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domingo, 21 de maio de 2017

Através da fechadura 2/3

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Através da fechadura - parte 1/3


A partir do momento que você passa a escutar a madrugada, em seu âmago, que você considerava mais néscio, a voz, crônica, suada e encolerizada, um tanto crepitada aos longes, vós entrais em pânico. Gradativamente, em, pânico. Associações de três palavras que provocam um efeito elástico e borrachudo, que se estica e rebenta de volta em você, a cada vez, com uma dor ainda maior.
Foi assim que aprendi sobre a loucura, mas não foi bem assim que a senti a primeira vez e reagi a ela.

A primeira nós nunca esquecemos,não é mesmo?


Albert Hickham estava dando aula de história, com aquela gravatinha que eu achava meio gay e com os tênis, - como sempre, bem polidos e engraxados, - na hora em que cheguei. Vivenciei um dos melhores momentos da nossa amizade naquele instante; quando ele disse que Alexandre, o grande, era tão ridículo para tentar combater um exército que ele sabia que ia perder, que morreu, como havia previsto, também, de acordo com algumas tortas estórias, e também, que se parecia comigo; disse isso enquanto eu estava-lhe mostrando o dedo do meio através da vidraça quadricular, às costas dos garotos que, possivelmente, não tinham mais que doze anos; os dois dedos do meio se transmutaram em um espaldar de mãos que se remexiam, fazendo-me, um monstro nada aterrorizante para todos. E como era de se esperar;
Todos riram.

Lembro-me bem de sairmos para tomar café em algum quarteirão adiante da Spring West Ville e, com uma área reservada, com um telão grande exibindo a novela da tarde, e um logo que dizia que fumantes podiam fumar na p* que p*. O dono dali podia ter uma boutique em outro lado do mapa, mas mesclando um restaurante a ele, burrice pura. Primeiro que ninguém mais, hoje em dia, anda em boutique. Segundo que, 98% da clientela de bares e restaurantes são de fumantes. O urbe da fumaça. Se tira o cigarro, você tira toda alma da cidade.
E a pergunta fica: Vai lucrar com o quê?
Adventiciamente, esse restaurante/boutique, era um dos lugares mais ricos da cidade. Sobre todo o perfil de seu dono, que ocasionalmente transitava dentre fantasma e italiano, poderíamos concluir que se não fosse um ex-coveiro da Itália, então, tinha algo a ver com a mafia de lá.
Ele fez um comentário a parte:
- Quem seria maluco de colocar uma boutique junto a um restaurante? - disse ele, rindo, com sua voz mais sussurrada e recuante. Seu velho típico jeito de ser.
- Eu não sei. Mas... O dono, o sr. Hud, parece um cara em busca de dinheiro a todo instante. Mais do que sua própria saúde. - Eu disse.
- É aquele cara que estava no hospital com uma mancha roxa nos raios-x e precisava de dinheiro para cobrir todos os custos da cirurgia?
- Não. Esse é Thomas. Seu irmão a propósito. Esse cara... - fiz uma pausa enquanto chegávamos em frente da Magazine's Heros and Jokes, e nos deparávamos com uma versão do coringa bem mais sombria e esquisita que a do habitual. - Nunca se viu mais gordo.
- Bizarro. - nossos olhos, dois "adultos", em frente de uma loja de revistinhas em quadrinhos, movediços sobre aquilo ali. - E você não tem nada pra dizer? - Sua voz tornou a recuar e ficar suave e solícita. Sempre conseguia fazer você lembrar de algo quando queria e deixava sempre a desejar, onde o assunto se tornava vago e não-propício.
- O que você quer dizer? - Perguntei.
- Nada. Apenas... À memória estagnada. - E ele tinha a filosofia da composição nos olhos e na fala.

Eu tinha me lembrado. Tão rápido quanto um Flash;produzido por um farol e sendo visualizado de um barco a nove quilômetros de distância.
- A loja de artefatos.
- Isso. A loja. E os artefatos em seguida.
Às vezes ele parecia ter usado alguma coisa entorpecente. Alguma droga, não das pesadas, mas daquelas que ou te faz explodir mentalmente, ou te transforma num puta gênio. Sua voz ficava tão serena e, conquanto não estivesse zangado, parecia absorto da própria vida. Cruzamos o McDonald e a loja de vinil vizinha, pela rua Bangla até a rua Zimmermann. Paramos dois ou três quarteirões depois, dez minutos após, com um café em cada mão, tomamos o rumo da Parade & Curio's life. Artefatos e melanina, piscando em rosa fluorescente e alterando para branco-gelo, quando o Sr. Jay Air decidia gastar um pouco da energia, que defendia, tão rigorosamente. Durante a noite era incrível como a loja parecia estar inativa, quando ele, não acendia as luzes de dentro da loja e ficava iluminado apenas pela luz de uma tv de nove polegadas em cima do balcão. Chegada às escondidas, ele assemelhava-se a um fantoche inócuo.
Obstinemo-nos à porta, ansiosos.
- Você acha que ele conseguiu consertar? - Perguntou meu amigo, sua voz parecia impregnada de algumas das caixas de som que estavam anunciando Picles com Batatinha e molhos, a duas quadras dali.
- Eu acho que sim. Ele é muito bom. - Respondi.
- Mas... Levamos a caixa para nove pessoas, das mais renomadas do estado de Ohio e Mississípi, ninguém deu jeito. Por que razão ele conseguiria?
Não respondi. Nem mesmo eu sabia. Por outro lado, o que era ser "renomado" na área de antiguidades? Apenas não passar a mão no bolso dos clientes, ou marcar um encontro em um lugar desértico e te roubar? Absolutamente não.
Aquela razão estava congestionada e soprada, de um lado a outro da barriga até a mente, e vice-versa, prontamente, com inúmeras dúvidas e um certo aperitivo inconsistente e cruel de monotonia. Onde a razão era uma Lua e as dúvidas que a acompanhavam, em uma viagem condensante no espaço, eram as estrelas. Está aí duas palavrinhas que se conectam e se parecem, quando o assunto é descrença.
O Sr. Jay Air estava altercando com alguém em um telefone tão antigo quanto ele, que possivelmente beirava os noventa com algum tipo de magia, cujo acreditávamos na época. E compreenda, hoje, acreditamos muito mais. Na realidade, apenas eu agora. Ele não morreu. Você vai saber:
Calma lá, calma lá. Tudo no seu devido tempo - Cacete, que frase-intérprete essa!
Quando nos fitou, chegar pelo o balcão, arrastando os dois dedos por sobre, com dois copos de café nas mãos e com aqueles olhares incertos e famintos por respostas, disse algo no telefone com extrema rapidez. Bateu o pé e sacudiu a cabeça, tentando se livrar de um inseto enorme, ao que parecia, em cerimônia, gesticulou para o fundo da loja. Óbvio que sabíamos o que significava. Se fosse a primeira vez, e tivéssemos entrado primeiro, e ele fechando as portas da loja com controle remoto e acionando o fumê automático pelo mesmo, teríamos medo. Acharíamos que nos estupraria ou nos mataria, ou nos estupraria e mataria em seguida. Tínhamos dezessete anos e, Albert, estava no segundo mês de professor voluntário para o ensino fundamental. E eu, era apenas um garoto aficionado por histórias hostis da segunda guerra mundial e modelitos de aviões que partiam desde o mesmo, até os mais recentes e comerciais. Até tinha coisas instaladas no meu computador, simuladores e um rádio com fones de ouvido, que passava sempre a mesma informação a respeito dos comandos a se seguir, a partir das ordens da torre. Era uma voz gravada, obviamente, e a torre não existia, contundentemente óbvio, mas eram ambas, reconfortantes e disparavam-me a uma criatividade imensa.
E incredulamente, era essa que eu ouvia agora.
Jay Air, trouxe algo dentro de um pacote, pelos contornos, e tamanhos exatos, sabíamos do que se tratava:
A caixa.
- Não abram antes de chegar em casa e fazer todo o ritual. Está tudo nos lugares, mas não deu pra ajeitar tudo exatamente.
Albert me puxou pelo casaco. Puxou de novo. E mais uma vez, enquanto Jay Air falava, e, ao fitá-lo e observar seus olhos se contorcendo em naturalidade óbvia, entendi. Ele tinha uma pergunta, mas não iria fazê-la. Dependia de mim. Tinha medo de Jay.
- O que isso significa? - Albert me fitou mais dócil, era isso. Ou bem próximo.
Ele tossiu, e tossiu, como se não tivesse fim. E depois de beber uma água proposta pelo bebedor ao seu lado, disse, em pausas;
- Vocês, não entendem, - Cof*Cof* - essa caixa, não pode ser consertada na íntegra. Imagine abrir uma porta - Cof*Cof* - e imagine o outro lado dela - Cof*Cof* - dando para um lugar totalmente normal. E agora, depois de mexer em suas configurações, essa porta... - Cof*Cof* e mais água. - abrindo para um lugar totalmente novo. Ela funciona à base de emoções, eu acho. Então, testei-a uma vez, e desejo nunca mais voltar àquele lugar de novo. Me dá calafrios só de pensar. Então - cof* - me desculpem. Mas é impossível voltar com todos aqueles parâmetros. Mas tudo o que reclamaram, do impulso, da imagem e sons, não irá incomodá-los mais. Entretanto - cof - aquele mundo, acredito que foi perdido, para sempre.
Aquilo me gerou uma flechada, tão pontuda e confrangedora, que me deu vontade de ter voltado atrás, penhorado um pouco mais, e aceitar aquela proposta de dois mil pela caixa, com um cartão fidelidade de garantia (que pela excentricidade do coroa, era um prêmio e tanto) e voltar pra casa com o bolso cheio. Olhei para Albert.
Faltava um passo para irromper em lágrimas. Os olhos tinha se tornado vidrantes e aguados. Mas sem necessidade do fluxo saltar fora. Pelo menos ainda não.
- Garotos... - disse Jay, segurando pelos nossos ombros. Eu com uma caixa pesada nas mãos e os joelhos um pouco flexionados para aguentar o peso, e Albert, com um braço segurando o bíceps do outro, de ombros encolhidos e cabeça baixa. Sendo coberto parcialmente pela cabeleira. -... Vocês são novos. Podem fazer algo bom e diferente, um tanto inusitado. Sei que deram duro naquele lugar. Pensem comigo... - Estávamos chegando a entrada principal e os vidros começaram a clarear-se, me dando uma leve sensação de cegueira. - Quantos jovem possuem uma coisa igual a essa? Ou melhor, quantos dos seus amigos tem conhecimento sobre misticismo e necromancia, como vocês, se quiserem?
Fazíamos apenas barulhos {de hum, aham} para mostrar que entendíamos.
- Vão pra casa - continuou - explorem cavernas, ou os tempos antigos, até mesmo os modernos futurísticos de vinte anos a frente. Tudo bem?
A mesma onomatopeia audível para apontar compreensão.
Voltamos
                (Calados)
até em casa.

