quando recobrei a fala, disse da maneira mais suave possível:
― Essas coisas são sonhos, Sra. Cloris. Certamente a senhora deve saber disso.
― É sonho Barbara Brown ter dado à luz uma criança sem olhos? Ou Clifton
Brockett ter encontrado uma trilha plana, com um metro e meio de largura, atravessando os
bosques além de Chapelwaite, na qual todo o mato murchou e se tornou branco? E o senhor,
que visitou Jerusalem's Lot, pode afirmar verdadeiramente que nada ainda vive lá?
Não pude responder; a cena naquela igreja hedionda me surgiu diante dos olhos.
Ela cerrou os punhos enrugados num esforço para acalmar-se.
― Sei dessas coisas não apenas através de minha mãe e da mãe dela. O senhor
conhece a história de sua família no que se relaciona com Chapelwaite?
― Vagamente ― disse eu. ― A casa foi residência dos descendentes de Philip
Boone desde a década de 1780; seu irmão Robert, meu avó, radicou-se em Massachusetts
após uma discussão por causa de documentos roubados. Pouco sei a respeito dos
descendentes de Philip, exceto que a sombra da infelicidade caiu sobre eles, passando de pai
para filho e para os netos ― Marcella morreu num trágico acidente e Stephen caiu para a
morte. Foi seu desejo que Chapelwaite se tornasse minha e dos meus, terminando, assim,
com a briga de família.
― Nunca terminará ― murmurou a Sra. Cloris. ― Nada sabe a respeito da briga
inicial?
― Robert Boone foi apanhado roubando coisas na escrivaninha do irmão.
― Philip Boone era louco ― disse ela. ― Um homem que traficava com o mal. A
coisa que Robert Boone tentou remover da escrivaninha era uma bíblia profana, escrita em
linguagens antigas: latim, druida e outras. Um livro infernal.
― De Vermis Mysterüs.
Ela recuou como se tivesse levado uma bofetada.
― Sabe a respeito?
― Eu o conheço... toquei-o.
Mais uma vez, ela deu a impressão de desmaiar. Levou a mão aos lábios como se
tentasse abafar um grito.
― Sim ― prossegui. ― Em Jerusalem's Lot. No púlpito de uma igreja profanada e
corrupta.
― Ainda está lá; ainda lá, então.
Ela se balançou na cadeira.
― Eu esperava que Deus, em Sua sabedoria, tivesse-o atirado no fundo do inferno.
― Que relação existia entre Philip Boone e Jerusalem's Lot.
― Relação de sangue ― disse ela sombriamente. ― Ele trazia a Marca da Fera,
embora andasse em trajes do Cordeiro. E na noite de 31 de outubro de 1789, Philip Boone
desapareceu... e a população inteira daquele amaldiçoado lugarejo sumiu com ele.
Ela pouco mais disse; com efeito, pouco mais parecia saber. Limitou-se a reiterar
suas súplicas para que eu me fosse, alegando como motivo para isso algo a respeito de
"sangue chamar sangue" e murmurando sobre "aqueles que vigiam e aqueles que guardam" :
À medida que o crepúsculo avançava, ela pareceu mais agitada, em vez de acalmar-se. A
fim de aplacá-la, prometi que seus desejos seriam levados em grande consideração.
Voltei para casa, caminhando entre as sombras que aumentavam, minha boa
disposição bastante dissipada e a cabeça girando com indagações que ainda agora me
perseguem.
Cal recebeu-me com a notícia de que os barulhos em nossas paredes haviam
aumentado ― como posso atestar neste momento. Tento convencer-me de que são apenas
ratos, mas, então, revejo o rosto aterrorizado e ansioso da Sra. Cloris.
A lua se ergueu sobre o oceano, inchada, cheia, cor de sangue, manchando o mar
com uma tonalidade maléfica. Minha mente retoma àquela igreja e (aqui uma linha riscada)
Mas você não verá isso, Bones. É loucura demais. Creio que está na hora de dormir.
Meus pensamentos estão com você.
Lembranças
CHARLES.
(O seguinte foi extraído do diário de bolso de Calvin McCann)
20 de outubro de '50
Esta manhã, tomei a liberdade de forçar o fecho do livro; fiz isso antes que o Sr.
Boone se levantasse da cama. Não adiantou; está tudo em código. Um código simples, creio.
Talvez consiga decifrá-lo com a mesma facilidade que forcei o fecho. Estou certo
de que é um diário, numa caligrafia estranhamente semelhante à do Sr. Boone. De quem era
o livro, na prateleira mais obscura desta biblioteca, com um fecho vedando as páginas?
Parece antigo, mas como é possível afirmar? O ar apodrecedor foi mantido isolado das
páginas. Voltarei ao assunto mais tarde, se houver tempo; o Sr. Boone está decidido a
revistar o porão. Temo que estes terríveis acontecimentos lhe façam mal à saúde ainda
abalada. Devo tentar persuadi-lo a...
Mas aí vem ele.
20 de outubro de 1850
CARO BONES,
Não posse escrever Eu ainda não posso escrever a respeito Eu Eu Eu
(Do diário de bolso de Calvin MeCann)
20 de outubro de 50
Como eu temia, a saúde dele não agüentou...
Meu Deus, Pai nosso que estais no céu!
Não suporto lembrar; não obstante, está enraizado, gravado a fogo em meu cérebro
― aquele horror no porão...!
Agora, estou sozinho; oito e meia da noite; a casa em silêncio, mas...
Encontrei-o desmaiado sobre a escrivaninha; ainda está dormindo; não obstante,
como se portou nobremente enquanto fiquei paralisado, arrasado!
Está pálido como cera, tem a pele fria. Não é a febre outra vez, graças a Deus. Não
me atrevo a movê-lo ou abandoná-lo para ir ao povoado. Se eu fosse, quem voltaria comigo
para ajudá-lo? Quem viria a esta casa amaldiçoada?
Oh, o porão! As coisas naquele porão, que assombram nossas paredes!
22 de outubro de 1850
CARO BONES,
Voltei a mim, embora debilitado, após trinta e seis horas de inconsciência. Voltei a
mim... que pilhéria sinistra e amarga! Jamais voltarei a ser o mesmo ― jamais. Vi-me cara a
cara com uma loucura e um horror que estão além dos limites da expressão humana. E ainda
não chegou o fim.
Se não tosse por Cal, creio que me suicidaria neste momento. Ele é uma ilha de
sanidade em meio a toda esta loucura.
Você saberá de tudo.
Equipamo-nos com velas para explorar o porão e elas produziam um brilho forte
que era bastante adequado ― infernalmente adequado! Calvin tentou dissuadir-me,
mencionando minha recente doença, dizendo que o máximo que encontraríamos talvez fosse
alguns ratos saudáveis marcados para morrer envenenados.
Permaneci decidido, porém; Calvin soltou um suspiro e respondeu:
― Faça como quiser, então, Sr. Boone.
A entrada do porão consiste de um alçapão no chão da cozinha (que Cal me
assevera ter pregado com tábuas fortes desde então) e só conseguimos erguê-lo com grande
esforço.
Um cheiro fétido e avassalador subiu da escuridão, semelhante ao fedor que
impregnava o lugarejo no outro lado do rio Royal. A vela que segurava iluminou uma
escada íngreme que descia para a escuridão. Os degraus se encontravam em lamentável
estado de conservação ― numa certa altura, um deles desaparecera por completo, deixando
lugar a um buraco negro ― e era bastante fácil perceber como a infeliz Marcella podia ter
morrido ali
― Cuidado, Sr. Boone! ― disse Cal.
Respondi-lhe que não tinha intenção de ser outra coisa senão cauteloso e descemos
a escada.
O chão era de terra batida, as paredes de sólido granito e quase não havia umidade.
O local em nada se parecia com um paraíso dos ratos, pois não existiam as coisas que os
ratos costumam usar para fazer seus ninhos, tais como caixotes velhos, móveis quebrados,
pilhas de papel e assim por diante. Levantamos nossas velas, iluminando um pequeno
círculo, mas ainda conseguindo enxergar muito pouco. O chão tinha uma inclinação
gradativa que parecia estar sob a sala de visitas principal e o salão de jantar ― isto é, em
direção ao leste. Foi nessa direção que avançamos. Tudo estava no mais completo silêncio.
O fedor no ar tornava-se cada vez mais forte e a escuridão parecia fechar-se sobre nós como
lã, como se sentisse ciúmes da luz que a depusera temporariamente, após tantos anos de
reinado absoluto.
Na extremidade oposta, as paredes de granito cediam lugar a madeira polida que
dava a impressão de ser totalmente negra e desprovida de qualidades refletivas. .Ali
terminava o porão, deixando o que parecia ser uma alcova que se abria do espaço principal.
A alcova estava situada em ângulo, o que impossibilitava inspecioná-la sem dobrar a
esquina.
Calvin e eu dobramos a esquina.
Foi como se um espectro apodrecido do sinistro passado da casa se erguesse diante
de nós. Na alcova havia uma única cadeira e, acima dela, pendurado num gancho preso a
uma das robustas vigas do teto, estava um apodrecido laço de corda de cânhamo.
― Então, foi aqui que ele se enforcou ― murmurou Cal. ― Meu Deus!
― Sim... com o cadáver da filha caído ao pé dos degraus atrás dele.
Cal começou a falar; então, vi seus olhos fixarem um ponto às minhas costas e suas
palavras se transformaram num grito.
Como, Bones, poderei descrever a visão que nos surgiu diante dos olhos? Como
posso lhe contar a respeito dos hediondos moradores que viviam em nossas paredes?
A parede da extremidade oposta abriu-se com um giro, e, daquela escuridão, uma
cara nos lançou um olhar malévolo ― uma cara com olhos tão negros como o próprio
Estige.
A boca se abria num sorriso sem dentes, agoniado; uma mão amarela, apodrecida,
esticou-se em nossa direção. A criatura emitiu um som horrível, semelhante a um miado, e
avançou um passo cambaleante para nós. A luz de minha vela incidiu sobre ela...
E vi a lívida marca do laço em seu pescoço!
Por detrás dela, algo se moveu ― algo com que sonharei até o dia em que todos os
meus sonhos cessarem: uma moça com o rosto pálido putrefato e um sorriso de caveira;
uma moça cujo pescoço tombava para o lado num ângulo inacreditável.
Eles nos queriam; sei disso. E sei que nos teriam arrastado para aquela escuridão,
tornando-nos seus, se eu não tivesse jogado minha vela diretamente sobre a figura hedionda
do homem, atirando-lhe logo em seguida a cadeira que estava sob o laço.
Depois disso, tudo é confusão. Minha mente baixou a cortina. Acordei, como disse,
em meu quarto, com Cal ao meu lado.
Se eu pudesse partir, fugiria desta casa de horror com a camisola esvoaçando em
meus calcanhares. Mas não posso. Transformei-me num peão em um drama mais profundo
e tenebroso. Não me pergunte como sei; apenas sei. A Sra. Cloris tinha razão quando falou
em sangue chamar sangue; e o quanto estava horrivelmente certa quando falou daqueles que
vigiam e daqueles que guardam. Temo haver despertado uma Força que estava adormecida
há meio século no tenebroso lugarejo de Salem's Lot, uma Força que matou meus ancestrais
e os fez infernalmente prisioneiros como nosfératu ― os Nãomortos.
E tenho temores ainda maiores, Bones, mas ainda só conheço uma parte. Se eu
soubesse... se ao menos eu soubesse tudo!
CHARLES.
Postscriptum: E, naturalmente, escrevo isto apenas para mim; estamos isolados de
Preacher's Corner. Não ouso levar minha mácula até lá para colocar esta carta no correio e
Calvin se recusa a sair de perto de mim. Talvez se Deus for bom, estas linhas cheguem até
você de algum modo.
C.
(Do diário de bolso de Calvin McCann)
23 de outubro de '50
Hoje ele está mais forte; conversamos rapidamente sobre as aparições no porão;
concordamos que não foram alucinações nem tinham origem ectoplásmica, mas eram reais.
Será que o Sr. Boone desconfia, como eu, de que elas se foram? Talvez; os ruídos cessaram;
não obstante, tudo parece ominoso, ainda encoberto por um manto escuro.
Tenho a impressão de que aguardamos no enganador Olho da Tempestade..
Encontrei um maço de papéis num dos dormitórios, na última gaveta de uma
escrivaninha com tampa corrediça. Alguma correspondência e notas com recibo levaram-me
a crer que se tratava do quarto de Robert Boone. Apesar disso, o documento mais
interessante são anotações rabiscadas no verso de anúncio de chapéus de pele de castor para
homens. Em cima está escrito:
Bem-aventurados os mansos.
Abaixo, está escrita a aparente tolice:
bkmdvhnrumahodozmynvok
lesaoerthrndgszsuapsjs
Creio que seja a chave para decifrar o livro em código que encontrei na biblioteca.
O código acima é, sem dúvida, bastante elementar e foi usado na Guerra de Independência
com o nome de "Grade de Cerca': Eliminando-se os "nulos" da segunda anotação, tem-se:
bmvnuaoomiio
eaetrdssass
Colocando-se as letras da linha inferior nos intervalos da linha superior, o resultado
é a citação original das Bem-aventuranças.
Antes de me atrever a mostrar isto ao Sr. Boone, devo certificar-me do conteúdo do
livro...
24 de outubro de 1850
CARO BONES,
Um acontecimento espantoso ― Cal, sempre calado até estar absolutamente seguro
do que diz (uma rara e admirável qualidade humana!), encontrou o diário de meu avô
Robert. Declara modestamente que a descoberta foi acidental, mas desconfio que
perseverança e trabalho árduo lhe permitiram decifrar o código no qual o livro foi escrito.
