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quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Uivos da madrugada -








Há muito sangue no chão e as sirenes policiais estão ecoando à distância. Moradores saem de suas devidas residências, atônitos, chocados.
Um carro se encontra em chamas na rua 7 no cruzamento com a rua 9, mas logicamente o sangue não vêm de lá, mas sim dos pedaços de carne que voaram e caíram no chão debatendo-se como se fosse uma carne de anfíbio que acabara de entrar no fogo com óleo quente.
Detetive McFaless já estara com um pé fora do departamento de polícia de Helmirtis, mas como todo bom policial ele não pode sair até resolver alguns assuntos pendentes em seu gabinete, não que fossem uma obrigação com o governo e ele sabia bem disso, mas ele realmente queria fazê-lo pois senão o fizesse aqueles assuntos iam ser empurrados para calouros (apelido de novos policiais que se agregam a academia, mas que somente estão lá pelo o dinheiro, nada mais e nada menos), portanto eles também não iriam atrás de resolver...
- Esses jovens não sabem da parte boa de ser policial - ele pensa, e olha pra um deles que chegavam perto do corpo e fingia anotar algo em um bloco de notas, McFaless observara bem para a caneta e conseguia ver que não estava aberta, ele fingia anotar algo com a tampa. Então continua. - Não se dá ao trabalho ao menos de tirar a tampa da caneta e fazer uma boa cena de mentira. Como eu disse... Eles não sabem.

Perto dos seus cinquenta e fazendo serviços como detetive há quase vinte e cinco ele sabia realmente o que procurar na cidade. Dentro de seu sobretudo marrom que na madrugada próxima das 2h e 30mim realmente parecia preto-tosco, ele estara fitando todos da rua afim de encontrar algum "ladrãozinho-barato" que depois de cometer o crime permanecia camuflado nas redondezas somente para "não chamar a atenção", o que na mente do Det.Hetter MacFaless era uma bobagem, isso não acontecia com ele no comando, pois ele sabia bem como os ladrões fazia, os quase vinte e cinco anos foram cruéis com ele mas ainda sim o fizeram esperto.
Ele vai fazendo uma lista mentalmente de todos que ele reconhecia e de outros rostos que ele considerava simples demais ou estranho demais.
- O casal da casa 97, Sr e Sra. Wool. A senhora de idade da casa 21, mãe do lenhador que tinha uma loja de penhores na cidade pela qual só aparece para recolher os lucros. Betty Simpson uma prostituta local que se vestia bem e morava em uma casa que um ovo era mais confortável. Casa... - Ele tenta se lembrar com dois dedos na cabeça, coçando as sobrancelhas. - 56. Fim da rua, ou início se ele você viesse do condado de Liberfort e optasse por obter rotas rápidas ao centro da cidade, era totalmente discutível que passasse pela rua 7, e analisando a situação. aquelas pessoas daquele carro estavam nessa trajetória - Ele diz chutando a placa que também voara na explosão e que viera parar próxima ao acostamento onde ele estava de pé. - Como eu disse. - 0987 - CONDADO LIBERFORT, a placa branca dizia. - Ele buscara algo para certificar-se de que não eram da polícia também, porquê caso fossem... então o assassino devia ser um mafioso que devia ter ficado puto da vida com alguns cassinos ou ponto de drogas fechados , trazendo assim prejuízo para seus bolsos. Mas a placa dizia por si só, não era tudo mas era o suficiente para dizer que o dono do carro não era nenhum policial, as placas da policia contém um adereço especial do que nos outros carros, embaixo da localização fica a sigla do departamento pelo qual ele pertence, escrito de forma desapercebida para fazer os carros se camuflarem no meio dos outros.
Ele prossegue com sua analise mental:
- Dianna Thomas, viúva e mãe de quatro garotos, uma mulher excepcional que você se enganaria se não a conhecesse e falasse que ela estava na casa dos vinte, quando na verdade está na casa dos quarenta ou cinquenta como o detetive. E os Foster, apenas um casal simples que zela pela rua que mora, e não tem mais nada a detalhar. O resto eram rostos comuns mas não demais. Ele tenta buscar mais afundo com os olhos abaixo do chapéu social feltro marrom também.
Ele visualiza Vincent Cury. Um trombadinha local que sempre tentava dar uma de esperto. Ele está de pé ao lado de um casal e seus dois filhos, como se fizesse parte da família. Todos estão de um lado da pista ao outro, como não havia fluxo de carros por ali na madrugada, então não havia problemas. Então ele anda por cima da calçada e vai desviando por entre todos, e vai andando declinavelmente fazendo um percurso circular afim de pegá-lo por trás.