Dividíamos um apartamento, dois quartos e dois banheiros, duas belas suítes e uma cozinha pequena, que para alguém entrar, alguém terá de sair, afinal, nada é perfeito. Não estava bom pra gente. Estava simplesmente fantástico. Dois jovens, com salários próprios (eu ganhava mesada do meu pai, e isso era um salário, não era?) e uma casa só deles. Não. Não bebíamos e muito menos trazíamos mulheres pra lá. Não por falta de tentativa e vontade, que tínhamos em lotes; Éramos do tipo que garotas queriam distância. Fazíamos "a média louca" dos tempos modernos. E o que posso fazer diante disso? Afinal, nada de hoje me cativa. Prisões telefônicas, alçapões de mentalidades juvenis e pretensões, nada artísticas, a respeito do mundo atual. Temos tantas referências e nada fazemos. Isso é uma droga. Não concorda comigo? Vejo meus filhos nisso, lembrando que quando tinha essa idade, eu corria pela praia, chutava latas, machucava o meu pé, e sorria, enquanto o dedão sangrava (mas não passava aquele maldito anti-séptico que ardia como o fogo de Satã), disfarçando a dor. Prisões letais de tecnologia construtiva (e destrutiva ao mesmo modo) que te absorvem e te esquecem, se você fracassar e desistir de aprender mais e avançar com ela. Para tudo se tem um aparato. Isso é inútil. Ajuda. Mas também atrapalha. ARHGGGGGGG! Sei que não faz sentido.
Entretanto é isso.

Nossos pais estavam nos esperando. Minha mãe, pelo menos, o outro estivera durante anos em uma viagem que parecia infinita e que o deixava invisível pra mim. O dinheiro parecia ter sido mandado por um tio distante que me odiava e só fazia isso por não ter que ser obrigado a dar mais pela justiça, tinha um bilhete, dizendo, "Feliz natal e se cuide, papai te ama" e por isso parecia mais um parente longínquo do que alguém próximo. A mãe e pai de Albert. Por um momento, acredito eu, pensamos sobre estarmos muito encrencados e que, iríamos ser presos. Mas não. Quando os três abriram um sorriso, em fila indiana se dissipando e abrindo uma fenda, que através vimos o bolo, eu me lembrei. Aniversário meu. Caramba. Eu esqueci. Senti vontade de socar Albert, mas, estava segurando a caixa. Repassei-a para ele, e ele a guardou, indo em direção ao corredor do meu quarto. Iria estacionar aquilo embaixo da minha cama. Era onde sempre ficava. Voltou. Bateram parabéns de uma maneira alegre, e saíram tão rapidamente, levando metade do bolo em vasilhames de plásticos que eram nossos e estavam quase extintos naquela casa, que, diante da situação, fiquei triste.
- Eles te fodem e vão embora, não é? - Disse Albert. Nos olhamos e rasgamos risos como se não tivéssemos traseiros.
- E sem lubrificar. - Completei e rimos até rolarmos pelo chão, durante metade de uma hora.
Foi a penúltima vez que o vi sorrir.

14 de novembro de 2005 -


Estávamos com cerca de dezenove anos cada um. Era nossa terceira tentativa de abrir aquela caixa. Fizemos todos os rituais. A cada vez, na primeira e segunda, Albert parecia mais pálido, porém mais sério, e um tanto... Não sei... Vacilante ou Funesto? Talvez fosse uma dessas, a palavra certa na época.
Lembro-me de ter dito que não o queria participando mais daquilo. Que estava longe do seu alcance, conseguir quaisquer êxitos ali. Podia acabar morrendo.
- Você não me quer aqui, seu merdinha? Não me quer por que você quer todo o mundo pra si, não é? Mas eu tenho minha parte nisso. Investimos metade de nossas forças, não foi? Sim, foi. E não vamos acabar com essa irmandade agora, não é? - dizia isso enquanto suas mãos tremiam e seus olhos estavam querendo saltar do rosto. Segurei-o imediatamente e o mostrei onde estava seu erro, e seu paroxismo. E ele... Bem... Disse que era ausência de sono. Que não dormia a três dias. Faculdade com trabalhos em excesso e ele com pouco ânimo. As crianças, que já estavam fora da pré e dentro da adolescência, irritando-o e ele sendo afastado por seis meses. Por agressão. A-g-r-e-s-s-ã-o. Preste atenção nesta palavra, um cara meigo e que todos achavam que éramos um casal, somente por sua feminidade, agredir alguém. E ser afastado. Ele?  Nunca vi algo assim, que não fosse em um filme de terror ou história contada e desenhada por Alan Moore em alguns de seus quadrinhos.
Eu acredito que levaria um soco naquele momento. E foi quando ocorreu.
A luz se acendeu na caixa; o portal.
- E você não acreditava, não é? - ironizou Al. Nos raios que gritavam da caixa, ele parecia não ter nariz, de tão pálido.
Aquela exata luz, que convergia e, ao mesmo tempo, em que há uma menor no seu centro, convergia, era o que chamávamos de portal cavernoso. Hoje em dia eu chamo de maldição tênue. Iluminou nossos olhos e mostrou-nos a chave. Não a mesma, prateada e com traços azuis celestes, que daria para nosso mundo anterior, mas sim, uma flamejante e esverdeada, com tons cítricos misturados as nebulosidades de luzes autofágicas. Eu disse naquele exato momento para não entrar. Além do show canibalista que as luminosidades produzidas pela chave, que pendia sozinha, em meio ao ar, eu senti algo. Senti que aquilo não era sinônimo de coisa boa.
- Vê? É o paraíso. - disse Al. Seus olhos brilhavam, e receavam alguma catatonia, intrínseca além da própria estrutura. Afora; sua barba mal feita, as bolsas que se formavam abaixo dos olhos e a pele avermelhada, irritada, ele parecia um menino. Aqueles que ganharam o brinquedo sonhado no natal.
Levemente sua mão foi deslanchando do braço em direção a chave, dava alguns tiques no caminho, ademais, continuava. Eu disse não. Eu...
- Não Al, não. Não é algo legal...
me lembro de ter dito.
"mas... é lindo" - também recordo de ter escutado.
Juro que aquela merda sorriu. Não tinha dentárias. Não possuía formas bucais. Mas sorriu. Quando o bebê encontra o pai, e abre os braços, sorrindo - aquela chave encontra seu fiel portador, feliz. Aquela luz se tornou a mão, que se articulou pela de Al e, como simbiose, que a apertou, estagnou-se à ele.
Seus olhos crepitais, gradativamente, de uma maneira idosamente louca, se virou para mim.
- O que você acha que ela abre? - perguntou com sua voz somada.
Eu percebi. Não era ele mais, mas;
- O que disse?
Sua voz se tornou singular novamente, e me aparentou loucura da minha parte.
- A chave. O que você acha que ela abre?
Boa pergunta. Realmente, o que ela deve abrir?
As sensações. Não era assim que os mundos se mostravam?
A caixa foi auto multando-se, em novas dobraduras, girando sob uma das oito pontas dos quatro lados de seu cubo, e como sempre, exibiu seu painel. Era cinza por completo, sem vida, não tinha inscrições e muito menos cerimônias decorrentes. Apenas, o lugar para pôr a chave. Uma fechadura cinza um pouco mais laminada.

{O que será que ela abre?}
[sua voz foi expelida em duplicidade]
"Ela funciona à base das emoções, eu acho"
Eu acho.
A chave.
(... e desejo nunca mais voltar àquele lugar de novo)

- O que você sente, Al?
Suas mãos abanavam no mesmo lugar e compulsivamente, depois, fechando-se em um punho.
- Poder.

O dia não tinha começado bem aos arredores daquela cidade. Perquiria um crepúsculo, através das nuvens rosadas de início do Sol pela manhã. A Lua, continuava ali, entremeada às populações gasosas e logo abaixo, alguns graus, da grande esfera amarelo-indo-ao-tom-alaranjado.
Demorou para mim acordar, e obviamente, não assisti àquele show de cores.
Quando acordei. Me deparei com uma simples visão inquisitiva;
(onde está você, Albert?)
Se os estofados estavam debruçados de ponta cabeça, e a tv da sala quebrada, o lustre que pertencia àquele imóvel desde muito antes de morarmos lá, estava espatifado e esmigalhado como um pão velho em cima do fogão...
Então é simples...
Onde está Albert?
Louco misterioso, uma vítima da charada cruel, o morto-vivo vive dentro de cada um de nós... Eu descobri como, às vezes, damos nossos sonhos como perdidos. Pois cada homem que assina o contrato da vida, estipula seu crescimento através dos sonhos. E quando não os tem. Morre. Se torna um morto-vivo, vítima dos tempos. Albert não estava em um ou outro casos. Não sei definir bem. Até hoje eu não sei como explicar; àquela nebulosa de branco e preto, atravessada pelos seus olhos, me mostravam uma fechadura, pelos seus globos escancarados, eu vi o que se passava ali dentro.
Eu tive coragem de olhar através da fechadura -


- Meu Deus, Albert. Que mer* você fez a si?