De todo modo, que luz sombria ele lança sobre os mistérios desta casa!
A primeira notação está datada de 1 ° de junho de 1789 e a última de 27 de outubro
de 1789 ― quatro dias antes do cataclísmico desaparecimento a que se referiu a Sra. Cloris.
É uma narrativa de obsessão cada vez mais profunda ― ou, melhor, de loucura cada
vez maior ― e esclarece de modo medonho as relações que ligavam meu tio-avô Philip, o
povoado de Jerusalem's Lot e o livro que está naquela igreja profanada.
Segundo Robert Boone, o povoado é mais antigo que Chapelwaite (que foi
construída em 1782) e Preacher's Comer (conhecido naquela época por Preacher's Rest e
fundado em 1741); foi fundado por um grupo dissidente da fé puritana em 1710, uma seita
liderada por um obstinado fanático religioso chamado James Boon. Que sobressalto esse
nome me causou! Creio que não pode existir dúvida quanto ao parentesco desse tal Boon
com a minha família. A Sra. Cloris não poderia estar mais correta em sua crença
supersticiosa de que o parentesco consangüíneo é de crucial importância na questão; e
relembro com horror a resposta dela quando indaguei a respeito de Philip e a relação dele
com Salem's Lot. "Relação de sangue", replicou ela ― e temo que seja verdade.
O povoado transformou-se numa comunidade permanente instalada ao redor da
igreja na qual Boon pregava ― ou imperava. Meu avô dá a entender que Boon também
mantinha relações íntimas com muitas mulheres do povoado, assegurando-lhes que essa era
a vontade e o caminho de Deus. Em conseqüência, o lugarejo tornou-se uma anomalia que
só poderia ter existido naqueles tempos isolados e estranhos, nos quais a crença em bruxas e
a fé na Virgem Maria caminhavam de mãos dadas: um lugarejo religioso um tanto
degenerado, com cruzamentos consangüíneos, controlado por um pregador meio louco cujas
verdades gêmeas eram a Bíblia e o sinistro Morada dos Demônios de De Goudge; uma
comunidade na qual rituais de exorcismo eram praticados regularmente; uma comunidade
de incesto, com a insanidade mental e defeitos físicos que costumam acompanhar tal
pecado. Desconfio (e creio que Robert Boone também desconfiava) que um dos filhos
bastardos de Boon tenha fugido (ou sido seqüestrado) de Jerusalem's Lot e procurado sua
fortuna ao sul do lugarejo ― e assim teve origem nossa linhagem atual. Sei, por cálculos de
minha família, que nosso clã supostamente teve origem naquela região de Massachusetts
que tão tardiamente foi transformada no Estado Soberano do Maine. Meu bisavô, Kenneth
Boone, enriqueceu em resultado do então florescente comércio de peles. Foi sua fortuna,
aumentada pelo tempo e por investimentos conscienciosos, que erigiu este lar de meus
ancestrais, construído muito depois de sua morte em 1863. Seus filhos, Philip e Robert,
construíram Chapelwaite. Sangue chama sangue, afirmou a Sra. Cloris. Seria possível que
Kenneth fosse filho de James Boon, tivesse fugido à loucura do pai e do lugarejo por este
controlado, só para que seus filhos, sem terem conhecimento do fato, construíssem o lar dos
Boone a menos de três quilômetros da origem dos Boone? Se assim foi, não parece que
alguma Mão enorme e invisível nos tenha guiado?
De acordo com o diário de Robert, James Boon era velho em 1789 e realmente
devia ser. Atribuindo-lhe a idade de vinte e cinco anos na época da fundação do povoado,
em 1789 ele teria cento e quatro anos uma idade prodigiosa. O trecho abaixo foi extraído
diretamente do diário de Robert Boone:
4 de agosto de 1789
Hoje, encontrei pela primeira vez esse Homem ao qual meu Irmão se ligou de modo
tão doentio; devo admitir que o tal Boon controla um estranho Magnetismo que muito me
perturbou. É um verdadeiro Ancião, com barba branca, trajando uma sotaina negra que me
pareceu um tanto obscena. Ainda mais perturbador foi o fato de estar rodeado de mulheres,
como um sultão cercado por seu harém; e Philip assegura que ele ainda é ativo, embora
tenha pelo menos oitenta anos...
Eu só visitara o lugarejo uma vez anteriormente e não tornarei a visitá-lo; as ruas
são silenciosas e cheias do temor que o Velho inspira de seu púlpito: temo também que
parentes se tenham cruzado com parentes, tão grande é o número de fisionomias
semelhantes. Tive a impressão de que, para qualquer lado que me voltasse, via sempre o
rosto do Velho... todos são tão descorados; parecem desbotados, como se desprovidos de
qualquer vitalidade. Vi crianças sem olhos e sem narizes, mulheres que choravam,
balbuciavam e apontavam para o céu sem razão aparente, ouvi citações das Escrituras
mescladas com frases sobre o Demônio;... Philip queria que eu permanecesse para assistir
aos serviços religiosos, a idéia daquele Ancião no púlpito, diante da população
consangüínea, causou-me repulsa e arranjei uma desculpa...
As anotações precedentes e subseqüentes a esta falam do crescente fascínio de
Philip por James Boon. A 1° de setembro de 1789, Philip foi batizado na igreja de Boon.
Seu irmão escreve: "Estou perplexo de espanto e horror ― meu Irmão se transformou diante
de meus próprios olhos ―, dá até mesmo a impressão de estar ficando parecido com o
desgraçado Ancião."
A primeira menção ao livro ocorre em 23 de julho. O diário de Robert registra-o
sumariamente: "Phihp regressou do pequeno povoado esta noite com o que me pareceu um
semblante um tanto desvairado. Recusou-se a falar até a hora de irmos deitar, quando disse
que Boon indagara a respeito de um livro intitulado Mistérios do Verme.
Para agradar Philip, prometi escrever a Johns & Goodfellow pedindo informações
sobre o assunto; Philip mostrou-se quase exageradamente agradecido."
Em 12 de agosto, a seguinte anotação: "Recebi hoje duas cartas... e uma de Johns &
Goodfellow, de Boston. Têm notícia do livro pelo qual Philip demonstrou interesse.
Existem apenas cinco exemplares neste país. A carta foi bastante fria, o que é
realmente esquisito. Conheço Henry Goodfellow há anos."
13 de agosto:
Philip ficou loucamente excitado com a carta de Goodfellow; recusa-se a revelar o
motivo. Limita-se a dizer que Boon está extremamente ansioso para obter um exemplar.
Não posso imaginar a razão, pois, a julgar pelo título, parece apenas um inofensivo
tratado sobre jardinagem...
Estou preocupado com Philip; parece tornar-se mais esquisito dia a dia. Agora,
desejo que não tivéssemos regressado a Chapelwaite. O verão está quente, opressivo, cheio
de maus presságios...
No diário de Robert existem apenas mais duas referências ao famigerado livro (ele
parece não ter avaliado a verdadeira importância do livro, mesmo no fim). A julgar pelo
registro de 4 de setembro:
Solicitei a Goodfellow que atue como agente de Philip na questão da compra do
livro, embora minha opinião se insurja contra isso. O que adianta tergiversar, porém? Se eu
recusar, Philip não tem seu próprio dinheiro? Em troca, obtive a promessa de Philip no
sentido de repudiar aquele inadmissível batismo... não obstante, ele está tão frenético, quase
febril; não confio nele. Estou irremediavelmente no mato sem cachorro quanto ao assunto...
Finalmente, em 16 de setembro:
O livro chegou hoje, com um bilhete de Goodfellow declarando que não quer mais
negócios comigo... Philip excitou-se a um ponto anormal; praticamente arrancou-me o Livro
das mãos. Está escrito em latim popular e em caracteres rúnicos que não consigo
compreender. A Coisa parece quase quente ao tato, dá a impressão de vibrar em minhas
mãos, como se contivesse um imenso Poder... Lembrei a Philip sua promessa de repúdio e
ele se limitou a rir de modo feio e louco, sacudindo o livro diante de mim e gritando
repetidamente: "Conseguimos! É nosso! O Verme! O Segredo do Verme!"
Saiu correndo, suponho que ao encontro de seu louco Benfeitor, e não tornei a vê-lo
hoje...
Nada mais há a respeito do livro, mas fiz certas deduções que me parecem ao menos
plausíveis. Primeiro, que o tal livro, como disse a Sra. Cloris, foi o motivo da briga entre
Robert e Philip; segundo, que é um repositório de feitiçaria malfazeja, possivelmente de
origem druídica (muitos dos rituais de sangue druídicos foram preservados por escrito pelos
conquistadores romanos da Inglaterra em nome da erudição e muitos desses infernais livros
de receitas estão entre a literatura proibida no mundo inteiro); terceiro, que Boon e Philip
tencionavam utilizar o livro para seus próprios fins. Talvez, de alguma maneira pervertida,
tivessem boas intenções, mas não acredito. Creio que muito antes já se haviam empenhado a
quaisquer poderes desconhecidos que existam além dos limites do Universo; poderes que
talvez existam além da própria tessitura do Tempo. Os últimos registros do diário de Robert
Boone emprestam uma tênue luz de corroboração a tais especulações e deixo que falem por
si mesmos:
26 de outubro de 1789
Hoje ocorreu uma tremenda algazarra em Preacher's Corner; Frawley, o ferreiro,
agarrou-me o braço e quis saber "o que seu irmão e aquele louco anti-Cristo andam
tramando por lá". Goody Randall afirma que têm aparecido no céu Sinais que prenunciam
um grande e iminente desastre. Nasceu uma vaca com duas cabeças.
Quanto a mim, não sei o que é iminente; talvez seja a Loucura de meu Irmão. Seus
cabelos encaneceram quase de um dia para outro, seus olhos são grandes círculos injetados
de sangue dos quais o agradável brilho da Sanidade Mental parece haver sumido. Ele sorri,
murmura sozinho e, por algum motivo que só ele conhece, passou a ficar em nosso porão
quando não está em Jerusalem's Lot.
Os bacuraus se congregaram em volta da casa e no gramado; seus pios em meio à
neblina se mesclam ao barulho do mar num grito sobrenatural que impede qualquer idéia de
dormir.
27 de outubro de 1789
Segui Philip esta noite quando ele partiu para Jerusalem's Lot, mantendo-me a uma
distância segura para não ser descoberto. Os malditos bacuraus se aglomeraram nos
bosques, enchendo tudo com seu cântico mortífero e enlouquecedor. Não me atrevi a
atravessar a ponte; o povoado estava às escuras, com exceção da igreja, que estava
iluminada por um brilho vermelho que parecia transformar as altas janelas ogivais em olhos
do Inferno. Vozes se erguiam e baixavam numa Litania do Demônio, às vezes rindo, às
vezes soluçando. O próprio solo parecia contorcer-se e gemer sob meus pés, como se
arcasse com um peso terrível. Fugi, perplexo e aterrorizado, os gritos infernais dos bacuraus
retinindo-me nos ouvidos enquanto eu corria através dos bosques tenebrosos.
Tudo avança para o Clímax, ainda desconhecido e imprevisível. Não ouso dormir
por causa dos sonhos que surgem, mas também não me atrevo a permanecer acordado para
enfrentar os terrores loucos que possam aparecer. A noite está cheia de sons horríveis e
temo que...
E, não obstante, sinto o impulso de voltar, de observar, de ver. Parece-me que Philip
― e o Ancião ― chamam por mim.
As aves malditas malditas malditas
E aqui termina o diário de Robert Boone.
Mesmo assim, Bones, você deve perceber que próximo ao fim ele alega que o
próprio Philip parecia chamá-lo. Minha conclusão foral é formada com base nessas linhas,
no que dizem a Sra. Cloris e os outros, mas, sobretudo, naquelas figuras aterrorizadoras do
porão, mortas e, não obstante, vivas. Nossa linhagem continua a ser desafortunada, Bones.
Paira sobre nós uma praga que se recusa a permanecer enterrada; vive uma hedionda vida de
sombra nesta casa e naquele lugarejo. E a culminação do ciclo se aproxima outra vez. Sou o
último com o sangue dos Boone. Temo que algo saiba disso e que eu esteja no nexus de um
esforço maligno fora de qualquer compreensão racional.
O aniversário é na véspera de Todos-os-Santos, de hoje a uma semana.
Como devo proceder? Se ao menos você estivesse aqui para aconselhar-me, para
ajudarme!
Se ao menos você estivesse aqui!
Preciso saber tudo; preciso voltar ao lugarejo abandonado. Que Deus me proteja!
CHARLES.
(Do diário de bolso de Calvin McCann)
25 de outubro de '50
O Sr. Boone dormiu durante o dia quase inteiro. Está pálido e muito mais magro.
Temo que a recaída da febre seja inevitável.
Enquanto tornava a encher sua jarra de água, vi duas cartas endereçadas ao Sr.
Granson, que está na Flórida, e não foram levadas ao correio. Ele planeja retornar a
Jerusalem's Lot; se eu permitir, será o mesmo que matá-lo. Ousarei ir às escondidas até
Preacher's Correr e alugar uma charrete? Devo fazê-lo ― mas se ele acordar? Se, ao voltar,
eu não o encontrar em casa?
Os barulhos em nossas paredes recomeçaram. Graças a Deus ele ainda dorme!
Estremeço ao pensar nisso tudo.
Mais tarde
Levei o jantar ao Sr. Boone numa bandeja. Ele pretende levantar-se mais tarde e, a
despeito de suas evasivas, sei o que planejava fazer; não obstante irei a Preacher's Correr.
Vários dos pós soporíferos que lhe foram receitados durante sua recente moléstia ainda
estão nas minhas coisas; ele tomou um com o chá, sem saber. Está dormindo outra vez.