Ele se aproxima e consegue ouvir no meio da multidão fervorosa que mantinham-se comunicando-se entre si, sussurros vindos de Vincent, era como se o cara tivesse uma doença mental. Sua testa soava forte, e cada gota parecia um pouco de alma que iria embora do sujeito. O detetive põe a mão em seu ombro. Vincent torna a estar mais nervoso ainda, e agora seus joelhos tremem, desequilibrando-se.
- Vincent, não me diga que tem algo a ver com isso ou que presenciou porquê de toda forma você sempre está "na hora errada e no lugar errado" - ele diz lembrando do que ele sempre costumava dizer nos interrogatórios, fazendo aspas com os dedos mostrando ênfase. - Dessa vez eu juro que saio da polícia com você segurando um decreto de prisão perpétua. - ele diz apertando seu ombro e pressionando cada vez mais forte, sucessivamente a cada palavra dita.
- E-eu? - sua voz trêmula transforma sua garganta em um tubo com uma bola de basquete presa dentro. - Ma-ma-mas eu vi.
Det. MacFaless  já sabia que sim, apenas tinha que fazer vista-grossa para não perder a moral em cima de trombadinhas como Vincent. Mesmo agora quando seu corpo estará quase 1/2 de sair do departamento.
- O que necessariamente você v... - Ele diz interrompido pela sirene do carro de bombeiros. E logo atrás o rabecão local. - Bem venha comigo. - ele o puxa pela gola da camiseta branca. Vincent o segue desajeitadamente.

No canto da pista de outra rua, a 9 , longe de todos aquele rostos assustados, está MacFaless com uma mão no ombro de Cury. Olhando diretamente nos seus olhos, mesmo Vincent Cury não conseguir retribuir por causa da sombra que a luz do poste criava em seu chapéu ocultando seus olhos, ele olhava para onde achara que estava os olhos.
- Então filho... Comece.
Vincent desvia o olhar. Outro carro dos bombeiros passa com as sirenes no máximo, e dobra na rua 7. - Talvez ambos os moradores tivessem ligado para o corpo de bombeiros e então mandaram dois carros ao mesmo local achando que era incêndios distintos. - MacFaless pensa, e então aperta ainda mais o ombro do cara, fazendo-o fazer uma careta.
Com seus olhares ainda no final da rua além dos carros, de forma nostálgica ele começa.
- Eu estava procurando o que fazer, sabe? Sem nenhum um puto no bolso o sujeito pira. - ele diz levando as mãos a cabeça de forma à fazer gestos simbolizando loucura. - Todos estavam nas suas casas e os poucos que estavam do lado de fora, ao me ver, entraram rapidamente. Eu sabia que era provável que eu voltasse pra casa com fome, ou talvez sóbrio, um ou outro parece cruel, saca? - MacFaless apenas meneia a cabeça que sim mas pensa: cruel é um cara trabalhar o mês inteiro e você vir e o roubar. Ele gesticula um movimento com a cabeça para ele continuar.
- Eu já estava perto da rua 6, perto da casa daquela véia maluca que estava me encarando com o telefone em mãos, provavelmente ligando para o filho caipira vir me pegar. - MacFaless observa-o e pensa que por enquanto ainda faz sentido o que ele fala, a casa da Sra. Melbourne realmente é próxima ao cruzamento da 7 com a 6.
Vincent se interrompe e tosse, não uma de quem está engasgado, mas sim de quem anunciava uma gripe cheia ou então ele podia preparar o caixão por causa de uma possível tuberculose.
- Então eu percebo um carro me seguindo, é estranho, por quê eu não o percebi? Aquela rua me conhece você me conhece, eu só roubo quando alguém dá mole... - Det. MacFaless complementa:
- Por quê quem arrisca não petisca, algo assim.
- Sim, você pegou. - Ele pisca para aquela sombra acima da boca embarbada, onde ele acha que os olhos estão. Então continua:
- Então levando em consideração as bebidas e um pouco de maconha que estou devendo ao Sr. B - MacFaless lembra desse apelido, Ibrahim Colvitck, o traficante do outro bairro que sempre que fora pego alegava problemas mentais e era solto por conta do juiz acreditar.
- Aquele carro devia ser ele tentando me pegar, mas eu me lembro de dizer que eu ia pagar na outra semana. Ou eu estava muito doido? - Ele, com um olhar de questionação, observa o poste e alguns mosquitos rodeando a luz, dividindo-a.