quinta-feira, 23 de março de 2017

A cidade está a adormecer -

A cidade inteira dorme -



O RELÓGIO DO TRIBUNAL soou sete vezes. Os ecos das badaladas enfraqueceram.
Crepúsculo quente de verão aqui no norte da zona rural de Illinois, nesta pequena cidade muito distante de tudo, cercada por rio e uma floresta e uma campina e um lago. As calçadas ainda fervendo. As lojas se fechando e as ruas sombreadas. E havia duas luas: a lua do relógio com quatro faces para os quatro cantos da noite, acima do tribunal negro e solene, e a lua de verdade se elevando no leste escuro, em sua brancura de baunilha.
Na botica, os ventiladores sussurravam no teto alto. À sombra rococó das varandas, sentavam-se, invisíveis, algumas pessoas. Ocasionalmente, o brilho rosado das pontas incandescentes dos charutos.
As portas de tela rangiam as molas e batiam. No calçamento purpúreo das ruas das noites de verão, corria Douglas Spaulding; cães e meninos seguiam-no.
“Oi, senhorita Lavinia.”
Os meninos se afastaram, trotando. Acenando calmamente para eles, Lavinia Nebbs estava sentada sozinha com um copo alto de limonada fria entre os dedos brancos, levando-o aos lábios, bebericando, esperando.
“Cheguei, Lavinia.”
Ela se virou e lá estava Francine, toda de branco-neve, ao pé da escada da varanda, cheirando a zínia e hibisco.
Lavinia Nebbs trancou a porta da frente e, deixando na varanda o copo de limonada meio vazio, disse:
“Está uma noite agradável para ir ao cinema”.
Elas desceram a rua.
“Onde estão indo, meninas?”, gritaram as senhoritas Fern e Roberta de sua varanda do outro lado da rua.
Lavinia respondeu através do oceano de escuridão:
“Ao Cine Elite, ver Charlie Chaplin”.
“Não sairíamos numa noite assim”, resmungou a senhorita Fern. “Não com o Solitário por aí, estrangulando mulheres. Preferimos nos trancar no guarda-roupa com uma arma.”
“Ah, que bobagem.”
Lavinia escutou a porta das velhas senhoras bater e trancar-se, e continuou a se afastar, sentindo o bafo quente da noite de verão em ondas tremulantes por sobre as calçadas tostadas. Era como andar sobre uma crosta dura de pão recém-assado. O calor pulsava sob os vestidos, ao longo das pernas, com uma sensação de invasão furtiva e não de todo desagradável.
“Lavinia, você não acredita no que dizem do Solitário, acredita?”
“Essas mulheres gostam de ver as próprias línguas dançando.”
“Mas Hattie McDollis foi morta dois meses atrás, Roberta Ferry um mês antes, e agora Elizabeth Ramsell desapareceu...”
“Hattie McDollis era uma doidivanas. Aposto que fugiu com algum viajante.”
“Mas as outras, todas elas, estranguladas, as línguas para fora da boca, dizem.”
Elas estavam de pé na beira da ravina que corta a cidade ao meio. Atrás delas, estavam as casas de luzes acesas e música; à frente havia profundeza, umidade, vaga-lumes e escuridão.
“Talvez não devêssemos ir ao cinema esta noite”, disse Francine. “O Solitário pode nos seguir e nos matar; eu não gosto dessa ravina. Olhe só, olhe!”
Lavinia olhou, e a ravina era um dínamo que nunca parava de funcionar, dia e noite; havia um grande zumbido incessante, um constante zunido e murmúrio de criaturas, insetos e vida vegetal. Cheirava a estufa, vapores secretos e areias movediças. E sempre o dínamo negro zumbindo, com fagulhas, como uma forte corrente elétrica, onde pirilampos se moviam no ar.
“Não serei eu voltando por esta velha ravina, tarde da noite, tão tarde assim; será você, Lavinia, você descendo as escadas e atravessando a ponte, e talvez o Solitário ali.”
“Bobagem!”, disse Lavinia Nebbs.
“Será você sozinha pelo caminho, escutando seus sapatos, não eu. Você totalmente só no caminho de volta para casa. Lavinia, não sente solidão morando naquela casa?”
“Solteironas adoram morar sozinhas.” Lavinia apontou para o caminho sombreado e quente que descia escuridão adentro. “Vamos pegar o atalho.”
“Estou com medo!”
“É cedo. O Solitário só sai mais tarde.”
Lavinia pegou a outra pelo braço e levou-a pelo caminho tortuoso para dentro da quentura de grilos e sons de sapos e silêncio delicado como mosquitos. Elas roçaram a grama chamuscada de verão, carrapichos arranhando seus calcanhares expostos.
“Vamos correr!”, ofegou Francine.
“Não!”
Elas viraram uma curva no caminho... e lá estava.
Na profunda noite murmurante, à sombra das árvores cálidas, como se tivesse se deitado ao ar livre para apreciar as pálidas estrelas e o vento brando, as mãos de cada lado como os remos de uma delicada embarcação, jazia Elizabeth Ramsell!
Francine gritou.
“Não grite!”, Lavinia estendeu as mãos para segurar Francine, que estava choramingando e engasgando. “Pare! Pare!”
A mulher estava deitada como se flutuasse ali, o rosto iluminado pela lua, os olhos arregalados e vidrados, a língua esticada para fora da boca.
“Ela está morta!”, disse Francine. “Ai, ela está morta, morta! Ela está morta!”
Lavinia estava no meio de milhares de sombras quentes, com os grilos estrilando e os sapos coaxando alto.
“É melhor chamar a polícia”, ela disse, finalmente.
***
“Me abrace, Lavinia, me abrace, estou com frio, ai, eu nunca senti tanto frio em toda a minha vida!”
Lavinia abraçou Francine, e os policiais abriam caminho pelo capim crepitante, fachos de lanternas se moviam em todas as direções, vozes se misturavam, e a noite avançava rumo às oito e meia.
“Parece dezembro. Preciso de um agasalho”, disse Francine, olhos fechados, agarrada a Lavinia.
O policial disse: “Acho que já podem ir, senhoras. Terão de passar na delegacia amanhã para responder a mais algumas perguntas”.
Lavinia e Francine se afastaram da polícia e do lençol sobre aquela coisa delicada em cima da grama da ravina.
Lavinia sentia o coração bater alto dentro do peito e também ela estava com frio, um frio de fevereiro; havia flocos de uma neve repentina por todo o seu corpo, e a lua branqueava ainda mais seus dedos enrijecidos, e ela se lembrou de ter conversado sozinha com os policiais, enquanto Francine não parava de soluçar agarrada a ela. Uma voz perguntou de longe:
“Querem que alguém as acompanhe, senhoras?”.
“Não, nós damos conta”, disse Lavinia a ninguém, e continuaram andando.
Passaram pela acariciante e murmurosa ravina, a ravina de sussurros e estalidos, o pequeno mundo da investigação diminuindo de tamanho atrás delas, com suas luzes e vozes.
“Nunca vi ninguém morto antes”, disse Francine.
Lavinia examinou o relógio como se estivesse a mil quilômetros de distância, em um braço e pulso impossivelmente distantes.
“São apenas oito e meia. Vamos pegar Helen e ir para o cinema.”
“O cinema!”, disse Francine abruptamente.
“É do que precisamos. Temos de esquecer isso. Se formos para casa agora, lembraremos. Não é bom lembrar. Vamos ao cinema como se nada tivesse acontecido.”
“Lavinia, você não fala sério!”
“Nunca falei tão sério em minha vida. Agora precisamos rir e esquecer.”
“Mas Elizabeth está lá atrás — sua amiga, minha amiga.”
“Não podemos ajudá-la; só podemos nos ajudar. Venha.”
Elas começaram a subir a encosta da ravina, pelo caminho de pedras, no escuro. E de repente, ali, barrando a passagem, muito imóvel, parado no mesmo lugar, sem vê-las, mas olhando para baixo, para as luzes em movimento e o corpo, e escutando as vozes dos policiais, estava Douglas Spaulding. Ele estava plantado ali, branco como um cogumelo, as mãos de lado, olhando fixo para o interior da ravina.
“Vá para casa!”, gritou Francine.
Ele não ouviu.
“Você aí!”, berrou Francine. “Vá para casa, saia daqui, ouviu? Vá para casa, vá para casa, vá para casa!”
Douglas virou bruscamente a cabeça, olhou para elas como se não estivessem ali. Sua boca se mexeu. Ele deu um gemido. Então, girou rapidamente e correu. Corria em silêncio, subindo as colinas distantes, penetrando a tépida escuridão.
Francine chorava e soluçava e, de novo, chorava e soluçava e, ao mesmo tempo, continuava a caminhar com Lavinia Nebbs.
***
“Aí estão vocês! Pensei que as senhoras nunca viriam!”, disse Helen Greer, batendo o pé no degrau da escada de sua varanda. “Vocês só estão uma hora atrasadas, só isso. O que aconteceu?”
“Nós...”, Francine começou.
Lavinia apertou com força o braço dela.
“Houve uma confusão. Alguém encontrou Elizabeth Ramsell na ravina.”
“Morta? Ela estava... morta?”
Lavinia assentiu. Helen ofegou e levou a mão à garganta.
“Quem a encontrou?”
Lavinia segurou firmemente o pulso de Francine.
“Não sabemos.”
As três jovens, ali, na noite de verão, entreolharam-se.
“Preciso ir para casa e trancar as portas”, disse Helen, finalmente.
Por fim, ela foi pegar uma blusa de frio, pois, embora ainda estivesse quente, também reclamou da súbita noite de inverno. Enquanto Helen estava ausente, Francine sussurrou freneticamente:
“Por que você não contou a ela?”.
“Para que afligi-la?”, disse Lavinia. “Amanhã. Amanhã haverá bastante tempo.”
As três mulheres caminharam pela rua sob as árvores escuras, passando por casas que eram subitamente trancadas. Com que rapidez a notícia havia se espalhado para fora da ravina, casa a casa, varanda a varanda, telefone a telefone. Agora, ao passar, as três mulheres sentiam que olhos as fitavam através das cortinas das janelas, enquanto trancas eram fechadas com estrépito. Que estranha a noite de sorvete no palito, a noite de baunilha, a noite de sorvete cremoso em potes, de pulsos untados de loção contra mosquitos, a noite de crianças correndo, agora repentinamente puxadas para longe de suas brincadeiras e isoladas atrás de vidros, atrás de madeira, os sorvetes derretendo-se em poças de lima e morango, caídos nos lugares de onde as crianças foram arrebatadas e levadas para dentro de casa. Estranhos os cômodos quentes com gente suada, muito apertada no fundo deles, atrás de maçanetas e aldravas de bronze. Tacos e bolas de beisebol jazem sobre gramados sem marcas de pés. O traçado a giz inacabado de um jogo de amarelinha sobre o chão quente e cozido da calçada. Era como se, instantes antes, alguém houvesse previsto frio glacial.
“Somos loucas de ficar fora de casa em uma noite assim”, disse Helen.
“O Solitário não irá matar três moças”, disse Lavinia. “Grupos dão segurança. E, além disso, é muito cedo. Os assassinatos sempre acontecem a intervalos de um mês.”
Uma sombra atravessou seus rostos aterrorizados. Um vulto assomou por detrás de uma árvore. Como se alguém tivesse desferido um golpe terrível sobre um órgão, com o punho, as três mulheres gritaram em três diferentes tons estridentes.
“Peguei vocês!”, uma voz retumbou.
O homem saltou na direção delas. Apareceu na claridade, rindo. Apoiou-se em uma árvore, apontando frouxamente para as moças, novamente rindo.
“Olhem! Sou o Solitário!”, disse Frank Dillon.
“Frank Dillon!”
“Frank!”
“Frank”, disse Lavinia, “se você fizer uma criancice dessas de novo, tomara que lhe encham de tiros!”
“Isso é coisa que se faça!”
Francine começou a rir histericamente.
Frank Dillon parou de sorrir.
“Me desculpem.”
“Vá embora!”, disse Lavinia. “Não soube de Elizabeth Ramsell — foi encontrada morta na ravina. E você andando por aí, assustando mulheres! Não fale mais com a gente.”