Deixá-lo a sós com as Coisas que perambulam dentro de nossas paredes me
aterroriza; permitir que ele permaneça mais um só dia nesta casa aterroriza-me muito mais.
Tranquei-o no quarto.
Deus permita que ele ainda esteja aqui, a salvo e adormecido, quando eu voltar com
a charrete!
Ainda mais tarde
Apedrejaram-me! Apedrejaram-me como a um cão selvagem e hidrófobo! Monstros
e demônios! Eles, que se dizem homens! Estamos prisioneiros aqui...
As aves, os bacuraus, começaram a reunir-se.
26 de outubro de 1850
CARO BONES,
É quase noite e acabo de acordar, tendo dormido durante a maior parte das últimas
vinte e quatro horas. Embora Cal nada tenha dito, creio que colocou pó soporífero em meu
chá, pois percebeu minhas intenções.. É um bom e fiel amigo, com as melhores intenções,
de modo que não tocarei no assunto.
Não obstante, estou decidido. Amanhã será o dia. Estou calmo e decidido, mas
também tenho a impressão de sentir o sutil renascimento da febre. Se assim for, tem que ser
amanhã. Talvez hoje à noite fosse ainda melhor; contudo, nem as chamas do próprio Inferno
poderiam induzir-me a pôr os pés naquele lugarejo depois do crepúsculo.
Caso eu não torne a lhe escrever, Bones, Deus o abençoe e proteja.
CHARLES.
Postscriptum ― As aves estão gritando e os horríveis barulhos nas paredes
recomeçaram. Cal pensa que não escuto, mas está enganado.
C.
(Do diário de bolso de Calvin McCann)
27 de outubro de '50
5 horas da manhã.
É impossível persuadi-lo. Muito bem. Irei com ele.
4 de novembro de 1850
CARO BONES,
Fraco, porém lúcido. Não tenho certeza quanto à data, mas meu almanaque
assegura, pela hora da maré e do pôr-do-sol, que eu devo estar correto. Sentado à mesa onde
me sentei para lhe escrever minha primeira carta de Chapelwaite, olho para o mar escuro no
qual os últimos vestígios de luz desaparecem com rapidez. Nunca mais o verei. Esta noite é
a minha noite; abandono-o em troca das sombras que possam existir.
Como se quebra de encontro aos rochedos, esse mar! Lança nuvens de espuma
salgada ao ar escuro, como bandeiras fazendo estremecer o chão sob meus pés. Vejo meu
reflexo na vidraça, pálido como um vampiro. Estou sem alimento desde 27 de outubro e
deveria estar sem água, se Cal não tivesse, naquele dia, colocado a jarra de água em minha
mesa de cabeceira.
Oh, Cal! Ele não mais existe. Ele deixou de existir, Bones. Foi em meu lugar, no
lugar deste farrapo de braços finos como palitos e rosto de caveira que vejo refletido na
vidraça escura. E, apesar de tudo, talvez ele seja o mais afortunado; pois nenhum sonho o
assombra como me tem assombrado estes últimos dias ― formas contorcidas que se
esgueiram nos corredores de pesadelo do delírio. Mesmo agora minhas mãos tremem; sujei
a página de tinta.
Naquela manhã, Cal defrontou-se comigo quando eu estava prestes a sair às
escondidas ― e eu pensava ser tão astucioso. Eu lhe dissera que estava disposto a partir e
lhe pedi que fosse até Tandrell, a cerca de dezesseis quilômetros daqui, e alugasse transporte
num local onde éramos menos notórios. Ele concordou em ir e vi-o partir a pé pela estrada
litorânea. Logo que sumiu de vista, aprontei-me depressa, vestindo um casaco e cachecol
(pois o dia estava gelado; o primeiro toque do inverno que chegava vinha na brisa cortante
daquela manhã). Desejei por um momento ter uma arma de fogo, mas logo ri de mim
mesmo por sentir tal desejo. De que vale uma arma numa situação como essa?
Saí pela despensa, parando para uma última olhada ao mar e ao céu; para respirar o
ar fresco contra o odor putrefato que eu iria sentir em breve; para observar o vôo de uma
gaivota que caçava abaixo das nuvens.
Voltei-me ― e lá estava Calvín McCann.
― O senhor não irá sozinho ― disse ele, com a expressão mais séria que já vi em
seu rosto.
― Mas, Calvin... ― comecei.
― Não, nem mais uma palavra. Vamos juntos e fazemos o que precisamos, ou levo
o senhor de volta à casa, nem que seja pela força. O senhor não está bem de saúde. Não irá
sozinho.
É impossível descrever as emoções conflitantes que me dominaram: confusão,
irritação, gratidão ― e, a despeito de tudo, a maior delas foi amor.
Caminhamos em silêncio, passando pelo pavilhão de verão e pelo relógio de sol,
descendo a encosta cheia de mato e penetrando nos bosques. Tudo mortalmente silencioso
― nenhuma ave piava, nenhum grilo se fazia ouvir. O mundo parecia envolto numa cortina
de silêncio. Havia apenas o perene cheiro de sal e, de longe, o leve odor de fumaça de lenha.
Os bosques eram uma gritante mistura de cores, mas, a meus olhos, o escarlate parecia
predominar sobre todas as outras.
Logo o cheiro de sal passou e outro odor mais sinistro o substituiu; aquela
putrefação que já mencionei. Quando chegamos à pinguela que atravessava o Royal, esperei
que Cal instasse comigo mais uma vez para desistir, mas ele não o fez. Parou, fitou a sinistra
torre da igreja, que parecia zombar do céu, e depois olhou para mim. Prosseguimos.
A passos rápidos mas temerosos, caminhamos até a igreja de James Boon. A porta
ainda estava entreaberta, como a havíamos deixado na visita anterior, e a escuridão do
interior parecia escarnecer de nós. Ao subirmos os degraus, meu coração pareceu encher-se
de bronze; minha mão tremia ao segurar a aldrava e empurrá-la. O mau cheiro lá dentro era
mais forte e mefítico que antes.
Penetramos no vestíbulo escuro e, sem nos determos, passamos à nave da igreja.
A desordem era total.
Algo vasto estivera em ação no local e ocorrera uma violenta devastação. Bancos
virados e jogados a esmo. A cruz profanada estava encostada na parede leste e um buraco
irregular no reboco acima dela indicava a força com que fora atirada. Os lampiões de azeite
tinham sido arrancados de seus elevados suportes e o fedor de óleo de baleia se mesclava ao
terrível mau cheiro que impregnava o lugarejo. E na alameda central, como um horrível
rastro de noiva, havia uma trilha de pus escuro misturado com sinistros filetes de sangue.
Nossos olhos a acompanharam até o púlpito ― a única coisa intacta à vista. Sobre ele,
deitado de través sobre o Livro blasfemo, os olhos vidrados voltados em nossa direção,
estava o corpo de um cordeiro abatido.
― Meu Deus ― sussurrou Cal.
Aproximamo-nos, evitando pisar na gosma que sujava o chão. As paredes ecoavam
nossos passos e pareciam transformá-los no som de uma gigantesca gargalhada.
Subimos juntos ao nártex. O cordeiro não fora esquartejado nem comido; dava mais
a impressão de ter sido espremido até que seus vasos sangüíneos estourassem sob a pressão.
O sangue se espalhava sobre o púlpito em poças espessas e nauseabundas, escorrendo até a
base... não obstante, sobre o livro ele era transparente e através dele era possível ver os
caracteres rúnicos, como por um vidro colorido!
― Temos que tocar nele? ― indagou Cal, sem fraquejar.
― Sim. Precisamos levá-lo.
― Que fará o senhor?
― O que deveria ter sido feito há sessenta anos: vou destruí-lo.
Afastamos o corpo do cordeiro de cima do livro; chocou-se no chão com um ruído
hediondo. Agora, as páginas manchadas de sangue pareciam vivas, com um brilho próprio
de cor escarlate.
Meus ouvidos começaram a retinir e zumbir; um cântico grave dava a impressão de
emanar das paredes. Pela expressão contorcida no rosto de Cal, percebi que ele também
ouvia. O chão sob nós estremeceu, como se o espectro familiar que assombrava a igreja
descesse sobre nós, a fim de proteger seus parentes. A tessitura de sanidade do espaço e do
tempo pareceu torcer-se e estalar; a igreja dava a impressão de estar cheia de espectros e
iluminada com o brilho infernal do eterno fogo frio. Tive a sensação de ver James Boon,
hediondo e monstruoso, dançando ao redor do corpo estendido de uma mulher; e meu tioavô
Philip atrás dele, um acólito trajando um manto negro com capuz, segurando uma faca e
uma tigela.
"Deum vobiscum magna vermis... "..
As palavras tremiam e se contorciam na página ante meus olhos, encharcadas no
sangue do sacrifício, oferenda a uma criatura que vagava além das estrelas...
Uma congregação cega, de cruzamentos consangüíneos, balançandose em louvores
dementes e demoníacos; caras deformadas por uma expectativa voraz e inominável...
E o latim foi substituído por uma língua mais antiga, velha quando o Egito era
jovem e as pirâmides ainda não existiam, velha quando a Terra ainda flutuava num
firmamento disforme e fervente de gás:
"Gyyagin vardar Yogsoggoth! Yerminis! Gyyagin! Gyyagin! "
O púlpito começou a rachar-se e partir-se, sendo empurrado para cima...
Calvin gritou e ergueu um braço para proteger o rosto. O nártex estremeceu num
movimento enorme e tenebroso como 'o de um navio sacudido pela tempestade. Peguei o
livro e o segurei afastado de mim; parecia cheio do calor do sol e pressenti que me
transformaria em cinzas, cegando-me.
― Fuja! ― berrou Calvin. ― Fuja!
Mas fiquei petrificado e a estranha presença encheu-me como a um vaso antigo que
esperara durante anos ― durante gerações!
― Gyyagin vardar! ― gritei. ― Servo de Yogsoggoth, o Inominável! O Verme de
além do Espaço! Devorador de Estrelas! Aquele que cega o Tempo! Verminis! Agora
chegou a Hora de Encher, a Hora da Entrega! Verminis! Alyah! Alyah! Gyyagín!
Calvin empurrou-me e tropecei, a igreja girando diante de mim. Caí ao chão. Minha
cabeça bateu na quina de um banco tombado e encheu-se de fogo vermelho ― que, apesar
de tudo, deu a impressão de limpá-la.
Tateei em busca dos fósforos que trouxera comigo.
Um trovão subterrâneo encheu o ambiente. Reboco caía das paredes e do teto. O
enferrujado sino na torre badalou um carrilhão asfixiado e demoníaco, em ritmo com as
vibrações.
Acendi um fósforo. Levei a chama ao livro no instante em que o púlpito foi lançado
pelos ares numa explosão de lascas de madeira. Um enorme buraco negro surgiu no local;
Cal cambaleou à beira do buraco, as mãos estendidas para a frente, o rosto contraído num
grito que escutarei para sempre.
Então, ocorreu uma imensa onda de carne cinzenta e vibrante. O fedor transformouse
numa maré de pesadelo. Um enorme derramar de uma geléia viscosa e purulenta, uma
tremenda e horrível forma que pareceu emergir como um foguete das entranhas da terra.
Apesar disso, com uma terrível e repentina compreensão que homem nenhum pode
ter conhecido, percebi que era apenas um anel, um segmento, de um verme monstruoso que
existira, sem olhos, durante muitos anos, na escuridão oculta sob a abominável igreja!
O livro incendiou-se em minhas mãos e a Coisa pareceu emitir um grito mudo
acima de mim. Calvin foi atingido de raspão e atirado através da igreja como uma boneca
com o pescoço quebrado.
Amainou ― a coisa sumiu, deixando apenas um enorme buraco de bordas
irregulares, rodeado de lama negra, e um pavoroso som gritado e lamentoso que deu a
impressão de diminuir através de distâncias colossais até desaparecer.
Baixei os olhos. O livro estava transformado em cinzas.
Comecei a rir e, depois, a uivar como um animal ferido.
Toda a sanidade mental me abandonou e sentei-me no chão, com o sangue
escorrendo da testa, gritando e balbuciando naquelas trevas profanadas, enquanto Cal,
atirado no canto oposto, fitava-me com olhos vidrados e cheios de pavor.
Não faço idéia de quanto tempo passei naquele estado. É impossível saber. Todavia,
quando recobrei as faculdades mentais, as sombras marcavam compridas riscas ao meu
redor e eu estava sentado à luz do crepúsculo. Pelo canto do olho, percebi um movimento no
buraco do chão do nártex.
Uma mão tateou sobre as tábuas rachadas do assoalho.
Meu riso louco engasgou-se. Toda a histeria fundiu-se em uma dormência
insensível.
Com uma lentidão terrível e vingativa, uma figura devastada içou-se da escuridão e
uma caveira carcomida pela metade olhou para mim. Besouros rastejavam na testa
descarnada. Uma sotaina apodrecida pendia das clavículas tortas e putrefactas. Só os olhos
viviam ― vermelhos e insanos, fitavam-me com algo mais que loucura; brilhavam com a
vida vazia das regiões desoladas situadas além da orla do Universo.
Avançou a fim de me arrastar para a escuridão.
Foi então que fugi, gritando desesperadamente, abandonando o cadáver de meu
amigo de toda a vida naquele lugar de morte. Corri até que o ar deu a impressão de queimar
como magma nos pulmões e no cérebro. Corri até chegar de volta a esta casa possessa e
marcada, até entrar no meu quarto, onde caí e tenho permanecido como um morto até hoje.
Corri porque, mesmo naquele estado de loucura, mesmo na forma daquela ruína humana
morta mas animada, vi a semelhança de família. Ainda assim, não era Robert nem Philip,
cujos retratos estão na galeria superior. Aquele rosto putrefacto pertencia a James Boon,
Guardião do Verme!