- Não... eu acho que eu disse sim.
- Diga o que eu quero ouvir, Vincent. - Ele solta as mãos dos ombros dele e agora está de braços cruzados encostado no poste, o qual quem estivesse vindo de longe achara que ele fizesse parte dele.
Vincent ajeita a camisa e começa a olhar para os lados, apavorado, suando litros em poucos segundos novamente.
- Porra... - Ele deixa sair e percebe que de alguma forma o detetive o olhou feio. - Ele vai me pegar...
- Quem vai te pegar Vincent? Me dê um nome ou eu te prendo como cúmplice e toda aquela merda vai para sua ficha.
- Não senhorzinho.... eu estou cooperando. - Ele emburrece o rosto, como um garoto de doze anos faz ao abrir uma caixa de presente no seu aniversário e ver que não ganhou nenhum videogame e sim peças de roupas. - Eu digo, sob uma condição. E aí?
Hetter MacFaless se perguntou quando ele começou a ter opiniões próprias ou cláusulas nas palavras, a ponto de querer negociar condições.
- Bem... eu não negocio com bandido em hipótese alguma, principalmente com você, mas prometo livra-lo de algumas coisas sim. - Ele descruza os braços e aponta para Vincent. - Se por sua vez me ajudar, certo?
Vincent parece insatisfeito e se lembra do que sua mãe disse, sua mãe bêbada: Ou vai, ou racha.
Não era bem aquilo que ele queria para si no momento mas era melhor do que ser fodido por trás sem ter culpa no cartório.
- Certo! - Ele pisca tentando parecer amigável.
- Então. Continue. - Sua mãos balançam desajeitadamente por causa da manga colada no sobretudo. (ele percebeu que estava um pouco acima do peso.)
- Eu parei e percebi que eles também pararam. Fiquei de pé no poste e inacreditavelmente Deus enviou do céu um cigarro, eu pisei em um e me abaixei para pegar, atrás da lata de lixo, como eu sempre ando com meu isqueiro eu acendi. - Ele o tira do bolso e mostra para MacFaless, o acendendo, mostrando que ainda estava em funcionamento. - Daí eu acendi ainda abaixado e me levantei dando a primeira tragada, notei uma arma para fora do carro e me escondi atrás lata de lixo de novo, acho que tive uma recaída.
- Uma recaída? - Ele lembrou de como Vincent era, e aparentemente as contradições tinham começado.
- Eu tinha dado uns tapinhas antes, acho que já posso dizer isso para você não é? - Ele cospe no chão ao lado do próprio pé. - Afinal, já não é segredo para ninguém.
- Realmente não é.
Vincent continua, ainda brincando com a roda acionadora do isqueiro. O que faz Hetter se perguntar o quão legal seria se uma fagulha caísse em sua camisa branca e começasse a pegar fogo, ele não o ajudaria, era o castigo por seu mau.
- Eu então no chão comecei a ligar o meu estado "Foda-se geral", então me levantei e comecei a dar o dedo, era como estar no piloto automático de seu próprio corpo. É reconfortante.
- Talvez seja, talvez não. Mas isso ainda não vem ao caso.
- Ainda não é... - Ele diz acendendo uma chama e observando o detetive por entre ela. - Ainda...
- Continue. - A chama se apaga no vento forte.
- Então eu naquele momento desejei aos infernos que aquele carro sumisse, saca? eu não queria morrer, afinal de contas quem quer? Eu sabia que fiz errado e que estavam me perseguindo, podia não ser mas quem arrisca... - MacFaless o interrompe com a palma da mão esticada, e balançando como um sinal de "Já chega dessa frase por hoje".
- Pois é. Então uma sombra reacendeu do bueiro atrás do carro, posso ser um drogado mais ainda tenho a visão boa. Que engraçado. Ainda.
Hetter sai da penumbra do poste, saindo de sua camuflagem ele dá alguns passos até Vincent. Os gritos do outro lado da rua ecoam, talvez essa tenha sido a hora que começavam a tirar os restos mortais do carro e a população, sanguinária talvez, começasse a enlouquecer como em shows de rock, e também alguns começavam vômitos ou desmaios ao ver as cenas, como no mesmo tipo de show.
- Eu não vim até aqui perder meu tempo com você, Vincent. Se tentar me fazer de bobo eu também fodo você, e o faço com força.