“Ah, então...”
Elas começaram a se afastar. Ele fez menção de segui-las.
“Fique bem aqui, senhor Solitário, e fique dando sustos em si mesmo. Vá dar uma olhada no rosto de Elizabeth Ramsell e veja se é engraçado. Boa noite!”
Lavinia levou as outras duas pela rua cheia de árvores e estrelas; Francine segurava um lenço contra o rosto.
“Francine, foi só uma brincadeira”, disse Helen, voltando-se para Lavinia. “Por que ela está chorando tanto?”
“Nós lhe contaremos quando chegarmos à cidade. Vamos ao cinema, não importa o que aconteça! Para mim chega! Venham já, peguem seu dinheiro, estamos quase lá!”
***
A botica era uma pequena poça de ar parado em que os grandes ventiladores de madeira movimentavam ondas olorosas de arnica e tônicos e refrigerante em direção às ruas calçadas de tijolos.
“Preciso de um tostão de balas de hortelã”, disse Lavinia ao boticário. O rosto dele era pálido, de feições duras, como todos os rostos que elas haviam visto nas ruas semivazias. “Para comermos no cinema”, disse Lavinia, enquanto o boticário pesava um tostão da guloseima verde, usando uma concha de prata.
“As senhoritas estão mesmo bonitas esta noite. A senhorita Lavinia parecia bem-disposta essa tarde, quando entrou para tomar um chocolate batido. Tão bem-disposta e simpática que alguém indagou sobre a senhora.”
“É?”
“Um homem sentado junto ao balcão... Observou-a sair e me perguntou: ‘Quem é aquela?’. Ora, aquela é Lavinia Nebbs, a moça solteira mais bonita da cidade, eu disse. ‘É linda’, ele disse. ‘Onde ela mora?’.”
Nesse momento, o boticário fez uma pausa, desconfortável.
“O senhor não fez isso!”, disse Francine. “O senhor não lhe deu o endereço dela, espero. Não deu!”
“Acho que não pensei direito. Eu disse: ‘Ah, lá em Park Street, sabe, perto da ravina’. Um comentário casual. Mas agora, à noite, depois que encontraram o corpo, segundo me contaram um minuto atrás, pensei: ‘Meu Deus, o que fiz!’”
Ele entregou o embrulho, cheio demais.
“Seu tolo!”, gritou Francine, e lágrimas encheram seus olhos.
“Desculpe. Mas talvez não seja nada.”
Lavinia estava ali com as três pessoas olhando para ela, olhando fixamente para ela. Não sentia nada. Exceto, talvez, um ligeiro formigamento de excitação na garganta. Ela entregou o dinheiro, automaticamente.
“As balas são de graça”, disse o boticário, virando-se para folhear alguns papéis.
“Bom, sei o que vou fazer neste mesmo instante!”, Helen saiu da botica a passos largos. “Vou chamar um táxi para nos levar para casa. Não farei parte de nenhum grupo de busca por você, Lavinia. Aquele homem não tinha boas intenções. Perguntando sobre você. Você quer ser a próxima a ser morta na ravina?”
“Era só um homem”, disse Lavinia, virando-se em um lento círculo para olhar a cidade.
“Frank Dillon também é um homem, mas talvez ele seja o Solitário.”
Notaram que Francine não havia saído da loja junto com elas e, ao se voltarem, viram-na chegando.
“Eu fiz com que ele me desse uma descrição... o boticário. Que ele me contasse como era o homem. Um estranho”, ela disse, “de terno escuro. Meio pálido e magro.”
“Estamos todas exaustas”, disse Lavinia. “Eu simplesmente não vou pegar um táxi se você conseguir um. Se sou a próxima vítima, assim seja. Há tão pouca excitação na vida, especialmente para uma mulher solteira de trinta e três anos, então não se importem se eu aproveitá-la. De qualquer forma, é tolice. Não sou bonita.”
“Ah, você é sim, Lavinia; você é a moça mais adorável da cidade, agora que Elizabeth está...” Francine parou. “Você mantém os homens à distância. Se pelo menos relaxasse, teria se casado alguns anos atrás!”
“Pare de choramingar, Francine! Chegamos à bilheteria, estou pagando quarenta e um centavos para ver Charlie Chaplin. Se vocês duas quiserem um táxi, vão em frente. Vou me sentar sozinha e voltar para casa sozinha.”
“Lavinia, você está louca; não podemos deixar que você faça isso.”
Elas entraram no cinema.
A primeira sessão tinha terminado, era hora do intervalo, e o auditório mal iluminado estava esparsamente ocupado. As três moças sentaram-se na fileira do meio, envolvidas pelo cheiro de polidor de metal antigo, e observaram o gerente passar através das gastas cortinas vermelhas para dar um aviso.
“A polícia nos pediu que fechássemos mais cedo esta noite, para que todos pudessem ir embora em um horário decente. Por isso, vamos deixar de mostrar os filmes curtos e exibir imediatamente o de longa-metragem. A sessão terminará às onze. Aconselhamos a todos irem direto para casa. Não se demorem nas ruas.”
“Isso quer dizer nós, Lavinia!”, cochichou Francine.
As luzes se apagaram. A tela saltou à vida.
“Lavinia”, sussurrou Helen.
“O quê?”
“Quando chegamos, um homem de terno escuro, do outro lado da rua, atravessou. Ele desceu pelo auditório e está sentado na fileira atrás de nós.”
“Ah, Helen!”
“Bem atrás de nós?”
Uma a uma, as três mulheres se voltaram para olhar.
Viram um rosto branco ali, tremeluzindo na claridade perversa da tela prateada. Parecia que os rostos de todos os homens flutuavam ali no escuro.
“Vou chamar o gerente!” Helen subiu pelo corredor. “Parem o filme! Acendam a luz!”
“Helen, volte aqui!”, gritou Lavinia, levantando-se.
***
Elas baixaram seus copos de refresco, cada uma exibindo um bigodinho de baunilha sobre o lábio superior, que, rindo, buscaram com as línguas.
“Vêem que tolice?”, disse Lavinia. “Todo esse alvoroço por nada. Que constrangedor.”
“Me desculpem”, disse Helen, com a voz sumida.
O relógio marcava onze e meia. Elas haviam saído do cinema escuro, para longe da onda agitada de homens e mulheres saindo apressados pela rua, rumo a toda parte, a parte alguma, enquanto riam-se de Helen. Helen estava tentando rir de si mesma.
“Helen, quando você subiu correndo aquele corredor, gritando: ‘Acendam as luzes!’, achei que eu ia morrer! Aquele pobre homem!”
“O irmão do gerente do cinema de Racine!”
“Eu me desculpei”, disse Helen, olhando para cima, para o grande ventilador ainda girando, girando o ar morno da noite alta, mexendo, remexendo os odores de baunilha, framboesa, hortelã e desinfetante bucal.
“Não devíamos ter parado para beber estes refrescos. A polícia aconselhou...”
“Ah, bobagem da polícia”, riu Lavinia. “Não tenho medo de nada. O Solitário está a quilômetros de distância agora. Ele não voltará durante semanas, e a polícia vai pegá-lo, esperem só. O filme não foi maravilhoso?”
“Estamos fechando, moças.” O boticário apagou as luzes no frio silêncio de azulejos brancos.
Lá fora, as ruas ficavam desertas, esvaziando-se de carros e caminhões e gente. Luzes brilhantes ainda incandesciam nas vitrines da pequena loja, onde mornos manequins levantavam mãos de cera rosadas, flamejando com anéis de diamante branco-azulados, ou pernas de cera alaranjadas e ornadas, revelando longas meias de seda. Os olhos de vidro azul dos manequins observaram as moças se afastarem, descendo a rua vazia, suas imagens tremeluzindo nas janelas como botões de flor vistos através de escuras águas correntes.
“Você acha que se gritarmos eles farão alguma coisa?”
“Quem?”
“Os manequins, as pessoas na vitrine.”
“Ah, Francine.”
“Ora...”
Havia mil pessoas nas vitrines, rígidas e silentes, e três pessoas na rua, os ecos seguindo-as como tiros vindos das fachadas das lojas, de um lado a outro do caminho, quando elas batiam os saltos no pavimento tostado.
Uma placa de neon vermelho luzia fracamente, zumbindo como um inseto moribundo, à passagem delas.
Ressequidas e brancas, as longas avenidas se estendiam à frente. Balouçantes e altas, sob um vento que tocava apenas suas copas frondosas, as árvores ladeavam as três pequenas mulheres. Vistas do alto do tribunal, elas pareciam três cardos bem ao longe.
“Primeiro, vamos levá-la até sua casa, Francine.”
“Não, eu levo vocês em casa.”
“Não seja boba. Você mora longe, em Electric Park. Se você me levasse até minha casa, teria de voltar sozinha pela ravina. E se uma simples folha caísse em você, você estaria morta.”
Francine disse:
“Posso passar a noite na sua casa. Você é que é a bonita!”
E então elas caminharam, afastaram-se como três vultos em roupas domingueiras por sobre um mar enluarado de gramado e concreto, Lavinia observando as árvores escuras que adejavam de um lado e de outro, ouvindo as vozes das amigas cochichando, tentando rir; e a noite parecia se apressar, elas pareciam correr, enquanto andavam devagar, tudo parecia apressado e com cor de neve quente.
“Vamos cantar”, disse Lavinia.
Elas cantavam:
“Brilha, brilha, lua cheia...”
Elas cantavam doce e tranqüilamente, de braços dados, sem olhar para trás. Sentiam a calçada quente arrefecendo sob seus pés, movendo-se, movendo-se.
“Escutem!”, disse Lavinia.
Elas escutaram a noite. Os grilos da noite de verão e o som distante do relógio do tribunal marcando onze e quarenta e cinco.
“Escutem!”
Lavinia escutou. Em uma das varandas, o balanço rangia no escuro e nele estava o sr. Terle, sem falar nada com ninguém, sozinho, fumando um último charuto. Elas viram a brasa rosada balouçando gentilmente para cá e para lá.
Agora as luzes estavam sumindo, sumindo, sumiram. As luzes das pequenas casas, as luzes das grandes casas e as luzes amarelas e as luzes verdes de alerta de furacão, as velas e lampiões a óleo e as luzes das varandas e tudo o mais foi trancado em latão, e ferro e aço, tudo, pensou Lavinia, está fechado e trancado e embrulhado e coberto. Ela imaginou as pessoas em suas camas iluminadas pelo luar. E a respiração delas nos quartos da noite de verão, seguras e juntinhas. E aqui estamos, Lavinia pensou, nossos passos ao longo da calçada ressequida da noite de verão. E acima de nós as lâmpadas da rua solitária despejando sua luz, lançando uma sombra bêbada.
“Chegamos, Francine. Boa noite.”
“Lavinia, Helen, fiquem aqui esta noite. É tarde, quase meia-noite agora. Vocês podem dormir na sala de estar. Vou fazer chocolate quente — vai ser bem divertido!” Francine abraçava fortemente as duas.
“Não, obrigada”, disse Lavinia.
E Francine começou a chorar.
“Ah, não de novo, Francine”, disse Lavinia.
“Eu não quero que você morra”, soluçou Francine, as lágrimas escorrendo pelo rosto. “Você é tão simpática e boa, eu a quero viva. Por favor, ah, por favor!”
“Francine, eu não sabia que isso havia afetado tanto você. Prometo que telefono quando chegar em casa.”
“Telefona mesmo?”
“E aviso que cheguei bem, sim. E amanhã faremos um piquenique em Electric Park. Com sanduíches de presunto que eu mesma farei, que tal? Você vai ver, vou viver para sempre!”
“Você telefona, então?”
“Prometi, não prometi?”
“Boa noite, boa noite!” Correndo escada acima, entrou depressa por uma porta, que bateu e foi trancada rapidamente na mesma hora.
“Agora”, disse Lavinia a Helen, “eu a levarei até sua casa.”
***
O relógio do tribunal bateu a hora. Os sons percorreram uma cidade que estava vazia, mais do que jamais estivera. Pelas ruas vazias e lotes vazios e gramados vazios, o som foi enfraquecendo.