Ele ainda vive em algum lugar nos tortuosos e negros caminhos que ligam
Jerusalem's Lot a Chapelwaite ― e a Coisa ainda vive. A queima do livro mutilou-a, mas
existem outros exemplares.
Contudo, estou no umbral e sou o último da linhagem dos Boone. Devo morrer para
o bem de toda a humanidade... quebrando para sempre a corrente.
Agora, vou ao mar, Bones. Minha jornada, como minha narrativa, está chegando ao
fim.
Que Deus lhe dê descanso e paz.
CHARLES.
Esta estranha coleção de documentos foi eventualmente recebida pelo Sr. Everett
Granson, a quem tinham sido endereçadas as cartas. Presume-se que uma desafortunada
recaída da febre cerebral que o acometeu pela primeira vez após a morte da esposa em 1848
tenha causado a insanidade mental de Charles Boone, levando a assassinar o companheiro e
amigo de muitos anos, Sr. Calvin McCann.
Os registros no diário de bolso do Sr. McCann constituem um fascinante exemplo
de falsificação, indubitavelmente perpetrado por Charles Boone no intento de reforçar suas
ilusões paranóicas.
Em pelo menos dois detalhes, porém, provou-se que Charles Boone estava
enganado.
Primeiro, quando o povoado de Jerusalem's Lot foi "redescoberto" (no sentido
histórico do termo, é claro), o chão do nártex, embora apodrecido, não mostrava sinais de
explosão ou de grandes danos. Apesar de os velhos bancos estarem tombados e haver várias
vidraças quebradas, pode-se presumir que isto foi obra de vândalos das povoações vizinhas
no decorrer dos anos. Entre os habitantes mais idosos de Preacher's Correr e Tandrill ainda
correm boatos a respeito de Jerusalem's Lot (talvez, naquela época, tenha sido esse tipo
inofensivo de folclore local que levou a mente de Charles Boone ao rumo fatal), mas isto
parece pouco relevante.
Segundo, Charles Boone não era o último de sua linhagem. Seu avô, Robert Boone,
gerou ao menos dois filhos bastardos. Um morreu na infância. O segundo adotou o
sobrenome Boone e radicou-se na cidade de Central Falls, em Rhode Island. Sou o último
descendente desse ramo da linhagem Boone; primo em terceiro grau de Charles Boone,
separado dele por três gerações. Os documentos estão em meu poder há dez anos. Ofereçoos
à publicação por ocasião de minha mudança para o lar dos ancestrais dos Boone,
Chapelwaite, na esperança de que o leitor encontrará no coração piedade pela pobre alma
desorientada de Charles Boone. Até onde posso perceber, ele estava correto em apenas uma
coisa: esta casa necessita urgentemente dos serviços de um exterminador de ratos.
Pelo barulho, existem ratos enormes nas paredes.
Assinado,
James Robert Boone
2 de outubro de 1971Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-773446307934557657.post-15102875978590478752015-09-25T10:01:00.002-03:002015-09-25T10:01:25.502-03:00A mulher no quarto<br />
<br />
<br />
A questão é:<br />
Será ele capaz de fazer aquilo?
Ele não sabe. Ele sabe que ela as mastiga de vez em quando, fazendo caretas por
causa do horrível gosto de laranja, emitindo um som de palitos de picolé sendo partidos.
Mas estas são pílulas diferentes... cápsulas de gelatina. O rótulo da caixa diz: COMPLEXO
DARVON. Ele as encontrou no armário remédios dela e rolou-as na mão, pensando. Era um
remédio que o médico receitara antes de ela voltar a ser internada no hospital. Algo para
passar a noite. O armário está cheio de remédios, cuidadosamente arrumados em fileiras
como frascos de drogas de curandeiro. Sinais do mundo ocidental.
SUPOSITÓRIOS FLEET. Ele jamais utilizou um supositório na vida e a idéia de
enfiar no reto algo gorduroso que se derrete com o calor do corpo causa-lhe repulsa. Não
existe dignidade em enfiar coisas na bunda. LEITE DE MAGNÉSIA DE PHILLIPS.
FÓRMULA ANACIN PARA ARTRITE. PEPSO-BISMOL. E assim por diante. É possível
reconstituir o progresso da moléstia dela por meio dos remédios.
Mas estas pílulas são diferentes. Parecem com o Complexo Darvon normal apenas
por serem cápsulas gelatinosas. Mas são maiores, o que seu falecido pai costumava chamar
de pílulas "pica de cavalo". O rótulo diz: Aspirina 350g ― Darvon 100g. Seria ela capaz de
mastigá-las, mesmo se ele lhe desse em mãos? Seria? A casa ainda continua a funcionar. A
geladeira liga e desliga automaticamente, a caldeira também dá partida e, depois, pára, a
intervalos regulares o cuco rabujento sai do relógio para anunciar as horas e meias-horas.
Ele presume que depois que ela morrer caberá a Kevin e ele desmontar a casa. Ela se foi,
mesmo. A casa inteira o diz. Ela. está no Hospital Central de Maine, em Lewiston. Quarto
312. Foi internada quando a dor se tornou tão forte que ela nem mais conseguia ir à cozinha
fazer café. Às vezes, quando ele a visitava, ela chorava sem perceber.
O elevador sobe barulhentamente e ele se vê examinando o certificado azul da
companhia de manutenção de elevadores. O certificado deixa bem claro que, com barulho
ou sem ele, o elevador é seguro. Ela já está no hospital há três semanas e hoje fizeram-lhe
uma operação chamada "cortotomia". Ele não sabe como se escreve, mas é assim que se
pronuncia. O médico disse a ela que "cortotomia" consiste em enfiar uma agulha no pescoço
e fazer que penetre até o cérebro. O médico explicou que é algo semelhante a enfiar um
alfinete comprido numa laranja e espetar um caroço. Quando a agulha atingir o centro da
dor, enviarão um sinal de rádio ao longo da agulha e, quando o sinal atingir a ponta, o
centro da dor será eliminado. Como desligar um aparelho de TV. Então, o câncer na barriga
deixará de incomodá-la tanto.
A idéia de tal operação deixa-o ainda mais inquieto que a idéia de supositórios
derretendo-se calidamente em seu reto. Lembra-lhe um livro de Michael Crichton, chamado
The Terminal Man, que trata da colocação de fios no cérebro das pessoas.
Segundo Crichton, pode ser uma cena muito desagradável. É melhor acreditar.
A porta do elevador se abre no terceiro andar e ele sai. Esta é a ala antiga do
hospital e tem o cheiro adocicado da serragem que costumam espalhar sobre o vômito nas
feiras do interior. Ele deixou as pílulas no porta-luvas do carro. E não bebeu nada antes
desta visita.
As paredes são pintadas em dois tons: marrom em baixo, branco em cima. Ele
reflete que a única combinação de duas cores no mundo que poderia ser mais deprimente
que marrom e branco é cor-de-rosa ,e preto. Corredores de hospital pintados assim... A idéia
o faz sorrir e sentir náuseas ao mesmo tempo.
Dois corredores se cruzam em T em frente ao elevador e existe um bebedouro no
qual ele sempre pára a fim de adiar um pouco as coisas. Peças de equipamento hospitalar
aqui e acolá, como estranhos brinquedos num playground. Uma maca com lados cromados e
rodas de borracha, o tipo de coisa em que o doente é levado à sala de cirurgia quando estão
prontos para efetuar a "cortotomia". Também existe um grande objeto circular cuja função
ele desconhece. Uma bandeja rolante com uma haste vertical na qual estão pendurados dois
vidros, como uma pintura de seios feita por Salvador Dali. Num dos corredores fica a sala
das enfermeiras e risos lubrificados a café chegam até ele.
Ele bebe água e depois se encaminha para o quarto dela. Tem medo do que possa
encontrar e reza para que ela esteja dormindo. Se estiver, ele não a despertará.
Acima da porta de cada quarto existe uma pequena luz quadrada. Quando um
paciente toca a campainha, a luz se acende, com um brilho vermelho. Em ambos os sentidos
do corredor, pacientes andam devagar, usando roupões baratos de hospital sobre pijamas
também fornecidos pelo hospital. Os roupões têm finas listras azuis e brancas, bem como
golas redondas. Os pijamas de hospital, uma espécie de roupa de baixo, são chamados
"johnnies". Os "johnnies" ficam bem nas mulheres, mas parecem esquisitos nos homens
porque parecem combinações ou camisolas que chegam à altura dos joelhos. Os homens
sempre parecem usar chinelos marrons de couro de imitação. As mulheres preferem
chinelas tricotadas, com uma borla de lã. A mãe dele possui um par e as chama de "mulas".
Os pacientes lembram-lhe um. filme de terror chamado "A Noite dos MortosVivos".
Todos andam devagar, como se alguém lhes destampasse os órgãos como vidros de
maionese e os líquidos ficassem balançando lá dentro, prestes a se entornarem. Alguns usam
bengalas. Seu andar vagaroso ao passearem pelos corredores é assustador, mas também
possui dignidade. É o andar de pessoas que se dirigem lentamente para lugar nenhum, o
andar de universitários de becas e barretes acadêmicos dirigindo-se ao auditório para uma
reunião.
Música ectoplásmica soa por toda parte, emitida por rádios transistorizados. Vozes
tagarelam. Ele pode ouvir Black Oak Arkansas cantando "Jim Dandy" (uma voz de falsete
grita alegremente "Vai, Jim Dandy ! Vai Jim Dandy!" para os lentos caminhantes no
corredor). Pode ouvir o mediador de um programa de debates discutindo Nixon num tom
que foi mergulhado em ácido, como uma pena fumegante de caneta. Pode ouvir uma polca
cantada em francês ― Lewiston ainda é uma cidade na qual se fala francês e as pessoas
gostam quase tanto de dançar quanto de se apunhalarem nos bares da parte mais baixa de
Lisbon Street.
Ele pára diante da porta do quarto da mãe e durante algum tempo, esteve bastante
desorientado a ponto de vir embriagado. Envergonhava-se de estar bêbado diante da mãe,
embora ela estivesse por demais dopada e cheia de Elavil para perceber. Elavil é um
tranqüilizante que ministram aos pacientes de câncer a fim de não se aborrecerem tanto por
estarem morrendo.
A rotina que ele seguia era comprar uma dúzia de cervejas Black Label no Mercado
de Sonny, à tarde. Sentava com as crianças para assistir aos programas que elas gostavam de
ver à tarde na televisão. Três cervejas durante "Rua Sésamo", duas durante "Mister Rogers",
uma durante "Companhia Elétrica". Depois, uma com o jantar.
Levava as outras cinco cervejas no carro. Era um trajeto de trinta e cinco
quilômetros entre Raymond e Lewiston, pelas Rodovias 302 e 202, de modo que era
possível estar bastante de porre quando chegava ao hospital, restando ainda uma ou duas
cervejas.
Trazia coisas para a mãe e as deixava no carro, a fim de ter uma desculpa para
voltar e apanhá-las ― e também beber mais meia cerveja, continuando alto.
Dava-lhe também uma desculpa para urinar ao ar livre e, de algum modo, isto era o
melhor de toda aquela miserável estória. Sempre estacionava o carro no parqueamento
lateral, que era de terra batida, esburacada e congelada em novembro, de modo que o ar frio
da noite assegurava total contração da bexiga. Urinar num dos banheiros do hospital
assemelhava-se demais a uma apoteose de toda aquela experiência hospitalar: o botão da
campainha para chamar a enfermeira ao lado da caixa de descarga do vaso sanitário, a
alavanca cromada aparafusada num ângulo de 45 graus, o vidro de desinfetante cor-de-rosa
acima da pia. Coisa ruim. É melhor acreditar.
A vontade de beber no caminho de volta para casa era nenhuma. Portanto, o que
sobrasse da cerveja era guardado na geladeira, em casa, e quando completava meia dúzia...
ele jamais teria vindo se soubesse que seria tão ruim. A primeira idéia que lhe passa pela
cabeça é Ela não é uma laranja e a segunda é Ela está realmente morrendo depressa, agora,
como ela tivesse hora marcada para pegar um trem para o nada. Ela luta na cama, sem se
mexer, exceto pelos olhos, mas lutando no interior do corpo, pois algo se mexe lá dentro.
Tem o pescoço alaranjado por alguma coisa semelhante a mercúrio cromo e um curativo
abaixo da orelha esquerda, onde algum médico cantarolante enfiou a agulha de rádio e
explodiu 60% de seu controle motor juntamente com o centro de dor. Seu olhar o
acompanha como os olhos de um Jesus Cristo estereotipado.
― Acho melhor você não me ver esta noite, Johnny. Não estou muito bem. Talvez
esteja melhor amanhã.
― O que sente?
― Coceira. O corpo inteiro me coça. Minhas pernas estão fechadas?
Ele não consegue verificar se as pernas dela estão fechadas. São apenas um V
elevado sob o amarrotado lençol do hospital. Faz muito calor no quarto. No momento, não
há paciente na outra cama. Ele pensa: Companheiros de quarto chegam e saem, mas minha
mãe fica para sempre. Cristo!
― Estão, sim, Mamãe.
― Puxe-as para baixo, está bem, Johnny? Depois, é melhor você ir embora. Nunca
antes estive numa situação como esta. Não consigo mexer nada. Meu nariz coça. Não é de
causar pena, sentir coceira no nariz e não poder coçá-lo?
Ele coça o nariz dela e depois segura-lhe as pernas através do lençol e puxa-as para
baixo. Pode segurar ambas as pernas com apenas uma das mãos, sem maiores dificuldades,
embora não tenha mãos particularmente grandes. Ela geme. As lágrimas lhe escorrem dos
olhos para as orelhas.