- Não estou brincando... Por Deus eu não estou Hetter. Eu sei o que vi. - Agora o suor começava a cair de verdade pelo rosto.
- O que você usou Vincent?
- Apenas maconha senhor. Apenas isso.
- Tem certeza?
Mas antes que ele pudesse responder, suas pernas babeiam, e aquela tela de água encardida cai no chão, como se uma força espiritual o tivesse derrubado. Hetter sequencia alguns tapas no seu rosto. Mas então ele acorda e fala fragilmente com uma voz entorpecida.
- Só isso, eu juro. vá até... o... centro.
- O que fazer no centro.
Seus olhos já estão quase fechados, e ele sabia que duraria para reabri-los novamente. Então ele solta algo baixo demais, que ele acha que conseguiu ouvir.
- Eva, sabe... tudo sobre... iss.. - Seus olhos fecham.
Hetter bate no seu rosto levemente, apenas alguns tapinhas inúteis. Ele o deixou no chão. A palma de sua mão abre e de dentro rola um isqueiro para o chão. Hetter o pega.
Acende um charuto e anda pela rua 9 até voltar para a rua 7.
Como ele pensou...
Os legistas estavam enrolando os corpos em um papel brilhante, quando a morte se dava por queimaduras assim, esse era o procedimento padrão.
Um dos legistas levanta o braço do chão para juntar a um dos corpos.
- Já é cinco para as três da manhã - Ele pensa olhando para o relógio abaixo do sobretudo.
E a multidão vai a loucura.


Eva Mensfield, uma mulher tão drogada quanto Vincent Cury, a diferença é que ao menos Vincent tem suas horas sóbrias e ela era uma viagem cerebral etérea ao infinito.
Ele deixa aquela cena aos calouros e aprendizes de detetives. Afinal eles são como cachorros com dor de barriga, apenas procurando um lugar para defecar em cima e enquanto eles não acham (o que não durará tanto tempo), Hetter deve resolver esse caso por si só.
Ele olha o relógio de novo.
- Como as horas passam rápido. São três e vinte e não deu tempo para fumar um charuto inteiro. - Ele pensa andando por entre todos novamente mas agora em direção a rua 6 para ir andando "cortando" e chegar mais rapidamente ao centro. Uma taurus.40 estava em um dos bolsos internos dentro do sobretudo marrom, e presa ao cinto na parte de trás uma eagle que não fora presente do departamento (ele comprou à parte), esta a qual ele somente usaria em situações extremas.
Andando com as mãos nos bolsos laterais do sobretudo e com um passo firme ele imagina que se não estivesse enferrujado ou com mal de alzheimer adiantado, então:
Eva Mensfield poderia ser encontrada num lugar que ela chamava de "paraíso-cósmico" onde ela fingia ler a mão dos outros em troca de algumas moedas, o que para ele essa bobagem de misticismo é apenas um rótulo politicamente correto para dizer que você é um drogado com sérios problemas mentais.
Hetter já se encontrava na rua 12 e indo em direção ao centro, poucos quarteirões para chegar aos arredores dos portões do"paraíso-cósmico", a rua estava solitária e o vento uivava. O sobretudo balançava, então ele pára. Está sentindo uma velha sensação de infância - aquela de estar andando sozinho e sentir-se ser observado. Ele olha por cima do próprio olho pelo canto dos olhos, não havia nada ali, então ele se vira por completo.
A rua estava deserta e alguns gatos estavam correndo atrás de ratos, eles cruzavam a rua correndo sem fazer nenhum barulho e então se perdia de vista na penumbra em alguns pontos escuros da cidade, Hetter MacFaless vê um gato preto com um olho de cada cor, e no canto de sua boca há um pequeno rabo, ele encara Hetter em sinal de defesa vendo o homem de marrom como uma possível ameaça a seu alimento. Seus pêlos se arrepiam e Hetter consegue ver, ele cospe o cadáver morto do rato no chão, desmembrado, e corre em disparada ao outro lado da pista se perdendo na escuridão.
Ele fica parado observando a escuridão e se perguntando o que mais há escondido por lá.
Fitas a boca do rato aberta, e então volta ao seu caminho.
E o vento uiva.

O detetive Hetter MacFaless observa do lado de fora o fluxo de pessoas saindo de dentro do atual intitulado "Paraíso-Cósmico", sempre olhando suas mãos e os que saim em dupla conversando sobre algo que ouviu sobre seu próprio futuro. Baboseira de misticismo. - Ele torna a lembrar. Então entra.