“Nove, dez, onze, doze”, Lavinia contou, com Helen pelo braço.
“Você não se sente estranha?”, perguntou Helen.
“Como assim?”
“Quando penso na gente, fora de casa, aqui na calçada, debaixo das árvores, e em todas aquelas pessoas seguras, atrás de portas trancadas, deitadas em suas camas. Somos praticamente as únicas pessoas andando ao ar livre no raio de mil quilômetros, aposto.”
O som da ravina, cálida, profunda e escura se aproximava.
Em um minuto, elas estavam diante da casa de Helen, olhando uma para a outra durante um longo tempo. O vento soprava o cheiro da grama cortada por entre elas. A lua estava se afundando em um céu que começava a nublar.
“Acho que não vai adiantar muito pedir a você que fique, Lavinia.”
“Estou indo embora.”
“Algumas vezes...”
“Algumas vezes o quê?”
“Algumas vezes acho que as pessoas querem morrer. Você agiu estranhamente a noite toda.”
“Eu só não estou com medo”, disse Lavinia. “E estou curiosa, suponho. E estou usando a cabeça. Logicamente, o Solitário não deve estar por perto. A polícia e tudo o mais.”
“A polícia está em casa com as cobertas até as orelhas.”
“Digamos apenas que estou me divertindo, precariamente, mas com segurança. Se houvesse alguma chance verdadeira de algo me acontecer, eu ficaria aqui com você, pode ter certeza disso.”
“Talvez uma parte de você não queira mais viver.”
“Você e Francine. Francamente!”
“Eu me sinto tão culpada. Estarei tomando chocolate quente no momento em que você chegar ao fundo da ravina e caminhar rumo à ponte.”
“Beba uma xícara por mim. Boa noite.”
Lavinia Nebbs desceu sozinha a rua à meia-noite, atravessando o silêncio da noite alta de verão. Ela via casas com janelas escuras e, ao longe, ouvia um cão latindo. Em cinco minutos, ela pensava, estarei segura dentro de casa. Em cinco minutos, estarei telefonando para a bobinha da Francine. Estarei...
Ela ouviu a voz do homem.
A voz de um homem cantando ao longe, entre as árvores.
“Ó, dê-me uma noite de junho, o luar e você...”
Ela apressou um pouco mais o passo.
A voz cantava:
“Em meus braços... com todos os seus encantos...”
Descendo a rua, à fraca luz do luar, um homem caminhava lenta e casualmente.
Posso correr e bater em uma destas portas, pensou Lavinia, se precisar.
“Ó, dê-me uma noite de junho”, cantava o homem. Ele carregava um longo bastão em uma das mãos. “O luar e você. Ora, veja só quem está aqui! Que hora da noite para estar fora de casa, senhorita Nebbs!”
“Policial Kennedy!”
E então era ele, é claro.
“Acho melhor acompanhá-la até sua casa!”
“Não, obrigada. Eu consigo chegar lá.”
“Mas a senhorita mora do outro lado da ravina...”
Sim, ela pensou, mas não vou atravessar a ravina com homem nenhum, nem mesmo com um policial. Como vou saber que não é o Solitário?
“Não”, ela disse. “Vou me apressar.”
“Eu esperarei bem aqui”, ele disse. “Se a senhorita precisar de ajuda, dê um grito. As vozes chegam bem até aqui. Eu irei correndo.”
“Obrigada.”
Ela seguiu caminho, deixando-o sob uma lâmpada, cantarolando sozinho.
Aqui estou, ela pensou.
A ravina.
Ela estava prestes a dar o primeiro dos cento e treze passos para descer a ribanceira íngreme, atravessar sete metros de ponte e subir a ladeira que levava a Park Street. E apenas um lampião a iluminar. Daqui a três minutos, ela pensou, estarei enfiando a chave na porta de minha casa. Nada pode acontecer em apenas cento e oitenta segundos.
Começou a descer os longos degraus verde-escuros rumo ao fundo da ravina.
“Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez degraus”, contava, sussurrando.
Sentia que estava correndo, mas não estava correndo.
“Quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte degraus”, ela ofegava. “Um quinto do caminho!”, anunciou para si mesma.
A ravina era profunda, negra, negra! E o mundo ficava para trás, o mundo de gente em segurança na cama, as portas trancadas, a cidade, a botica, o cinema, as luzes, tudo se fora. Apenas a ravina existia e vivia, negra e imensa, ao redor dela.
“Não aconteceu nada, aconteceu? Não há ninguém por aqui, há? Vinte e quatro, vinte e cinco degraus. Lembra-se daquela velha história de fantasmas que vocês contavam umas às outras quando crianças?”
Ela ouvia os próprios sapatos nos degraus.
“A história sobre o homem moreno chegando a sua casa e você lá em cima, na cama. E agora ele está no primeiro degrau, subindo para seu quarto. E agora ele está no segundo degrau. E agora ele está no terceiro degrau e no quarto degrau e no quinto! Ah, como vocês costumavam rir e gritar com aquela história! E agora o pavoroso homem moreno está no décimo segundo degrau e está abrindo a porta de seu quarto e agora está de pé ao lado de sua cama. ‘PEGUEI VOCÊ!’”
Ela gritou. Era diferente de tudo que já ouvira, aquele grito. Nunca havia gritado tão alto assim na vida. Parou, ficou paralisada, agarrada ao corrimão de madeira. O coração explodia dentro dela. O som do coração batendo aterrorizado enchia o universo.
“Ali, ali!”, ela gritava para si. “Ao pé da escada. Um homem, sob a luz! Não, agora ele se foi! Ele estava esperando ali!”
Ela ficou escutando.
Silêncio.
A ponte estava deserta.
Nada, ela pensou, segurando o coração. Nada. Boba! Aquela história que contei para mim mesma. Que tolice. O que devo fazer?
As batidas de seu coração diminuíram.
Devo chamar o policial — ele me ouviu gritar?
Ela escutou. Nada. Nada.
Vou andar o resto do caminho. Aquela história boba.
Começou de novo, contando os passos.
“Trinta e cinco, trinta e seis, cuidado, não caia. Ah, como sou idiota. Trinta e sete passos, trinta e oito, e nove e quarenta, mais dois são quarenta e dois — quase metade do caminho.”
Imobilizou-se novamente.
“Espere”, disse a si mesma.
Deu um passo. Houve um eco.
Deu outro passo.
Outro eco. Mais um passo, apenas uma fração de instante depois.
“Alguém está me seguindo”, ela sussurrou para a ravina, para os grilos pretos e sapos verde-escuros escondidos e o córrego negro. “Há alguém nos degraus atrás de mim. Não ouso me virar.”
Mais um passo, mais um eco.
“Toda vez que dou um passo, dão outro.”
Um passo e um eco.
Com a voz sumida, ela perguntou à ravina:
“Policial Kennedy, é o senhor?”
Os grilos ficaram em silêncio.
Os grilos estavam escutando. A noite a estava escutando. Para variar, na noite de verão, os prados distantes e as árvores próximas entravam todos em animação suspensa; folha, moita, estrela e lâmina de grama cessaram seus tremores típicos e escutavam o coração de Lavinia Nebbs. E a mil quilômetros de distância, do outro lado de uma terra desolada, em uma estação ferroviária deserta, um único viajante, lendo um jornal apagado sob o bulbo exposto de uma lâmpada, talvez levante a cabeça, escute e pense: O que é isso? E decida: É só uma marmota, com certeza, batendo em um tronco oco. Mas era Lavinia Nebbs, era com toda a certeza o coração de Lavinia Nebbs.
Silêncio. Um silêncio de noite de verão que se estendia por mil quilômetros, que cobria a terra como um oceano branco e umbroso.
Mais depressa, mais depressa!
Ela descia os degraus.
Corra!
Ela escutou a música. De um jeito louco, de um jeito tolo, ela escutou a grande onda de música que a assaltava, e percebeu, enquanto corria, enquanto corria em pânico e terror, que alguma parte de sua mente estava dramatizando, tomando emprestada a trilha musical turbulenta de algum drama particular, e agora a música a apressava e empurrava, cada vez mais alta, mais rápida, mais rápida, despencando e correndo rumo ao coração da ravina.
“Só mais um pouco, ela rezava. Cento e oito, e nove, cento e dez degraus! O fundo! Agora, corra! Atravesse a ponte!”
Ela disse às próprias pernas o que fazer, seus braços, seu corpo, seu terror; avisou a todas as partes de si mesma neste momento branco e terrível; sobre as águas turbulentas do córrego, nas tábuas da ponte, ocas, trepidantes, oscilantes, flexíveis, quase vivas, ela correu, seguida pelos passos desordenados atrás, atrás dela, com a música a seguindo também, a música estridente e ininteligível.
“Ele está aí atrás, não se vire, não olhe, se você o vir, não conseguirá se mover, ficará muito assustada. Apenas corra, corra!”
Atravessou correndo a ponte.
“Ó, Deus, Deus, por favor, por favor, me deixe subir! Agora ladeira acima, agora entre as colinas, ó, Deus, está escuro e tudo está tão longe. Se eu gritar agora não adiantará; de qualquer modo, não consigo gritar. Aqui é o topo do caminho, aqui é a rua, ó, Deus, por favor, me deixe em segurança, se eu chegar em casa sã e salva, nunca mais saio sozinha; fui uma tola, eu admito, fui uma tola, não sabia o que era terror, mas, se o Senhor me deixar chegar em casa depois disso, nunca mais saio sem Helen ou Francine! Aqui é a rua. Atravesse a rua!”
Atravessou a rua e correu para a calçada.
“Ó, Deus, a varanda! Minha casa! Ó, Deus, por favor, me dê tempo de entrar e trancar a porta e eu estarei em segurança.”
E ali — coisa tola de reparar... por que será que ela reparou, instantaneamente, não há tempo, não há tempo... mas ali estava... de qualquer forma, ao passar correndo —, no balaústre da varanda, o copo de limonada pela metade que ela havia abandonado há muito tempo, um ano, meia noite atrás! O copo de limonada jazendo, calmamente, imperturbavelmente, ali sobre o balaústre... e...
Ela ouviu os próprios pés desajeitados pisarem a varanda e ouviu e sentiu as mãos investindo contra a fechadura e golpeando-a com a chave. Ouviu o próprio coração. Ouviu sua voz interior gritando.
A chave entrou.
“Destranque a porta, depressa, depressa!”
A porta se abriu.
“Agora, entre. Bata com força!”
Ela bateu a porta.
“Agora tranque, bloqueie, tranque!”, ela ofegava miseravelmente. “Tranque, tranque bem, bem!”
A porta foi bem trancada e aferrolhada.
A música parou. Ela voltou a escutar o próprio coração e seu som diminuindo até o silêncio.
“Em casa! Ah, Deus, salva e em casa! Salva, salva e salva dentro de casa!” Ela se escorou na porta. “Salva, salva. Escute. Nem um som. Salva, salva. Ah, graças a Deus, salva e em casa. Eu nunca mais saio à noite. Vou ficar em casa. Não atravessarei aquela ravina de novo, nunca mais. Salva, ah, salva, salva e em casa, tão bom, tão bom, salva! Segura aqui dentro, a porta trancada. Espere! Olhe pela janela.”
Ela olhou.
“Mas não há ninguém lá! Ninguém. Não havia ninguém me seguindo. Ninguém correndo atrás de mim.” Recuperou o fôlego e quase riu de si mesma. “É claro que se um homem estivesse me seguindo, ele teria me pegado! Não consigo correr muito... Não há ninguém na varanda, nem no quintal. Que bobagem. Eu estava fugindo à toa. Aquela ravina é tão segura quanto qualquer outro lugar. Não importa, é bom estar em casa. Nossa casa é de fato o lugar melhor e mais aconchegante, o único lugar onde estar.”
Ela estendeu a mão na direção do interruptor de luz e parou.
“O quê?”, ela perguntou. “O quê, o quê?”
Atrás dela, na sala de estar, alguém limpou a garganta.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