― Mamãe?
― Pode puxar minhas pernas para baixo?
― Acabo de fazer isso.
― Oh. Está bem, então. Creio que estou chorando. Não queria chorar na sua frente.
Gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto.
― Quer um cigarro?
― Pode me dar um gole d'água primeiro, Johnny? Estou seca corno madeira velha.
― Claro.
Ele pega o copo com o canudinho flexível e sai do quarto, indo até o bebedouro.
Um homem gordo com uma atadura elástica na perna caminha lentamente pelo corredor.
Não está usando um dos roupões listrados e segura o "johnny", fechando-o atrás de
si.
Ele enche o copo no bebedouro e volta ao Quarto 312. Ela parou de chorar. Seus
lábios se fecham sobre o canudinho de um modo que lembra a ele um camelo que viu num
filme de viagens. O rosto está magro, descarnado.
A lembrança mais vívida que ele tem dela na vida que levou como seu filho é de
uma época em que tinha doze anos. Ele, seu irmão Kevin e aquela mulher tinham-se
mudado para o Maine a fim de que ela pudesse cuidar dos pais. A mãe era velha e inválida.
Pressão alta tornara a avó dele senil e, para somar insulto ao mal físico, deixara-a
cega.
Feliz 68° aniversário. Boa piada. E ela ficava deitada na cama o dia inteiro, cega e
senil, usando enormes fraldas e calças de borracha, incapaz de se lembrar do que fora
servido no café da manhã, mas capaz de recitar os nomes de todos os Presidentes dos
Estados Unidos, até Ike Eisenhower. E assim, três gerações da família tinham vivido juntas
naquela casa onde ele tão recentemente encontrara as pílulas (embora ambos os avós já
tivessem morrido há muito tempo) e, aos doze anos, ele reclamava de algo durante o café da
manhã. Não se recorda de que, mas reclamava de alguma coisa. Sua mãe estivera lavando as
fraldas mijadas da avó e passando-as pelos rolos secadores da antiga máquina de lavar
roupa. Voltando-se para ele, batera-lhe com uma das fraldas e a primeira pancada da fralda
molhada e pesada virara o prato de mingau que ele estava tomando, atirando-o através da
mesa. A segunda pancada o atingira nas costas, sem machucar, mas fazendo-o calar-se de
susto e parar de reclamar. E aquela velha encarquilhada que agora jazia sobre a cama
naquele quarto de hospital tornara a bater-lhe repetidamente com a fralda molhada, dizendo:
Cale essa boca tagarela, a única coisa que você tem de grande é a língua e trate de mantê-la
quieta até que o resto de você fique do mesmo tamanho ― e cada palavra grifada era
acompanhada de uma pancada com a fralda da avó. Quaisquer outras reclamações que ele
tivesse a fazer simplesmente se evaporaram. Não havia no mundo oportunidade para
conversa fiada. Naquele dia e para sempre, ele descobriu que não existe no mundo algo tão
perfeito para fixar a impressão de um menino de doze anos quanto ao seu lugar no esquema,
de acordo com a devida perspectiva, que levar nas costas uma pancada com uma fralda
molhada da avó. Depois disso, ele levara quatro anos para reaprender a arte de bancar o
espertinho.
Ela se engasga um pouco com a água e o assusta, apesar de estar pensando em dar
as pílulas a ela. Torna a perguntar se ela quer um cigarro.
― Se não for incômodo para você ― responde ela. ― Depois, é melhor você ir.
Talvez eu esteja melhor amanhã.
Ele tira um Kool de um dos maços espalhados sobre a mesinha de cabeceira e o
acende.
Segurando-o entre o polegar e o indicador da mão direita, leva-o aos lábios dela,
que tira uma tragada, fazendo um bico com os lábios para sugar o filtro. A tragada é fraca; a
fumaça lhe escapa pelos lábios.
― Tive que viver sessenta anos para que meu filho segurasse um cigarro para mim.
― Não me incomodo.
Ela tira outra tragada e prende o filtro com os lábios durante tanto tempo que ele
ergue o olhar para fitar os olhos dela e percebe que estão fechados.
― Mamãe?
Ela entreabre vagamente os olhos.
― Johnny?
― Exato.
― Há quanto tempo está aqui?
― Não muito. Acho melhor eu ir embora e deixar você dormir.
― Hmrnmm.
Ele apaga o cigarro no cinzeiro e sai furtivamente do quarto, pensando: Quero falar
com aquele médico. Diabo, quero falar com o médico que fez aquilo.
Ao entrar no elevador, reflete que a palavra "doutor" se transforma em sinônimo de
"homem" depois que um certo grau de proficiência na profissão é atingido, como se fosse
previsto e esperado que os médicos devam ser cruéis para, assim, chegarem a um grau
especial de humanidade. Mas.
― Não creio que ela dure muito mais ― diz ele ao irmão mais tarde, naquela
mesma noite.
O irmão mora em Andover, cento e dez quilômetros a oeste. Só vai ao hospital uma
ou duas vezes por semana.
― Mas a dor melhorou? ― indaga Kev.
― Ela diz que sente coceiras.
Tem as pílulas no bolso do paletó. Sua esposa já foi dormir. Tira as pílulas do bolso,
roubadas da casa vazia da mãe, onde outrora todos eles moraram com os avós. Enquanto
fala, gira a caixa entre os dedos, como um pé de coelho.
― Bem, então ela está melhor.
Para Kev tudo está melhor, sempre, como se a vida caminhasse para um clímax
sublime. É uma opinião da qual o irmão mais moço não compartilha.
― Ela está paralisada.
― Interessa, a esta altura?
― Claro que interessa! ― explode ele, pensando nas pernas dela sob o lençol
branco amarrotado.
― Ela está morrendo, John.
― Ainda não morreu.
Na realidade, é isso que o horroriza. Daqui em diante, a conversa prosseguirá em
círculos, com os lucros indo para a companhia telefônica. Mas este é o ponto crucial: ela
está morrendo, mas ainda não morreu. Simplesmente jaz naquele leito de hospital com uma
etiqueta presa ao pulso, escutando rádios fantasmas passearem pelo corredor. E ela terá que
lutar contra o tempo, diz o médico. É um sujeito grandalhão, com uma barba ruiva alourada.
Tem mais de um metro e noventa de altura, ombros heróicos. O médico o conduziu
delicadamente para o corredor quando ela começou a cochilar.
E prossegue:
― Entenda: numa operação como a "cortotomia", algum dano motor e quase
inevitável. Agora, sua mãe já tem algum movimento na mão esquerda. Podemos esperar,
razoavelmente, que ela recupere a mão direita dentro de duas a quatro semanas.
― Ela voltará a andar?
O médico fita judiciosamente o teto de cortiça furada do corredor. Sua barba nasce
desde o colarinho da camisa quadriculada e, por algum motivo ridículo, Johnny se lembra
de Algerson Swinbume; ora, não podia dizer. O homem à sua frente é o oposto de
Swinbume, sob todos os aspectos.
― Eu diria que não. Ela perdeu muito terreno.
― Vai ficar inválida pelo resto da vida?
― Sim, creio que é uma suposição razoável.
Ele começa a sentir alguma admiração por aquele homem, que esperava que fosse
seguramente detestável. É uma sensação seguida de desgosto: precisa sentir admiração pela
mera verdade?
― Por quanto tempo ela pode viver assim?
― É difícil dizer. (Estava ficando melhor, pensou ele.) Agora, o tumor está
bloqueando um dos rins. O outro funciona normalmente. Quando o tumor bloquear o
segundo, ela dormirá.
― Coma urêmico?
― Sim ― diz o médico, mas com um pouco mais de cautela.
"Uremia" é um termo técnico-patológico, geralmente de uso exclusivo dos médicos
e legistas. Mas Johnny o conhece porque sua avó morreu da mesma causa, embora não
tivesse câncer. Seus rins deixaram de funcionar e ela morreu flutuando em urina interna até
a caixa torácica. Morreu na cama, em casa, à hora do jantar. Johnny foi o primeiro a
suspeitar de que ela estivesse realmente morta e não dormindo da maneira comatosa, de
boca aberta, que é costume dos velhos. Sua velha boca desdentada estava repuxada para
dentro, lembrando um tomate cujo miolo foi extraído e depois ficou esquecido na prateleira
da cozinha durante vários dias. Duas lágrimas tinham escorrido dos olhos. Ele colocou um
espelhinho redondo de maquilagem junto dos lábios durante um minuto e, quando o espelho
não se embaçou e escondeu a imagem daquela boca de tomate murcho, chamou a mãe.
Tudo aquilo pareceu certo como isto agora parecia errado.
― Ela ainda se queixa de dor. E de coceiras.
O médico bate solenemente com o dedo na cabeça, como Victor de Groot nas
velhas caricaturas de psiquiatras.
― Ela imagina a dor. Nem por isso é menos real. Real para ela. Eis porque o tempo
é tão importante. Sua mãe não pode mais contar o tempo em termos de segundos, minutos e
horas. Deve reestruturar essas unidades em dias, semanas, meses.
Ele compreende o que o homem corpulento está dizendo e sente-se impotente. É
como o leve tinir de uma campainha. Ele não pode conversar mais com o médico. É um
técnico.
Fala com palavras suaves a respeito do tempo, como se pudesse agarrar o conceito
de tempo com a mesma facilidade que um caniço de pesca. E talvez possa.
― O senhor pode fazer mais alguma coisa por ela?
― Muito pouco.
Mas ele se porta com serenidade, como se aquilo estivesse certo. Afinal, não está
alimentando "falsas esperanças".
― Pode ser pior que um coma?
― Claro que pode. Não podemos prever essas coisas com um alto grau de precisão.
É como se existisse um tubarão solto no interior do corpo do doente. Ela pode inchar.
― Inchar?
― Seu abdome pode aumentar, diminuir e depois tornar a aumentar. Mas por que
falar nisso agora? Creio que, com certa segurança, podemos dizer que que eles fariam o
serviço. Mas se não fizerem? Ou suponhamos que me apanhem? Não quero ser processado
sob acusação de praticar eutanásia. Mesmo que seja absolvido.
Não tenho causas a defender.
Ele pensa nas manchetes dos jornais berrando MATRICÍDIO e faz uma careta.
Sentado no carro, no estacionamento, revira interminavelmente a caixa de pílulas
com os dedos. COMPLEXO DARVON. A questão continua a ser: Será ele capaz? Deve
fazê-lo? Ela disse: Eu gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto. Kevin
anda falando em arrumar um quarto em sua casa, para que ela não morra no hospital. O
hospital quer que ela vá embora. Deram-lhe uma nova pílula e ela entrou em delírio.
Isso ocorreu quatro dias depois da "cortotomia". Eles gostariam que ela fosse para
outro lugar, porque até hoje ninguém aperfeiçoou uma "cancerotomia" infalível. E, a esta
altura, se tirassem todo o câncer, nada restaria a ela exceto as pernas e a cabeça.
Ele imagina como o tempo deve ser para ela: como algo que escapou ao controle,
como uma caixa de costura cheia de novelos espalhados pelo chão para um gato brincar. Os
dias no Quarto 312. As noites no Quarto 312. Eles amarram um barbante no interruptor da
campainha e no dedo indicador da mão esquerda, porque ela já não pode movimentar
suficientemente a mão quando acha que vai precisar da "comadre".
De qualquer maneira, não faz muita diferença, porque ela não pode sentir a pressão
lá embaixo; no interior de sua barriga bem poderia existir um monte de serragem. Ela
evacua na cama e urina na cama ― e só percebe que o fez quando sente o cheiro. Dos
setenta e cinco quilos que pesava, diminuiu para quarenta e dois e os músculos do corpo
estão tão flácidos que ela é apenas um saco vazio ligado ao cérebro, como um boneco de
criança. Haveria alguma diferença na casa de Kevin? Seria capaz de cometer homicídio? Ele
sabe que é homicídio. O pior tipo de homicídio ― o matricídio ―, como se ele fosse um
feto consciente num dos primeiros livros de terror de ficção científica escritos por Ray
Bradbury, decidido a virar a mesa e abortar o animal que o gerou.
De qualquer modo, talvez a culpa seja dele. Foi o Único filho nutrido dentro dela,
um bebê temporão, quase na época da menopausa. Seu irmão Kevin foi adotado quando um
médico sorridente disse a ela que jamais poderia conceber um filho. E, naturalmente, o
câncer que agora lhe destruía as entranhas começara no útero, como um segundo filho,
sombrio irmão gêmeo dele. A vida dele e a morte dela tinham começado no mesmo lugar.
Deveria ele não fazer o que já estava fazendo agora de forma tão lenta e desajeitada?
Vem dando a ela aspirina, às escondidas, para a dor que ela imagina sentir. Ela
guarda os comprimidos numa caixinha de balas, na gaveta da mesa de cabeceira do hospital,
juntamente com os cartões desejando pronto restabelecimento e os óculos que já não têm
serventia. Tiraram-lhe as dentaduras por medo que ela as enfiasse pela garganta abaixo e
morresse asfixiada, de modo que agora ela simplesmente chupa os comprimidos de aspirina
até ficar com a língua ligeiramente esbranquiçada.
Claro que ele poderia dar-lhe as pílulas; três ou quatro seriam suficientes. Cem
gramas de aspirina e trinta gramas de Darvon administrados numa mulher cujo peso
diminuiu trinta e três por cento em cinco meses.
Ninguém sabe que ele tem as cápsulas, nem Kev, nem a esposa. Ele pensa que
talvez tenham colocado um paciente na outra cama do Quarto 312, de modo que não haverá
motivo para preocupações. Pode escapar em segurança. Pensou que talvez isso fosse
realmente melhor. Se houver outra mulher no quarto, suas opções estarão eliminadas e ele
poderá considerar o fato como um sinal de anuência da Providência. Ele acha que...