No escuro - Poesia?



No escuro, não se pode ver o que não se quer sentir. Por muitos, a falta de luz chega a ser um rio que não se vê fluir. Dentro da su'alma ou de seus nervos cerebrais, por mais que tente, coibitivo será, em pensamentos e afluentes sensações de estar totalmente perdido em meio a antumbrais; Poderia eu estar louco? Bem... Quando cai em sono profundo e tive aqueles sonhos, que já esqueci, todos moribundos, foi no que pensei. Aquela voz de minha mulher, afinada e cantante, - ei! - de um único agudo, longínquo e um tanto astuto, somente isso lembro-me que sonhei.
Poderia estar certo a sentença de que sou um "algo" inexistente? De que poderia travar seus problemas em passado, um tanto, você, desamado, que está a ficar só tremendo pelos dentes?
Tremendo? Sim. Uma ação comum para quem tem medo. Você deseja um alto padrão de vida ou um amor duradouro, mas é preso ao fútil e inibido desejo - então, sim, assuma, você tem medo. - de tentar bater as asas e cair, ou com um milhão de respostas em infinidade, de não ter pra onde ir.

Então aqui definimos o que é escuro. Certo?

Não sei no que está pensando, caro amigo. Poderia tentar, tentar, tentar, tentar, tentar, tentar, tentar, tetar, cansar, cansar, rancas, casar... - tanto que esqueceria de completar as letras de minhas palavras, olhando apenas para o próprio umbigo. Então dizemos aqui o significado de "ensaio", o mesmo que tentativa, mas de uma maneira esquisita e de certo modo, arbitrário.
Poderia errar ao etéreo.
Mesmo que eu pudesse...
Ah....
Ideias sem assas -
De semi-térreo.

Sinto que nessa última sentença eu lhe mostrei uma tela escura e lhe dei um pincel, mas não a oportunidade e muito menos a cor, que deseja ou que quer, para pintar seu próprio céu.
Não sei bem a função desse texto ou para quem o dirijo, entretanto... Continuarei a escrever, mesmo palavras tão absolutas de cem sentidos.
Estaria eu enlouquecendo?

A medida que o tempo passa você percebe que minhas quadras ficam menores. Mas é indolor pra mim, se assim concluir que sou o organismo vivo ligado ao texto. É como dar parte da minha carne e pedir que entenda a arte de uma arte de pretextos. Se eu não terminar uma frase...
Eu, estaria, enlouquecendo? - ou seria reação de "isso é apenas uma fase!". Geralmente as pessoas que o proferem, estão em constante crescimento? Ou estão tão errados quando os anagramas da palavra 'alma' e seus estranhos significados, que jamais estão interligados?

... então....

Sim, essa última foi maior. E o que vem agora é ainda mais demasiado. O último gás de um ser do além. Ou de um adolescente, ou adulto, ou velho, ou neném.

O escuro; Você apercebe as sombras dançantes e viaja do topor, mesmo não apanhando e nem com enxaqueca, a ausência de sentidos lhe produz grande dor.
As sombras dançantes que exalam alucinação de topor, te apanham, dando-lhe enxaqueca, dando-lhe sensação de ausência, produzindo alienação de sua própria vivência.
Deus, me ajude, ajude-me bom Deus. Darei tudo o que eu tiver e mais um pouco, mesmo sabendo que não é o meu o que é teu, estarei preso para sempre nesse eterno breu?
Invento personagens, invento canções e presenças que não estão lá.
Digo-me para esquecer e não intervir no natural, fingir que não estou lá.
Poderia me fazer companhia, caro amigo imaginável. Poderia, tá?
Mas eu não estou lá. E você não está aqui.
Vivo de imaginações.
Eu sou a ilusão.
Não, digo-lhe -
Não.

o.
Um poço de desejos que surge no mais profundo ápice de loucura dentro da mente. Eu não sou um demente. Que isso fique entre "a gente", do informal ao formal contundente. Meu Deus, eu vejo aquele sorriso no enegrecido nada, S-O-R-R-I-D-E-N-T-E!
A mandíbula artística de um Picasso sem mão, desenhando com a boca o que vê em sua comunhão de demônios próprios e figuras sem vida um tanto tortos.
Eu viajo, sim eu viajo.

Sou um escritor criando personagens. Era isso que eles queriam não é? Vertigem toma conta do's meus olhos. Tremedeiras na minha mão. Retumbantes batidas no meu coração. Vivências e vereditos que eu não passei. Aquela voz me chama novamente... Ei!
Eu te amo, queria amada.
Mas não é minha hora, cara donzela.
Bela senhora.

O corpo esquelético e, sorridente acaveirado, me abandona. Estou maltratado. Pela própria confusão de amar.

Meu corpo estivai e minha alma estivai, meus pensamentos estivais.

Estou morrendo.

Estou sem tempo.

EsTaRiA eu enlouquecendo? Ou é reflexo do pesadelo que continua doendo?

As estrofes doem o que separa sua imaginária solução que imaginaria uma emoção. Não!

É a chave - (do fim) - que eu criei. (do fim).

As veias que chamam-me a atenção, são as vertentes belas da pele branca de minha esposa.

Ela diz; Venha, eu sou a antítese d'a loucura e paixão;

Empoleirada ela está, em vinhas de raízes e uma luz bruxuleante paira sobre sua cabeça.

O meus ases se foram, e ela se foi, pra sempre. A Deus dê, nada é realmente teu.

A dama dos meus sonhos que eu a matei estando risonho.

Estaria eu ficando louco?

Eu digo a bruxa, que são minhas memórias, para ir embora. Sim, ela também foi.

A solidão que me abandonaste depois disso, me deixa maluco. Nem mesmo a morte sabe onde estou.

Eu preciso me reanimar, então, busco criar outro algo.

Lembro-me de manter o ritmo de ligações, mas estou tão... tão...

Sem ajuda.



Aqui eu te mostro o valor do escuro e lhe digo que não sou ninguém.

O vento através da fechadura, ou os pedidos injuriados de por favor!

EU sou amor. EU sou a Dor. Eu sou você. Você não sou eu. Eu não sou Deus.

O semi-térreo de minha vida é o alicerce do inexistente. Os cem sentidos de minha opinião.

As loucuras de seu passado em um espaço escuro e remoto, não antes remexido.

A solidão que encalça o teu ouvido em certos zumbidos.

Os grilos que morrem.

Os bebês que nascem.

O escuro e o nada.



.
.
.
.
.
.
.
.
..
.
.
.
.
.
.
.

Eu não sei pra que isso serve. Já que não existo.

A mensagem foi dada e a luz apagada, e eu... deixei de existir, na ausência de inexistência, eu me fui.




quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Loucura



"Loucura textual é a loucura que é implantada pelo escritor. Mas quem disse que ele também não é contagiado com isso, tornando as letras tortas em seu pensamento oblíquo, e se tornando... insano."






A monstruosidade começou quando eu estava na Paullinne, alimentando os peixes que ali escoravam-se. Dei esse nome ao barco pois de certo de modo, eu me sentia sozinho. Um velho de sessenta e dois anos, viúvo, sem filhos, afundado em dívidas. O monstruoso fato que me refiro foi de ver o cardume ir embora e com a maré ver chegar uma garrafa com inúmeros papéis enrolados dentro. Bateu no barco e ouvir o tintilar de vidro trincando, e por uma sorte, que agora acredito ser uma maldição, foi um trincar externo, não permitindo assim a água adentrar.
Foi de imediato; saltei da rede dentro do único cômodo de um barquinho de doze metros, bati minha cabeça no batente superior da entrada deste quarto, e fui de encontro àquele som.
Uma garrafinha tosca, acredito que antes era a casa de um bom rum, e agora estava estragada e velha. Assim como eu.
Me chamo Tobbey Helverdy e minha esposa morreu em um acidente aéreo. Na verdade, ela entrou em um avião, e nunca mais apareceu. O avião não pousou em Pequim. O avião sumiu no ar. Deve ter uns cem metros de tamanho e ninguém notou pra onde ele foi.
Por algum motivo em que segurei essa garrafa, eu lembrei de tal memória, antes incógnita nas profundezas de minha mente.
Isso foi há 12 anos, em 2014. - De lá pra cá me tornei pescador e tenho pegado muitas espécies; desde enormes lulas a grandiosos crustáceos.

Tirei com cuidado a rolha da garrafa. - Peguei um papel e era recôndito o que percebi, que a resma estava enumerada do 1 ao 8.
Pus-me a ler aquelas opróbias palavras.

A primeira folha dizia;
" o mundo em que vives é desonroso demais, oh pescador que no mar se afoga, e na garganta sente o veneno da cobra do que a vida tirou e não devolverá mais". 
Me arrepiei. Aquelas palavras... Eram.... Pra mim?
Li a segunda.
e dizia;
"O rascunho do passado pode ser o portal para o futuro, assim como a semente de um fruto que se planta no mais desértico espaço, se tornará doce e maduro".

A vida não faz sentido mesmo! Eu levanto minhas mãos aos céus e agradeço a Deus. Oh, rapaz... Que fabuloso achado.
Não me contive. Tenho que ler outra.

"Não se engane. O vício é um desejo vítreo e o desejo vítreo pode ser ilícito, e o ilícito pode ter continuidade singular ou seguir um caminho ambíguo. As rimas de um palhaço sem fala? Ou um poema pobre de um homem que só viveu desgraça?"
Eu vivi desgraça. Meu Deus essas palavras estão, por algum motivo, me fazendo pular do barco, aproveitar a água e o Sol e limpar a alma.
Mas a terceira folha disse:
"Você consegue acompanhar o tempo? Você quer mudar de vida agora? Ser algo, ter algo... Vai em frente, tente! Olhe no fundo da sua alma. Mas não esqueça de esquecer o escuro que há na sua mente."
Eu tentei. Naquela noite, quando você ouve alguns peixes que vão até a superfície somente para atirar água da boca e fazer um som semelhante ao chocalho da cobra, eu tive um sonho ruim. Sonhei com o mundo se tornando um papel, se dobrando em uma A4 em seus quatro lados, e se remontando em um origami sem parâmetros. Um desenho de um soldado sentado, sem olhos, sem braços, mas eu sabia que era um soldado. Ou algo semelhante a isso.
De repente se tornava uma mão. Apontava pra parede e meu rosto, como se fosse uma câmera, virava pra ela. Eu via um buraco negro em formato de vórtex, sugando tudo ao seu redor. A particularidade estava no que havia dentro dele; Planetas, estrelas, luas, depois sóis, e por último um conjunto de constelações inteiras.
Aquela imagem dentro do círculo que me proporcionava uma visão panorâmica dessas anomalias, também desfigurava-se em outras imagens. Como as pessoas; presidentes da república de vários países, rostos desconhecidos, familiares - todos esses com seus rostos envoltos em uma névoa cinzenta. Ficava mudando e mudando.... Algumas eram névoas rubras e/ou vermelhas. Eu não entendi bem isso.
Mas foi aí que fui guinado para fora de minha anomalia sonífera. - Eu fui surpreendido por uma luz onde eu não sabia a princípio de onde vinha. Apenas estava lá.
Depois de limpar os olhos na água do mar eu vi;
A água do mar estava verde e os peixes estavam mortos porém brilhantes. Vi auroras boreais acima de mim formando nomes, uns que me recordo bem; minha esposa tinha bastante nomes para dar pra filhos quando tínhamos vinte e seis, mas depois de saber que não podia parir, nomeou bonecas que comprou - foram esses nomes que vi no céu. Melissa, Johanna, Elisabeth,  Abigail.
Seres abissais nadavam ao redor do barco, aproveitando-se do aclaramento daquela fonte de luz espontânea para se mostrar.
Um peixe colossal com uma lanterna brilhado em um vermelho vivo me alertou... Aqueles eram agentes da loucura... Nada estava ali. E então a imagem piscava e voltava, desligando e ligando. Uma hora estavam e depois não mais.
Acordei na minha rede novamente, mijado. Senti vergonha. Mas na minha idade.. hã... isso bem que é normal.
Um velho desfraldado.
Outra luz surgia, em um tom azul idílio - esse projetava um filme nas paredes internas do quartos - meu casamento...
Ela estava tão linda usando o branco com decote nos peitos. Sentia-se acanhada... Não conseguia imaginar aquilo, achava vulgar. Tinha vergonha dos seios, das pernas, e eram as partes mais formosas de seu corpo.
Como ela estava linda.

Acordei novamente. Não estava mijado mais. E meu relógio dizia que já se passavam três dias desde quando peguei aquela garrafa.
Achei que ele tinha pifado.
Lasquei uma pedra que usava como peso pra portinha do quarto, fiz duas menores. Criei fogo com elas e me decidi ler aquelas malditas páginas.
Entretanto quando abri... só tinham duas páginas...
Eu li a primeira e o desespero começou;

- ALZTAMNEK MCNAHAZ ZHULT MANHUR ALDHAR - meus olhos se reviram, voltam, e senti meu corpo ser sugado em direção ao céu. Um feixe de luz acima gritava de tão brilhante e eu não conseguia ver seu final. - MANHUR AHAHAMANAHUR BRIKCHUMA ELT AGHRU - Eu estava cercado por seres violetas. Não tinham olhos, senão rascunhos fundos de onde eles e a boca e nariz estariam.
Produziam sons para se comunicar, como os pássaros fazem. Percebi que decidiram entre si, o que iam fazer comigo.
Primeiro apertaram meu braço. Depois o arrancaram e eu não senti dor. Estava anestesiado, apenas a frieza de onde era pra estar meu braço se fazia presente.
Pegaram o braço sem vida e aproximaram do seus corpos. Sugado como osmose. Eles se alimentavam. Se alimentavam de mim.
E a única coisa que eu pensava era em ler a última página. Tentei, com meu olhar bêbado, observar a sala ao redor e vi meu barco há alguns metros de mim. E mais deles estavam a se juntar com os que faziam de mim sua refeição. Um deles veio com o papel e apontou pro meu rosto e me indicou uma parede à minha direita. Olhei.
Era a última folha, e nela havia um desenho e umas palavras que consegui ler.

Pesquisa de 1992 - parceria humano-alien - como temperar um ser humano usando dor, medo, frustração e transtornos mentais.

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. Arrancaram o coração do homem e a imagem se fechou, como quem desliga uma Tv. -
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2026 - Notícias locais a respeito da anomalia encontrada no lago River;
Um homem foi encontrado nesta terça feira, na verdade, parte do que teria sido esse homem. Uma escultura modelada no papel de um ser agachado com as mãos na cabeça. E onde está o ar da questão? Bem, apenas a cabeça está na estrutura. O resto é preenchido com papel, algodão e a razão de não ter caído, é que os ossos ainda estão lá, segurando.
E o estranho;
O rosto do homem está com uma expressão misturada de medo, dor e amor. E como sabemos?
Bem... 
Ele meio que está...








quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

A dor do universo.


O turbilhão de Dor:


Tragado pelas correntes que ano após ano perfurava-se mais e mais em seus tornozelos, Gaudnar, conseguiu sair ileso parcialmente, mas muito danificado mentalmente. Era difícil encontrar um homem, um único, que era responsável por trazer consigo a dor do universo. Assim como um nascimento de um bebê onde sua genitora sente dores do parto, na criação do universo isso também aconteceu, e Gaudnar Drenner foi esse ‘sortudo’.

A prisão de fibras insanas ficava no alto de uma torre na constelação mais distante que apenas o universo poderia conceber, no amontoado de buracos negros em constante progresso de destruição.  Protegido apenas por uma espécie de campo magnético que se mostrava resistente ao dreno negro incomensurável de doze rodeados buracos-negros.
Talvez... Lá no fundo... O destino tenha pregado uma peça em nós todos, - porque foi quando os doze sugadores de massa estelar sobrepujaram tanto, durante tantos milhões de anos, que o tecido universal foi esticando até onde não podia mais, deixando o centro, Gaudnar, no efeito de cama elástica: Quando não se tem o que puxar, o ‘aspirador’ quebra, e quebrou. – catapultando a torre cristalina e o campo magnético para outro lado da galáxia. – O destino tem sim sido muito engraçado. Sepultando tantos milhares de pessoas boas, no mesmo ano, no mais reverente onze de setembro;

Mas lembrem-se bem da frase: tudo que é ruim pode piorar pra caralho! – E tempo não põe tudo em seu devido lugar. Algumas pessoas ainda hoje jantam sozinhas, com aquele lugar vazio que dói na vista, de algum parente que faleceu. O tempo é o pior destruidor.

Você sabia, não sabia, Gaudnar?


O cara veio parar na Terra em alguma região remota de Baltimore, sua torre, de um estranho cristal-sem-cor, pousada no cume de uma montanha. Deixando o lugar com um aspecto ádvena, insólito e heterótrofo. Se alimentando de raízes e terras boas nas adjacências da cidade rural, que a natureza demorou tanto tempo para produzir.
Veio barbado com aspectos berrantes de um idoso beirando seus setenta e um. Com os cabelos brancos como as formações nevadas, ao longe da linha do equador, no extremo sul (ou norte) do planeta.
Entretanto; os braços, longos e musculosos de algum jovem com bastante frequência em academias ou levantamentos de peso, estavam lá, ribombando abaixo do ombro. E as pernas, duas âncoras firmes de musculatura, rígidas e com veias saltadas.
A torre se moldava ao solo com tamanha maestria. E o seu campo magnético se tornava assim, uma camada que realçavam as cores de limitados, a partir de agora, pores-do-sol ao sul da torre que se encravava de frente para quem sobe a montanha, como se em afronto. Moradores de Baltimore passaram a relatar a estranheza das madrugadas, sucessivas de vozes aglomeradas no alto da montanha, que apelidaram de Amaldiçoada e Sem-Retorno. Se estivesse descontente com a própria vida, podia ir até lá, durante o inicio do crepúsculo soturno. Você não voltaria para contar histórias. Pois muitos foram, os marinheiros que se aproximavam pela costa, ou os próprios moradores, tentando desmistificar esses mitos. Tornando-se assim, parte das estatísticas.

11 de novembro.

Completando o ciclo perfeito de três meses desde que adentrou os vales druídicos e pantanosos, descobrir-se-ia que a torre com vida própria, estava não a somente matar as flores e terras, mas a aprender sobre o terreno e adjacências. Sugando conhecimento. Ficando afiada.
Gaudnar não estava mais com a aparência de setenta e um. Seu corpo respirava os 30 aparentes.
Beleza custa preço.
Não custa?
Os moradores, que sobreviviam aos tantos, de pesca ou comércio na encosta da praia, aperceberam, quase que tarde demais, os peixes mortos, constantemente se tornando habituais, surgindo trazidos pelas ondas. Também deram por falta de seus gados, árvores, e estranhamente fora de hora, começava um período de chuva incomum.
No alto da montanha, na íntegra, uma cachoeira de poluição negra e fumacenta tomava conta em descendência. E notaram, que se aquilo continuasse, então, esse amontoado enegrecido tomaria conta de toda a cidade. Como bons medrosos que o povo do interior são, tomaram providências.
                Gaudnar já sabia como fazer bom uso das plantas. Tinha em mente o conhecimento das carnes de bois e vacas e o uso que se faz com seus couros. Sabia que o ano tinha 365 dias e às vezes 366. Aprendeu o que ser o “Deus” dos seres humanos; seus métodos, suas crenças, e seus ‘portas-vozes’ aqui na Terra. Quase riu quando encontrou a ignorância no meio das palavras que justificariam atrocidades bíblicas como sendo santas.
Aprendeu que a fonte de energia solar é a única que provém tudo. E nada funcionaria sem este.
Compreendeu o valor nutritivo de mentes humanas, fazia algumas semanas que estava escasso dessa iguaria, e assim;
traçou seus próximos alvos.
                Treze homens marcharam para a montanha, mais da metade armados, menos da metade com pólvora e armas de monotiro dispostos a incendiar aquela construção titânica, mas todos com medo do que poderia encontrar à frente. Achavam que era dali que vinha tal terror. Achavam porque tinham medo de afirmar sua certeza.
Flint guiava a minitropa. Vinte e sete anos e já tinha sobrevivido a guerra de 94 com seus vinte completos, com mais baixas do que o traje militar do exército podia ter.
Condecorado de guerra que caminhava para uma morte subliminar.
Gaudnar assumiu a postura de Conde Drácula, pois em sua consciência tomada, pensou que este combinara mais consigo mesmo. E tomou atitude de transformar as paredes, as janelas, de uma torre colossal, em um castelo de pedras e com direito a um rio negro circundando a construção – onde uma ponte desceria aqui, alavancada por roldanas com cordas de sisal grossas. – Deixe-os vir, para o beijo da morte. – pensou e mostrou os dentes recém-adquiridos. Se moveu com a sombra da noite, e esperou, calmo e sucinto.
Flint chegou às portas do castelo. Observou com momentâneos calafrios na espinha, o rio obscurecido que corria com certas anomalias faciais surgindo e imergindo. Se benzeu e rezou os credos de proteção que aprendera na escola católica quando tinha catorze. Todos o fitaram com atenção, tentando entender qual seria o próximo passo. E então ele disse:
- Venham todos! O mal espreita à frente. Devemos tomar cuidado. Deus nos ajudará.
Eles seguiram, encontrando um cenário arcaico de anos 1770, arremetendo ao castelo de conde Vlad; com palhas em formato de blocos, luzes a vapor, construções de pedra lisa e/ou talhadas com nomes e desenhos estranhos. Mesmo com a iluminação pobre, a luz da lua no alto fazia um bom trabalho.
A trupe de medrosos seguiram para adiante, onde uma escada escura lhes pareceram bastante atraente. No topo, encontraram um caixão revestido a algodão dentro de seda, mas nenhum corpo, senão um bilhete dizendo: Conde Vlad descansa em sua tumba. Se prostraram a descer novamente. Já no térreo, a luz embebida de óleo de baleia, estava ficando fraca, a luz se escondia atrás das nuvens, era como se o mal estivesse chegado a galopes.
O que eles viram surgir foi um vulto preto no meio de inúmeros morcegos, se erguer e ficar com uma estatura de quase dois metros, e só então perceber que o vulto era um rapaz branco dentro de uma capa preta por fora e rubro por dentro. Proferia palavras com um sotaque estrangeiro, meio francês, meio espanhol.
- Quem ousa... Em sã consciência... Perturbar Vlad? – dizia.
Todos ficaram em silêncio. Até Flint tomar as rédeas.
- Eu ouso. Você é o responsável por destruir toda montanha. Matar nossos peixes. Acabar com nossa fonte de renda. Você é um mal a ser eliminado.
Gaudnar, o Vlad, se escondeu atrás da própria capa, tentando apontar que ele não sabia da missa a reza do que acontecia ali.
- Ora pois, não se faça de sonso. – Gritava uma voz tímida no meio das pessoas.
- Eu? – ele deixou um olho escapar da capa. Somente um. – Você tem certeza?
Flint ficou nervoso.
- Ou você decide, ou você morre, e decidimos por você.
Mas... eu... – ele tentou dizer em alto e bom som. Mas não conseguiu.
James Hudson F., ou Flint, como todos o apelidavam, interpretou os movimentos de Leônidas no filme 300 e jogou a lança improvisada que segurava, bem no peito daquele ser. O mesmo caiu com os braços abertos e desvaneceu em poeira.
Todos aplaudiram. O céu se abriu. Um raio de luz pousou sobre Flint. Então uma voz estrondosa disse:
Como Moisés, você guiou seu povo para longe do mal. E está na hora de todos Adentrarem a terra prometida.
A festa não podia ser maior. E simples, pois a única coisa a se fazer era descer as escadas do castelo onde a voz, acredito, vinda de Deus, ordenou. Disse que o Vlad escondia o portal para a terra em seu porão. Todos teriam de girar a maçaneta pesada de uma porta de ouro, e foi o que fizeram. Quando se abriu..