― Você está com melhor aspecto esta noite.
― Estou mesmo?
― Claro. Como se sente?
― Oh, não muito bem. Não muito bem, esta noite.
― Vamos ver você mexer a mão direita.
Ela ergue a mão do lençol. Ela flutua um momento, de dedos abertos, diante de seus
olhos e toma a cair. Ele sorri e ela retribui o sorriso. Ele pergunta:
― Viu o doutor hoje?
― Sim, ele esteve aqui. É bondade dele vir todos os dias. Quer me dar um pouco
d'água, Johnny?
Ele lhe dá água por meio do canudinho flexível.
― É bondade sua vir aqui com tanta freqüência, Johnny. Você é um bom filho.
Ela está chorando outra vez. A outra cama está vazia, parecendo acusá-lo. De vez
em quando, um dos roupões listrados de azul e branco passa diante da porta, caminhando
pelo corredor. A porta do quarto está entreaberta. Ele tira delicadamente o copo da mão
dela, pensando como um idiota: Este copo está meio cheio ou meio vazio?
― Como vai sua mão esquerda?
― Oh, está ótima.
― Vamos ver.
Ela levanta a mão. Sempre foi canhota e talvez seja por isso que aquela mão se
recuperou tão bem dos devastadores efeitos da "cortotomia". Ela fecha o punho.
Flexiona os dedos. Estala levemente os nós dos dedos. Então, a mão torna a cair
sobre o lençol. Ela reclama:
― Mas não tenho sensação nenhuma na mão.
― Deixe-me ver uma coisa.
Vai ao guarda-roupa, abre-o e enfia a mão por detrás do casaco que ela usava ao
chegar ao hospital, a fim de pegar a bolsa. Ela mantém a bolsa no armário porque é
paranóica com relação a ladrões; ouviu dizer que alguns dos atendentes são verdadeiros
artistas no furto, capazes de levar tudo que conseguem ter ao alcance das mãos. Ela soube
através de uma das companheiras de quarto, que já recebeu alta há muito tempo, que uma
mulher internada na ala nova foi roubada em quinhentos dólares que escondia num sapato.
Ultimamente, a mãe dele tem sido paranóica a respeito de muitas coisas e, certa vez, lhe
disse que um homem se esconde sob sua cama na calada da noite. A culpa cabe em parte à
combinação de drogas que estão experimentando nela. Drogas que fazem a benzedrina que
ele tomava ocasionalmente na universidade parecer uma substância inócua. Pode-se
escolher à vontade nos armários trancados que ficam nas extremidades dos corredores, perto
das salas das enfermeiras: excitantes, sedativos, analgésicos e soporíferos. E a morte, talvez
― a morte misericordiosa como um doce cobertor negro.
As maravilhas da ciência moderna.
Ele leva a bolsa de volta à cama. Abre-a.
― Pode pegar alguma das coisas que estão aqui?
― Oh, Johnny, não sei...
Ele diz em tom persuasivo:
― Experimente. Por mim.
A mão esquerda dela se ergue do lençol como um helicóptero aleijado. Voa.
Mergulha.
Sai da bolsa com uma folha amarrotada de papel absorvente. Ele aplaude:
― Ótimo! Muito bem!
Mas ela vira o rosto para o outro lado.
― O ano passado, eu era capaz de puxar dois carrinhos carregados de pratos de
comida com estas mãos.
Se tem que existir uma ocasião, é agora. Faz muito calor no quarto, mas o suor na
testa dele é frio. Ele pensa: Se ela não pedir aspirina, eu não o farei. Não esta noite.
E sabe que se não for esta noite, nunca mais. Muito bem.
― Pode me dar duas das minhas pílulas, Johnny?
É como ela sempre pede. Ela está proibida de tomar qualquer remédio além da
medicação prescrita pelo médico, porque perdeu tanto peso que desenvolveu o que seus
amigos universitários que usavam tóxicos costumavam chamar de "uma pesada": a
imunidade do corpo fica a uma margem ínfima da dose letal. Mais uma pílula e a pessoa
morre. Dizem que foi isso que ocorreu com Marilyn Monroe.
― Trouxe algumas pílulas de casa.
― É mesmo.
― São ótimas para dor.
Estende a caixa para ela, que só consegue ler de muito perto. Ela franze a testa para
as letras grandes no rótulo.
― Já tomei antes esse tal Darvon. Não adiantou.
― Este é mais forte.
Ela ergue os olhos da caixa e o encara. Pergunta distraidamente:
― É mesmo?
Ele só consegue sorrir como um tolo. É incapaz de falar. E como a primeira vez em
que esteve com uma mulher: aconteceu no banco traseiro do carro de um amigo e quando
ele voltou para casa a mãe perguntou se ele se divertira ― e ele só conseguiu exibir aquele
sorriso tolo.
― Posso mastigá-las?
― Não sei. Pode experimentar uma.
― Está bem. Não permita que percebam.
Ele abre a caixa e retira a tampa de plástico do vidro. Puxa o algodão do gargalo.
Será ela capaz de fazer tudo isso com aquela mão esquerda aleijada? Eles acreditariam? Ele
não sabe. Eles talvez também não saibam. Talvez nem mesmo se importem.
Ele sacode o vidro, deixando cair meia dúzia de pílulas na palma da mão. Percebe
que ela o está observando. Meia dúzia é demais; até ela deve saber. Se ela disser algo a
respeito, ele guardará todas as pílulas de volta no vidro e lhe oferecerá uma contra dor de
artrite.
Uma enfermeira passa silenciosamente pelo corredor e a mão dele treme,
chacalhando as pílulas cinzentas, mas a enfermeira não olha para dentro do quarto a fim de
verificar como está passando a "garota da cortotomia".
A mãe dele não diz nada, limitando-se a olhar para as pílulas como se fossem
perfeitamente normais (se é que isto existe). Mas, por outro lado, ela jamais gostou de
celebrações; seria incapaz de quebrar uma garrafa de champanha em seu próprio barco para
batizá-lo.
― Lá vamos nós ― diz ele em voz perfeitamente natural.
E coloca a primeira pílula na boca da mãe.
Ela mastiga pensativamente a pílula com as gengivas até dissolver a cápsula de
gelatina.
Então, faz uma careta.
― Tem gosto ruim. Então, eu não...
― Não. Não é tão ruim.
Ele lhe dá outra. E mais outra. El á as mastiga com aquela mesma expressão
pensativa.
Ele lhe dá a quarta. Ela sorri e ele percebe, horrorizado, que a língua dela ficou
amarela.
Talvez se ele lhe der uma pancada na barriga ela vomite tudo. Mas não pode. Seria
incapaz de bater na mãe.
― Quer ver se minhas pernas estão juntas?
― Primeiro mastigue estas.
Dá-lhe a quinta pílula. E a sexta. Então verifica se as pernas dela estão juntas. Estão.
Ela diz:
― Acho que vou dormir um pouco, agora.
― Muito bem. Vou beber água.
― Você sempre foi um bom filho, Johnny.
Ele coloca o vidro na caixa e enfia a caixa na bolsa, deixando a tampa de plástico
em cima do lençol. Deixa a bolsa aberta ao lado da mãe e pensa: Ela pediu a bolsa. Eu a
trouxe e abri para ela, logo antes de ir embora Ela disse que podia tirar da bolsa o que
desejava. Disse que chamaria a enfermeira para tornar a guardar a bolsa no armário.
Ele sai e bebe água. Há um espelho acima do bebedouro e ele põe a língua para
fora, examinando-a.
Quando volta ao quarto, ela está dormindo com as mãos juntas. As veias das mãos
são grossas e saltadas. Ele a beija na testa e os olhos dela se mexem sob as pálpebras, mas
não se abrem.
Sim.
Ele não sente diferença alguma, nem para melhor nem para pior.
Encaminha-se para a porta do quarto e se lembra de mais uma coisa. Volta para
perto da mãe, retira a caixa da bolsa, tira o vidro da caixa e o limpa cuidadosamente na
camisa.
Então, aperta as pontas dos dedos da inerte mão esquerda da mãe de encontro ao
vidro.
Então, coloca-o de volta no lugar e sai rapidamente do quarto, sem olhar para trás.
Volta para casa e espera o telefone tocar, desejando ter dado outro beijo nela.
Enquanto espera, assiste à televisão e bebe muita água.A MULHER NO QUARTO
A questão é: Será ele capaz de fazer aquilo?
Ele não sabe. Ele sabe que ela as mastiga de vez em quando, fazendo caretas por
causa do horrível gosto de laranja, emitindo um som de palitos de picolé sendo partidos.
Mas estas são pílulas diferentes... cápsulas de gelatina. O rótulo da caixa diz: COMPLEXO
DARVON. Ele as encontrou no armário remédios dela e rolou-as na mão, pensando. Era um
remédio que o médico receitara antes de ela voltar a ser internada no hospital. Algo para
passar a noite. O armário está cheio de remédios, cuidadosamente arrumados em fileiras
como frascos de drogas de curandeiro. Sinais do mundo ocidental.
SUPOSITÓRIOS FLEET. Ele jamais utilizou um supositório na vida e a idéia de
enfiar no reto algo gorduroso que se derrete com o calor do corpo causa-lhe repulsa. Não
existe dignidade em enfiar coisas na bunda. LEITE DE MAGNÉSIA DE PHILLIPS.
FÓRMULA ANACIN PARA ARTRITE. PEPSO-BISMOL. E assim por diante. É possível
reconstituir o progresso da moléstia dela por meio dos remédios.
Mas estas pílulas são diferentes. Parecem com o Complexo Darvon normal apenas
por serem cápsulas gelatinosas. Mas são maiores, o que seu falecido pai costumava chamar
de pílulas "pica de cavalo". O rótulo diz: Aspirina 350g ― Darvon 100g. Seria ela capaz de
mastigá-las, mesmo se ele lhe desse em mãos? Seria? A casa ainda continua a funcionar. A
geladeira liga e desliga automaticamente, a caldeira também dá partida e, depois, pára, a
intervalos regulares o cuco rabujento sai do relógio para anunciar as horas e meias-horas.
Ele presume que depois que ela morrer caberá a Kevin e ele desmontar a casa. Ela se foi,
mesmo. A casa inteira o diz. Ela. está no Hospital Central de Maine, em Lewiston. Quarto
312. Foi internada quando a dor se tornou tão forte que ela nem mais conseguia ir à cozinha
fazer café. Às vezes, quando ele a visitava, ela chorava sem perceber.
O elevador sobe barulhentamente e ele se vê examinando o certificado azul da
companhia de manutenção de elevadores. O certificado deixa bem claro que, com barulho
ou sem ele, o elevador é seguro. Ela já está no hospital há três semanas e hoje fizeram-lhe
uma operação chamada "cortotomia". Ele não sabe como se escreve, mas é assim que se
pronuncia. O médico disse a ela que "cortotomia" consiste em enfiar uma agulha no pescoço
e fazer que penetre até o cérebro. O médico explicou que é algo semelhante a enfiar um
alfinete comprido numa laranja e espetar um caroço. Quando a agulha atingir o centro da
dor, enviarão um sinal de rádio ao longo da agulha e, quando o sinal atingir a ponta, o
centro da dor será eliminado. Como desligar um aparelho de TV. Então, o câncer na barriga
deixará de incomodá-la tanto.
A idéia de tal operação deixa-o ainda mais inquieto que a idéia de supositórios
derretendo-se calidamente em seu reto. Lembra-lhe um livro de Michael Crichton, chamado
The Terminal Man, que trata da colocação de fios no cérebro das pessoas.
Segundo Crichton, pode ser uma cena muito desagradável. É melhor acreditar.
A porta do elevador se abre no terceiro andar e ele sai. Esta é a ala antiga do
hospital e tem o cheiro adocicado da serragem que costumam espalhar sobre o vômito nas
feiras do interior. Ele deixou as pílulas no porta-luvas do carro. E não bebeu nada antes
desta visita.
As paredes são pintadas em dois tons: marrom em baixo, branco em cima. Ele
reflete que a única combinação de duas cores no mundo que poderia ser mais deprimente
que marrom e branco é cor-de-rosa ,e preto. Corredores de hospital pintados assim... A idéia
o faz sorrir e sentir náuseas ao mesmo tempo.
Dois corredores se cruzam em T em frente ao elevador e existe um bebedouro no
qual ele sempre pára a fim de adiar um pouco as coisas. Peças de equipamento hospitalar
aqui e acolá, como estranhos brinquedos num playground. Uma maca com lados cromados e
rodas de borracha, o tipo de coisa em que o doente é levado à sala de cirurgia quando estão
prontos para efetuar a "cortotomia". Também existe um grande objeto circular cuja função
ele desconhece. Uma bandeja rolante com uma haste vertical na qual estão pendurados dois
vidros, como uma pintura de seios feita por Salvador Dali. Num dos corredores fica a sala
das enfermeiras e risos lubrificados a café chegam até ele.
Ele bebe água e depois se encaminha para o quarto dela. Tem medo do que possa
encontrar e reza para que ela esteja dormindo. Se estiver, ele não a despertará.
Acima da porta de cada quarto existe uma pequena luz quadrada. Quando um
paciente toca a campainha, a luz se acende, com um brilho vermelho. Em ambos os sentidos
do corredor, pacientes andam devagar, usando roupões baratos de hospital sobre pijamas
também fornecidos pelo hospital. Os roupões têm finas listras azuis e brancas, bem como
golas redondas. Os pijamas de hospital, uma espécie de roupa de baixo, são chamados
"johnnies". Os "johnnies" ficam bem nas mulheres, mas parecem esquisitos nos homens
porque parecem combinações ou camisolas que chegam à altura dos joelhos. Os homens
sempre parecem usar chinelos marrons de couro de imitação. As mulheres preferem
chinelas tricotadas, com uma borla de lã. A mãe dele possui um par e as chama de "mulas".