Mas que lugar é este?
Uma voz riu alto. Eles viram um sorriso se abrir no meio da escuridão. Gritaram até a garganta secar. O que liberaram foi uma criatura que estava poupando forças, criando figuras falsas para levá-los até onde queria. Poupado para destruir. E foi o que fez. A criatura tinha fome. Não uma que se sacia com carne ou vegetal. Àquela que destrói mundos inteiros e continua querendo mais. Aquela que agora está saboreando a via láctea inteira, e depois vai pra Andrômeda, e depois Orion, e ademais a Ursa maior. E depois metade da galáxia tem sido engolida. E essa é a verdadeira dor do universo, que sente fome, para criar mais dor. A Gula de Gaudnar Drenner, do terror abominável em Baltimore, para o universo, agora, indefeso. E agora não respirava mais ares da casa dos 30. Não, não, não. Agora ele suspirava, uma nova criação, um novo nascimento de um ingênuo e inexperiente universo virulento.
Ele se tornou a destruição do novo.

Gaudnar se tornou o princípio de um mundo que esse bebê chama de:

A-bo-mi--vel Ter-ror.






quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O garoto afogado em pesadelos


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Não foi bem a chuva que o atormentou naquela madrugada, sacolejando e batendo na janela e fazendo sons de borbulho gutural na pia, onde; quando aconteciam chuvas fortes (como aquela) a água agia em refluxo no encanamento e isso explicava a estranheza.
Não explicava?
Não.


Quando George se levantou para ver se tinha algo no banheiro. Ele se deparou com a cena que, se estivesse oito anos mais novo (e isso o deixaria com 4), acabaria com a inocência de qualquer criança.
Seu pai enforcado no suporte superior do box na área de banho - Sua mãe com as pernas abertas em um semi espacate, com a perna esquerda tocando a cabeça, a cabeça revirada para trás, alavancada às costas, e o tórax, rasgado desde a altura do pescoço até próximo a vagina.
Ele acordou.
Uffa!
A chuva ainda batia à janela de tempos em tempos, e aparentemente, por causa do escuro espontâneo no quarto, ainda era noite. O seu peito resfolegava ar como se tivesse dado a volta em seis quarteirões antes de se deitar. Os seus olhos quase saltavam fora da caixa. Mais que merdas eu vi? - Pensou.
Mas que merdas você viu?
A resposta era simples, curta, e sem dramatizações desnecessárias: Jogos mortais. O filme que sua mãe o notificou para não ver. Os pais, na idade que George tinha, sempre sabiam das coisas. E sempre eram chatos pra cacete! Você não pode fazer isso, George. Você não pode fazer aquilo, George. É perigoso George. É ruim George. Você é preguiçoso, George, não presta pra nada.
A voz veio do lado do seu rosto, como se uma boca estivesse colado a ele.
- Tá na hora de crescer... - sussurrou - Pequeno George...
Um palhaço. Não. Não a merda de um engraçado e cheio de graças e burrices propositais que arrastariam gargalhadas aconchegantes. A merda de um palhaço com dentes pontiagudos e com uma língua oleosa oscilando entre cada um. Os olhos eram duas esferas oculares de gato. E a mão, que ele não tinha percebido (por que fitava o teto), tão grande quanto pés de pato de nadadores e tão estranhas quanto. Dedos descomunais. Tudo descomunal, até mesmo o rosto, que era pequeno. O palhaço reverse! Espera aí... Isso não veio dos jogos mortais.
- Não veio não, George-dooguie. - ele disse rimando - Veio da sua mente, seu demente!
E antes que o garoto pudesse responder as garras dentárias do palhaço o atracaram, bem no alto da cabeça. Arrancando na ignorância. Selvageria seja seu nome, e sangue voou no vidro da janela, acima da cabeceira.

E lá estava ele... Acordando mais uma vez.
Ainda era noite, a maldita janela ainda era alvo da chuva, a pia também era malevolamente inquietante e sorrateiramente, ao que parecia estar viva.
Pegou na sua cabeça, não, tateou com devido cuidado para saber se estava mesmo lá. Olhou para os lados e não viu palhaços. Olhou pra baixo da cama, bravamente destemido, e também não havia nada lá.
Uffa!
George foi até o banheiro, acendeu a luz e assistiu durante um tempo a projeção da sua sombra no quarto, uma luz no vácuo que bruxuleava uma massa escura em magnitudes bizarras. Era ele ali de pé, lavando o rosto com os olhos injetados de quem teve uma péssima noite de sono, se olhando no espelho, abaixo da lâmpada de fluorescente. Um garoto gordinho com as bochechas engraçadas. Como morava em um bairro pobre; a chuva também fazia oscilação de energia, então a lâmpada fluorescente de eletrodos começou a ir e vir.
E os arrepios também.
Foi quando, sua sombra, começou a se mover no quarto. Mas George estava parado. Como pode isso acontecer?
- Mas que merd... - antes de poder completar a frase,e... e... e... {...} - a sombra, que vinha, obviamente como qualquer outro ser humano, de baixo dos seus dedos e se projetava até o quarto parcialmente iluminado e parcialmente escuro, o arrastou, imitando os movimentos (pelo menos essa parte era visível) de alguém puxando algo preso embaixo de uma superfície pesada. O levou até o escuro completo, quando a lâmpada parou de oscilar optando por finalmente ir sem voltar, e começou a atacá-lo ali mesmo. Porque todo mundo sabe que uma sombra fica mais forte no mundo delas, ou no ambiente preferido delas, o Plena Tenebris (escuro completo).  
{...} O arrastou e o arranhou e o que George conseguia ver era: o absoluto e estranho, nada. Era atacado pelo o invisível e destroçado nas mãos, que sangravam tentando proteger o rosto, ou a barriga gordinha que estava com várias marcas na camisa que atravessava até a pele, por algo existencial e conspícuo.
- Deus. Me ajude... - o apelo saiu tão baixo que ele próprio quase não escutou. E o que se seguiu, a resposta, veio de um coro que não conseguia ver, mas escutar.
- Ele não está aqui agora, George. - disse o coro com centenas, ou, milhares de vozes reunidas.
E um amontoado de escuro se transformou em um ser tocável. Os olhos do garoto perceberam que estava sendo observado por dois buracos que pareciam ser olhos.
Quando tentou fugir para o banheiro. O turbilhão de escuro o puxou como furacão fazem com as casas em tempestades, repetindo o mesmo com ele, puxando-o pedaço por pedaço, unindo o sangue, a gordura, a pele, ao escuro tornado que ficava mais urgente. E por alguma razão desconhecidamente especial; George estava assistindo tudo aquilo como um participante em uma realidade 6d de sentimentos e sensações.
Acordou mais uma vez. Bem na hora que 'aquilo' deu a vez ao seu cérebro se juntar e ele não passava de uma escultura de ossos inerte.

Ele acordou drenado. Suas forças se esvaindo. O peito pesava duas toneladas e os braços e pernas mais cinco. Mal conseguia respirar. Se aquilo acontecesse de novo, então, seria o fim. Não aguentaria outro Round com aquela sessão de pesadelos.
Mas o Sol já estava surgindo e como o super homem aquilo o deu forças novamente e ele se levantou.
O tão quentinho e brilhante Sol. Que alívio...
Seu quarto era no último andar de uma casa de quatro. Ele abriu a janela e sentiu o cheiro de água suja misturada as flores que residiam à frente da sua casa. Era uma distância considerável, mas dava pra sentir sim.
Abriu os braços e prometeu nunca mais se envolver com terror, na vida dele, novamente.
Aquelas promessas mentais (como; vou emagrecer próximo ano. Deixarei de ver vídeos eróticos na internet. Serei um homem melhor. Um pai melhor.) que ele sabia que não conseguiria cumprir.
Terror era uma droga viciante e de graça, qualquer esquina tinha traficantes com suas mercadorias vindas em forma de livros completos, dvds, cds, contos, curtas (para cegos, em forma de audiobook, claro).
Toda esquina. Todo dia... Quão acolhedor era pensar naquilo. Deixando sua mente perversa como Hannibal Lecter. Ou maluca como Jigsaw. Até mesmo inteligente como Kira de um desenho japonês com nome pitoresco.

Como qualquer pré-adolescente, George morreu pelo pensamento; Pois o Sol começou a se tornar negro e as nuvens de um tom rosado mesclado a púrpura doente. E seu sorriso se fechou.
- DE NOVO NÃO! - protestou. Mas em vão. Muitos monstros surgiam no horizonte; daqueles sem cabeça ou que se moviam com cordas, até mesmo sem rostos.Que se arrastavam, ou que grasnavam. Nominais e inomináveis. Uma apoteose animalesca de personagens inventados por uma mente tão doentia quanto o ser que agora observava tudo aquilo, imóvel e com calafrios agudos.

Se aquilo era uma bacia de água repleta de pesadelos e coisas que afrontavam a insanidade da Terra, então George Wilson Sinclair estava afogado nela até a garganta. Conseguia até sentir água (pesadelo) entrando em seus pulmões ou por qualquer abertura e fazendo estrago lá... E ouvindo os pais dizendo, o que era diariamente habitual, Você não presta pra nada, George, é preguiçoso.

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O garoto enlouqueceu. Se jogou do quarto andar e quebrou o pescoço enquanto sua mãe acordava para receber o carteiro à porta.
Tentou gritar - ao ver o sangue espichado nas paredes e à cinco metros na circunferência do que era o seu pequeno garoto, e agora era apenas a carne rosadamente avermelhada e amontada que sobrou jazendo-se em sangue - mas naquela manhã ensolarada linda e repleta de resquícios de nuvens alaranjadas de janeiro...




Foi tarde demais...




Continuar?

S/N




 

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