Os pacientes lembram-lhe um. filme de terror chamado "A Noite dos MortosVivos".
Todos andam devagar, como se alguém lhes destampasse os órgãos como vidros de
maionese e os líquidos ficassem balançando lá dentro, prestes a se entornarem. Alguns usam
bengalas. Seu andar vagaroso ao passearem pelos corredores é assustador, mas também
possui dignidade. É o andar de pessoas que se dirigem lentamente para lugar nenhum, o
andar de universitários de becas e barretes acadêmicos dirigindo-se ao auditório para uma
reunião.
Música ectoplásmica soa por toda parte, emitida por rádios transistorizados. Vozes
tagarelam. Ele pode ouvir Black Oak Arkansas cantando "Jim Dandy" (uma voz de falsete
grita alegremente "Vai, Jim Dandy ! Vai Jim Dandy!" para os lentos caminhantes no
corredor). Pode ouvir o mediador de um programa de debates discutindo Nixon num tom
que foi mergulhado em ácido, como uma pena fumegante de caneta. Pode ouvir uma polca
cantada em francês ― Lewiston ainda é uma cidade na qual se fala francês e as pessoas
gostam quase tanto de dançar quanto de se apunhalarem nos bares da parte mais baixa de
Lisbon Street.
Ele pára diante da porta do quarto da mãe e durante algum tempo, esteve bastante
desorientado a ponto de vir embriagado. Envergonhava-se de estar bêbado diante da mãe,
embora ela estivesse por demais dopada e cheia de Elavil para perceber. Elavil é um
tranqüilizante que ministram aos pacientes de câncer a fim de não se aborrecerem tanto por
estarem morrendo.
A rotina que ele seguia era comprar uma dúzia de cervejas Black Label no Mercado
de Sonny, à tarde. Sentava com as crianças para assistir aos programas que elas gostavam de
ver à tarde na televisão. Três cervejas durante "Rua Sésamo", duas durante "Mister Rogers",
uma durante "Companhia Elétrica". Depois, uma com o jantar.
Levava as outras cinco cervejas no carro. Era um trajeto de trinta e cinco
quilômetros entre Raymond e Lewiston, pelas Rodovias 302 e 202, de modo que era
possível estar bastante de porre quando chegava ao hospital, restando ainda uma ou duas
cervejas.
Trazia coisas para a mãe e as deixava no carro, a fim de ter uma desculpa para
voltar e apanhá-las ― e também beber mais meia cerveja, continuando alto.
Dava-lhe também uma desculpa para urinar ao ar livre e, de algum modo, isto era o
melhor de toda aquela miserável estória. Sempre estacionava o carro no parqueamento
lateral, que era de terra batida, esburacada e congelada em novembro, de modo que o ar frio
da noite assegurava total contração da bexiga. Urinar num dos banheiros do hospital
assemelhava-se demais a uma apoteose de toda aquela experiência hospitalar: o botão da
campainha para chamar a enfermeira ao lado da caixa de descarga do vaso sanitário, a
alavanca cromada aparafusada num ângulo de 45 graus, o vidro de desinfetante cor-de-rosa
acima da pia. Coisa ruim. É melhor acreditar.
A vontade de beber no caminho de volta para casa era nenhuma. Portanto, o que
sobrasse da cerveja era guardado na geladeira, em casa, e quando completava meia dúzia...
ele jamais teria vindo se soubesse que seria tão ruim. A primeira idéia que lhe passa pela
cabeça é Ela não é uma laranja e a segunda é Ela está realmente morrendo depressa, agora,
como ela tivesse hora marcada para pegar um trem para o nada. Ela luta na cama, sem se
mexer, exceto pelos olhos, mas lutando no interior do corpo, pois algo se mexe lá dentro.
Tem o pescoço alaranjado por alguma coisa semelhante a mercúrio cromo e um curativo
abaixo da orelha esquerda, onde algum médico cantarolante enfiou a agulha de rádio e
explodiu 60% de seu controle motor juntamente com o centro de dor. Seu olhar o
acompanha como os olhos de um Jesus Cristo estereotipado.
― Acho melhor você não me ver esta noite, Johnny. Não estou muito bem. Talvez
esteja melhor amanhã.
― O que sente?
― Coceira. O corpo inteiro me coça. Minhas pernas estão fechadas?
Ele não consegue verificar se as pernas dela estão fechadas. São apenas um V
elevado sob o amarrotado lençol do hospital. Faz muito calor no quarto. No momento, não
há paciente na outra cama. Ele pensa: Companheiros de quarto chegam e saem, mas minha
mãe fica para sempre. Cristo!
― Estão, sim, Mamãe.
― Puxe-as para baixo, está bem, Johnny? Depois, é melhor você ir embora. Nunca
antes estive numa situação como esta. Não consigo mexer nada. Meu nariz coça. Não é de
causar pena, sentir coceira no nariz e não poder coçá-lo?
Ele coça o nariz dela e depois segura-lhe as pernas através do lençol e puxa-as para
baixo. Pode segurar ambas as pernas com apenas uma das mãos, sem maiores dificuldades,
embora não tenha mãos particularmente grandes. Ela geme. As lágrimas lhe escorrem dos
olhos para as orelhas.
― Mamãe?
― Pode puxar minhas pernas para baixo?
― Acabo de fazer isso.
― Oh. Está bem, então. Creio que estou chorando. Não queria chorar na sua frente.
Gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto.
― Quer um cigarro?
― Pode me dar um gole d'água primeiro, Johnny? Estou seca corno madeira velha.
― Claro.
Ele pega o copo com o canudinho flexível e sai do quarto, indo até o bebedouro.
Um homem gordo com uma atadura elástica na perna caminha lentamente pelo corredor.
Não está usando um dos roupões listrados e segura o "johnny", fechando-o atrás de
si.
Ele enche o copo no bebedouro e volta ao Quarto 312. Ela parou de chorar. Seus
lábios se fecham sobre o canudinho de um modo que lembra a ele um camelo que viu num
filme de viagens. O rosto está magro, descarnado.
A lembrança mais vívida que ele tem dela na vida que levou como seu filho é de
uma época em que tinha doze anos. Ele, seu irmão Kevin e aquela mulher tinham-se
mudado para o Maine a fim de que ela pudesse cuidar dos pais. A mãe era velha e inválida.
Pressão alta tornara a avó dele senil e, para somar insulto ao mal físico, deixara-a
cega.
Feliz 68° aniversário. Boa piada. E ela ficava deitada na cama o dia inteiro, cega e
senil, usando enormes fraldas e calças de borracha, incapaz de se lembrar do que fora
servido no café da manhã, mas capaz de recitar os nomes de todos os Presidentes dos
Estados Unidos, até Ike Eisenhower. E assim, três gerações da família tinham vivido juntas
naquela casa onde ele tão recentemente encontrara as pílulas (embora ambos os avós já
tivessem morrido há muito tempo) e, aos doze anos, ele reclamava de algo durante o café da
manhã. Não se recorda de que, mas reclamava de alguma coisa. Sua mãe estivera lavando as
fraldas mijadas da avó e passando-as pelos rolos secadores da antiga máquina de lavar
roupa. Voltando-se para ele, batera-lhe com uma das fraldas e a primeira pancada da fralda
molhada e pesada virara o prato de mingau que ele estava tomando, atirando-o através da
mesa. A segunda pancada o atingira nas costas, sem machucar, mas fazendo-o calar-se de
susto e parar de reclamar. E aquela velha encarquilhada que agora jazia sobre a cama
naquele quarto de hospital tornara a bater-lhe repetidamente com a fralda molhada, dizendo:
Cale essa boca tagarela, a única coisa que você tem de grande é a língua e trate de mantê-la
quieta até que o resto de você fique do mesmo tamanho ― e cada palavra grifada era
acompanhada de uma pancada com a fralda da avó. Quaisquer outras reclamações que ele
tivesse a fazer simplesmente se evaporaram. Não havia no mundo oportunidade para
conversa fiada. Naquele dia e para sempre, ele descobriu que não existe no mundo algo tão
perfeito para fixar a impressão de um menino de doze anos quanto ao seu lugar no esquema,
de acordo com a devida perspectiva, que levar nas costas uma pancada com uma fralda
molhada da avó. Depois disso, ele levara quatro anos para reaprender a arte de bancar o
espertinho.
Ela se engasga um pouco com a água e o assusta, apesar de estar pensando em dar
as pílulas a ela. Torna a perguntar se ela quer um cigarro.
― Se não for incômodo para você ― responde ela. ― Depois, é melhor você ir.
Talvez eu esteja melhor amanhã.
Ele tira um Kool de um dos maços espalhados sobre a mesinha de cabeceira e o
acende.
Segurando-o entre o polegar e o indicador da mão direita, leva-o aos lábios dela,
que tira uma tragada, fazendo um bico com os lábios para sugar o filtro. A tragada é fraca; a
fumaça lhe escapa pelos lábios.
― Tive que viver sessenta anos para que meu filho segurasse um cigarro para mim.
― Não me incomodo.
Ela tira outra tragada e prende o filtro com os lábios durante tanto tempo que ele
ergue o olhar para fitar os olhos dela e percebe que estão fechados.
― Mamãe?
Ela entreabre vagamente os olhos.
― Johnny?
― Exato.
― Há quanto tempo está aqui?
― Não muito. Acho melhor eu ir embora e deixar você dormir.
― Hmrnmm.
Ele apaga o cigarro no cinzeiro e sai furtivamente do quarto, pensando: Quero falar
com aquele médico. Diabo, quero falar com o médico que fez aquilo.
Ao entrar no elevador, reflete que a palavra "doutor" se transforma em sinônimo de
"homem" depois que um certo grau de proficiência na profissão é atingido, como se fosse
previsto e esperado que os médicos devam ser cruéis para, assim, chegarem a um grau
especial de humanidade. Mas.
― Não creio que ela dure muito mais ― diz ele ao irmão mais tarde, naquela
mesma noite.
O irmão mora em Andover, cento e dez quilômetros a oeste. Só vai ao hospital uma
ou duas vezes por semana.
― Mas a dor melhorou? ― indaga Kev.
― Ela diz que sente coceiras.
Tem as pílulas no bolso do paletó. Sua esposa já foi dormir. Tira as pílulas do bolso,
roubadas da casa vazia da mãe, onde outrora todos eles moraram com os avós. Enquanto
fala, gira a caixa entre os dedos, como um pé de coelho.
― Bem, então ela está melhor.
Para Kev tudo está melhor, sempre, como se a vida caminhasse para um clímax
sublime. É uma opinião da qual o irmão mais moço não compartilha.
― Ela está paralisada.
― Interessa, a esta altura?
― Claro que interessa! ― explode ele, pensando nas pernas dela sob o lençol
branco amarrotado.
― Ela está morrendo, John.
― Ainda não morreu.
Na realidade, é isso que o horroriza. Daqui em diante, a conversa prosseguirá em
círculos, com os lucros indo para a companhia telefônica. Mas este é o ponto crucial: ela
está morrendo, mas ainda não morreu. Simplesmente jaz naquele leito de hospital com uma
etiqueta presa ao pulso, escutando rádios fantasmas passearem pelo corredor. E ela terá que
lutar contra o tempo, diz o médico. É um sujeito grandalhão, com uma barba ruiva alourada.
Tem mais de um metro e noventa de altura, ombros heróicos. O médico o conduziu
delicadamente para o corredor quando ela começou a cochilar.
E prossegue:
― Entenda: numa operação como a "cortotomia", algum dano motor e quase
inevitável. Agora, sua mãe já tem algum movimento na mão esquerda. Podemos esperar,
razoavelmente, que ela recupere a mão direita dentro de duas a quatro semanas.
― Ela voltará a andar?
O médico fita judiciosamente o teto de cortiça furada do corredor. Sua barba nasce
desde o colarinho da camisa quadriculada e, por algum motivo ridículo, Johnny se lembra
de Algerson Swinbume; ora, não podia dizer. O homem à sua frente é o oposto de
Swinbume, sob todos os aspectos.
― Eu diria que não. Ela perdeu muito terreno.
― Vai ficar inválida pelo resto da vida?
― Sim, creio que é uma suposição razoável.
Ele começa a sentir alguma admiração por aquele homem, que esperava que fosse
seguramente detestável. É uma sensação seguida de desgosto: precisa sentir admiração pela
mera verdade?
― Por quanto tempo ela pode viver assim?
― É difícil dizer. (Estava ficando melhor, pensou ele.) Agora, o tumor está
bloqueando um dos rins. O outro funciona normalmente. Quando o tumor bloquear o
segundo, ela dormirá.
― Coma urêmico?
― Sim ― diz o médico, mas com um pouco mais de cautela.
"Uremia" é um termo técnico-patológico, geralmente de uso exclusivo dos médicos
e legistas. Mas Johnny o conhece porque sua avó morreu da mesma causa, embora não
tivesse câncer. Seus rins deixaram de funcionar e ela morreu flutuando em urina interna até
a caixa torácica. Morreu na cama, em casa, à hora do jantar. Johnny foi o primeiro a
suspeitar de que ela estivesse realmente morta e não dormindo da maneira comatosa, de
boca aberta, que é costume dos velhos. Sua velha boca desdentada estava repuxada para
dentro, lembrando um tomate cujo miolo foi extraído e depois ficou esquecido na prateleira
da cozinha durante vários dias. Duas lágrimas tinham escorrido dos olhos. Ele colocou um
espelhinho redondo de maquilagem junto dos lábios durante um minuto e, quando o espelho
não se embaçou e escondeu a imagem daquela boca de tomate murcho, chamou a mãe.
Tudo aquilo pareceu certo como isto agora parecia errado.
― Ela ainda se queixa de dor. E de coceiras.
O médico bate solenemente com o dedo na cabeça, como Victor de Groot nas
velhas caricaturas de psiquiatras.
― Ela imagina a dor. Nem por isso é menos real. Real para ela. Eis porque o tempo
é tão importante. Sua mãe não pode mais contar o tempo em termos de segundos, minutos e
horas. Deve reestruturar essas unidades em dias, semanas, meses.
Ele compreende o que o homem corpulento está dizendo e sente-se impotente. É
como o leve tinir de uma campainha. Ele não pode conversar mais com o médico. É um
técnico.
Fala com palavras suaves a respeito do tempo, como se pudesse agarrar o conceito
de tempo com a mesma facilidade que um caniço de pesca. E talvez possa.
― O senhor pode fazer mais alguma coisa por ela?
― Muito pouco.
Mas ele se porta com serenidade, como se aquilo estivesse certo. Afinal, não está
alimentando "falsas esperanças".
― Pode ser pior que um coma?
― Claro que pode. Não podemos prever essas coisas com um alto grau de precisão.
É como se existisse um tubarão solto no interior do corpo do doente. Ela pode inchar.
― Inchar?
― Seu abdome pode aumentar, diminuir e depois tornar a aumentar. Mas por que
falar nisso agora? Creio que, com certa segurança, podemos dizer que que eles fariam o
serviço. Mas se não fizerem? Ou suponhamos que me apanhem? Não quero ser processado
sob acusação de praticar eutanásia. Mesmo que seja absolvido.
Não tenho causas a defender.
Ele pensa nas manchetes dos jornais berrando MATRICÍDIO e faz uma careta.
Sentado no carro, no estacionamento, revira interminavelmente a caixa de pílulas
com os dedos. COMPLEXO DARVON. A questão continua a ser: Será ele capaz? Deve
fazê-lo? Ela disse: Eu gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto. Kevin
anda falando em arrumar um quarto em sua casa, para que ela não morra no hospital. O
hospital quer que ela vá embora. Deram-lhe uma nova pílula e ela entrou em delírio.
Isso ocorreu quatro dias depois da "cortotomia". Eles gostariam que ela fosse para
outro lugar, porque até hoje ninguém aperfeiçoou uma "cancerotomia" infalível. E, a esta
altura, se tirassem todo o câncer, nada restaria a ela exceto as pernas e a cabeça.
Ele imagina como o tempo deve ser para ela: como algo que escapou ao controle,
como uma caixa de costura cheia de novelos espalhados pelo chão para um gato brincar. Os
dias no Quarto 312. As noites no Quarto 312. Eles amarram um barbante no interruptor da
campainha e no dedo indicador da mão esquerda, porque ela já não pode movimentar
suficientemente a mão quando acha que vai precisar da "comadre".
De qualquer maneira, não faz muita diferença, porque ela não pode sentir a pressão
lá embaixo; no interior de sua barriga bem poderia existir um monte de serragem. Ela
evacua na cama e urina na cama ― e só percebe que o fez quando sente o cheiro. Dos
setenta e cinco quilos que pesava, diminuiu para quarenta e dois e os músculos do corpo
estão tão flácidos que ela é apenas um saco vazio ligado ao cérebro, como um boneco de
criança. Haveria alguma diferença na casa de Kevin? Seria capaz de cometer homicídio? Ele
sabe que é homicídio. O pior tipo de homicídio ― o matricídio ―, como se ele fosse um
feto consciente num dos primeiros livros de terror de ficção científica escritos por Ray
Bradbury, decidido a virar a mesa e abortar o animal que o gerou.
De qualquer modo, talvez a culpa seja dele. Foi o Único filho nutrido dentro dela,
um bebê temporão, quase na época da menopausa. Seu irmão Kevin foi adotado quando um
médico sorridente disse a ela que jamais poderia conceber um filho. E, naturalmente, o
câncer que agora lhe destruía as entranhas começara no útero, como um segundo filho,
sombrio irmão gêmeo dele. A vida dele e a morte dela tinham começado no mesmo lugar.
Deveria ele não fazer o que já estava fazendo agora de forma tão lenta e desajeitada?
Vem dando a ela aspirina, às escondidas, para a dor que ela imagina sentir. Ela
guarda os comprimidos numa caixinha de balas, na gaveta da mesa de cabeceira do hospital,
juntamente com os cartões desejando pronto restabelecimento e os óculos que já não têm
serventia. Tiraram-lhe as dentaduras por medo que ela as enfiasse pela garganta abaixo e
morresse asfixiada, de modo que agora ela simplesmente chupa os comprimidos de aspirina
até ficar com a língua ligeiramente esbranquiçada.
Claro que ele poderia dar-lhe as pílulas; três ou quatro seriam suficientes. Cem
gramas de aspirina e trinta gramas de Darvon administrados numa mulher cujo peso
diminuiu trinta e três por cento em cinco meses.
Ninguém sabe que ele tem as cápsulas, nem Kev, nem a esposa. Ele pensa que
talvez tenham colocado um paciente na outra cama do Quarto 312, de modo que não haverá
motivo para preocupações. Pode escapar em segurança. Pensou que talvez isso fosse
realmente melhor. Se houver outra mulher no quarto, suas opções estarão eliminadas e ele
poderá considerar o fato como um sinal de anuência da Providência. Ele acha que...
― Você está com melhor aspecto esta noite.
― Estou mesmo?
― Claro. Como se sente?
― Oh, não muito bem. Não muito bem, esta noite.
― Vamos ver você mexer a mão direita.
Ela ergue a mão do lençol. Ela flutua um momento, de dedos abertos, diante de seus
olhos e toma a cair. Ele sorri e ela retribui o sorriso. Ele pergunta:
― Viu o doutor hoje?
― Sim, ele esteve aqui. É bondade dele vir todos os dias. Quer me dar um pouco
d'água, Johnny?
Ele lhe dá água por meio do canudinho flexível.
― É bondade sua vir aqui com tanta freqüência, Johnny. Você é um bom filho.
Ela está chorando outra vez. A outra cama está vazia, parecendo acusá-lo. De vez
em quando, um dos roupões listrados de azul e branco passa diante da porta, caminhando
pelo corredor. A porta do quarto está entreaberta. Ele tira delicadamente o copo da mão
dela, pensando como um idiota: Este copo está meio cheio ou meio vazio?
― Como vai sua mão esquerda?
― Oh, está ótima.
― Vamos ver.
Ela levanta a mão. Sempre foi canhota e talvez seja por isso que aquela mão se
recuperou tão bem dos devastadores efeitos da "cortotomia". Ela fecha o punho.
Flexiona os dedos. Estala levemente os nós dos dedos. Então, a mão torna a cair
sobre o lençol. Ela reclama:
― Mas não tenho sensação nenhuma na mão.
― Deixe-me ver uma coisa.
Vai ao guarda-roupa, abre-o e enfia a mão por detrás do casaco que ela usava ao
chegar ao hospital, a fim de pegar a bolsa. Ela mantém a bolsa no armário porque é
paranóica com relação a ladrões; ouviu dizer que alguns dos atendentes são verdadeiros
artistas no furto, capazes de levar tudo que conseguem ter ao alcance das mãos. Ela soube
através de uma das companheiras de quarto, que já recebeu alta há muito tempo, que uma
mulher internada na ala nova foi roubada em quinhentos dólares que escondia num sapato.
Ultimamente, a mãe dele tem sido paranóica a respeito de muitas coisas e, certa vez, lhe
disse que um homem se esconde sob sua cama na calada da noite. A culpa cabe em parte à
combinação de drogas que estão experimentando nela. Drogas que fazem a benzedrina que
ele tomava ocasionalmente na universidade parecer uma substância inócua. Pode-se
escolher à vontade nos armários trancados que ficam nas extremidades dos corredores, perto
das salas das enfermeiras: excitantes, sedativos, analgésicos e soporíferos. E a morte, talvez
― a morte misericordiosa como um doce cobertor negro.
As maravilhas da ciência moderna.
Ele leva a bolsa de volta à cama. Abre-a.
― Pode pegar alguma das coisas que estão aqui?
― Oh, Johnny, não sei...
Ele diz em tom persuasivo:
― Experimente. Por mim.
A mão esquerda dela se ergue do lençol como um helicóptero aleijado. Voa.
Mergulha.
Sai da bolsa com uma folha amarrotada de papel absorvente. Ele aplaude:
― Ótimo! Muito bem!
Mas ela vira o rosto para o outro lado.
― O ano passado, eu era capaz de puxar dois carrinhos carregados de pratos de
comida com estas mãos.
Se tem que existir uma ocasião, é agora. Faz muito calor no quarto, mas o suor na
testa dele é frio. Ele pensa: Se ela não pedir aspirina, eu não o farei. Não esta noite.
E sabe que se não for esta noite, nunca mais. Muito bem.
― Pode me dar duas das minhas pílulas, Johnny?
É como ela sempre pede. Ela está proibida de tomar qualquer remédio além da
medicação prescrita pelo médico, porque perdeu tanto peso que desenvolveu o que seus
amigos universitários que usavam tóxicos costumavam chamar de "uma pesada": a
imunidade do corpo fica a uma margem ínfima da dose letal. Mais uma pílula e a pessoa
morre. Dizem que foi isso que ocorreu com Marilyn Monroe.
― Trouxe algumas pílulas de casa.
― É mesmo.
― São ótimas para dor.
Estende a caixa para ela, que só consegue ler de muito perto. Ela franze a testa para
as letras grandes no rótulo.
― Já tomei antes esse tal Darvon. Não adiantou.
― Este é mais forte.
Ela ergue os olhos da caixa e o encara. Pergunta distraidamente:
― É mesmo?
Ele só consegue sorrir como um tolo. É incapaz de falar. E como a primeira vez em
que esteve com uma mulher: aconteceu no banco traseiro do carro de um amigo e quando
ele voltou para casa a mãe perguntou se ele se divertira ― e ele só conseguiu exibir aquele
sorriso tolo.
― Posso mastigá-las?
― Não sei. Pode experimentar uma.
― Está bem. Não permita que percebam.
Ele abre a caixa e retira a tampa de plástico do vidro. Puxa o algodão do gargalo.
Será ela capaz de fazer tudo isso com aquela mão esquerda aleijada? Eles acreditariam? Ele
não sabe. Eles talvez também não saibam. Talvez nem mesmo se importem.
Ele sacode o vidro, deixando cair meia dúzia de pílulas na palma da mão. Percebe
que ela o está observando. Meia dúzia é demais; até ela deve saber. Se ela disser algo a
respeito, ele guardará todas as pílulas de volta no vidro e lhe oferecerá uma contra dor de
artrite.
Uma enfermeira passa silenciosamente pelo corredor e a mão dele treme,
chacalhando as pílulas cinzentas, mas a enfermeira não olha para dentro do quarto a fim de
verificar como está passando a "garota da cortotomia".
A mãe dele não diz nada, limitando-se a olhar para as pílulas como se fossem
perfeitamente normais (se é que isto existe). Mas, por outro lado, ela jamais gostou de
celebrações; seria incapaz de quebrar uma garrafa de champanha em seu próprio barco para
batizá-lo.
― Lá vamos nós ― diz ele em voz perfeitamente natural.
E coloca a primeira pílula na boca da mãe.
Ela mastiga pensativamente a pílula com as gengivas até dissolver a cápsula de
gelatina.
Então, faz uma careta.
― Tem gosto ruim. Então, eu não...
― Não. Não é tão ruim.
Ele lhe dá outra. E mais outra. El á as mastiga com aquela mesma expressão
pensativa.
Ele lhe dá a quarta. Ela sorri e ele percebe, horrorizado, que a língua dela ficou
amarela.
Talvez se ele lhe der uma pancada na barriga ela vomite tudo. Mas não pode. Seria
incapaz de bater na mãe.
― Quer ver se minhas pernas estão juntas?
― Primeiro mastigue estas.
Dá-lhe a quinta pílula. E a sexta. Então verifica se as pernas dela estão juntas. Estão.
Ela diz:
― Acho que vou dormir um pouco, agora.
― Muito bem. Vou beber água.
― Você sempre foi um bom filho, Johnny.
Ele coloca o vidro na caixa e enfia a caixa na bolsa, deixando a tampa de plástico
em cima do lençol. Deixa a bolsa aberta ao lado da mãe e pensa: Ela pediu a bolsa. Eu a
trouxe e abri para ela, logo antes de ir embora Ela disse que podia tirar da bolsa o que
desejava. Disse que chamaria a enfermeira para tornar a guardar a bolsa no armário.
Ele sai e bebe água. Há um espelho acima do bebedouro e ele põe a língua para
fora, examinando-a.
Quando volta ao quarto, ela está dormindo com as mãos juntas. As veias das mãos
são grossas e saltadas. Ele a beija na testa e os olhos dela se mexem sob as pálpebras, mas
não se abrem.
Sim.
Ele não sente diferença alguma, nem para melhor nem para pior.
Encaminha-se para a porta do quarto e se lembra de mais uma coisa. Volta para
perto da mãe, retira a caixa da bolsa, tira o vidro da caixa e o limpa cuidadosamente na
camisa.
Então, aperta as pontas dos dedos da inerte mão esquerda da mãe de encontro ao
vidro.
Então, coloca-o de volta no lugar e sai rapidamente do quarto, sem olhar para trás.
Volta para casa e espera o telefone tocar, desejando ter dado outro beijo nela.
Enquanto espera, assiste à televisão e bebe muita água.Anonymousnoreply@blogger.com0