No cartaz há uma foto de uma mulher de cabelos loiros acentuados por uma cor branca de velhice, e embaixo ao que desrespeitava essa mulher dizia: "Mãe Eva, a primeira e única no mundo. Vá em frente e descubra o seu futuro." E logo mais abaixo há um painel onde letras estavam emolduradas dentro de luzes roxas, "Apenas alimentando aquele misticismo bobo" ele pensa, e no painel dizia:
"Eu Sei Que Há Algo Que Você Deseja Saber, só precisa perguntar."
As luzes se apagam e reacendem, programadas para fazer isso de minutos em minutos.
Do lado de fora ele observa os drogados do outro lado, apenas olhando torto para ele e escondendo algumas coisas em seus bolsos ou sacolas, alguns até jogavam (algo que ele sabia bem do que se tratava) pelo bueiro. Era bom saber que um policial ainda era temido.
Eles se levantam e esquecem alguns calçados pelo chão. Então correm para outro lado.
E Hetter com as mãos nos bolsos apenas entra.

- Se não é o bom homem do governo, sei que está armado, mas por favor não use esses instrumentos mortais aqui, eu peço por favor. - Aquela voz feminina de quem era uma fumante veterana e que por motivos não-tão-convencionais havia parado, diz.
Ele olha para o próprio corpo e então saí da própria surpresa.
- Você me conhece e sabe que sempre ando armado, então não venha com esse papo.
- E eu também sei que você anda com outra escondida aí, eu digo, além da arma do governo?
Hetter fica sem palavras por alguns segundos, mas se lembra de técnicas mágicas que foram ensinadas em um programa do canal da tv por assinatura que ele raramente conseguia assistir todo sem dormir.
- Você errou querida.
- Eu sei que sim. - ela responde. - Quando vai me dar dinheiro para que eu possa responder suas perguntas? - Ela diz. A mesa se abre no meio e outra surge do chão. Revelando por sua vez uma bola de cristal magnetizada, com vários raios elétricos passando dentro.
- Primeiro responda. Depois o dinheiro. - Ele faz um som com o isqueiro de Vincent dentro do próprio bolso, e soa como se fosse o gatilho da arma.
- Por favor, nã... - Ele a interrompe:
- Então eu posso começar?
- Sim. - Ela diz calmamente. - Isso ela não pôde prever, ótimo, é bom estar certo. - ele pensa consigo.
- Vincent me disse que você sabe de algumas coisas estranhas que estão acontecendo por aqui. - Ele lembra da rotina que sempre segue: Para seguir o que um trombadinha fala, para ele estar certo de algo, então aquilo devia ter acontecido mais de uma vez. Então valerá a pena procurar. Ele se recorda do desaparecimento e reaparição do casal Morrigane da rua Brigde para a última rua que faz fronteira com a cidade vizinha, a rua Twin-sands, primeiro curtindo dentro do carro próximo à praia, e depois desmembrados próximo ao bueiro (era como se alguém estivesse filtrando o sangue, limpando a sujeira toda), apenas... lá.
- Você diz do casal que sumiu há algumas semanas?
- Também, eu acho.
- Você não sabe não é? - Ela diz se inclinando na direção dele.
- Sim, sei mas eu somente vim até aqui por quero sua assinatura de testemunha... - Ele diz e ri ironicamente.
- A escuridão foi revelada. O que estava quieto agora está perturbado. Há um monstro na cidade, e aqueles que andam sozinhos com desejos imundos em suas mentes são caçados e limpados do mundo, para sempre.
MacFaless se pergunta que tipo de merda ele se meteu, não por quê achava que aquilo de alguma forma estava certo, mas sim por quê eram dois drogados falando a mesma coisa. O que parcialmente o faz sentir-se bobo.
Ele dá as costas para Eva. Caminha em direção a porta perdido em pensamentos de raciocínios lógicos. Então ele a ouve.
- O próximo desta noite é você Hetter Mac-Faless! - Ela diz apontando para ele. E Hetter apenas acompanha com o canto dos olhos e a mão girando a maçaneta lentamente. - Onde estão minhas moedas. Ela deixa passar algo.
- Você me responderia, e então eu te pagaria, como você apenas continuou essa fantasia. Não tem pagamento.
- Esse seu jeito mesquinho condenou você. Apenas por quê acha que é detetive pode tudo?
- Eu posso tudo. - ele sussurra e sai da sala.
Atrás dele Eva entra em convulsão em silêncio.
Ele não vê e não percebe, apenas sai pensando:
- Eu sei que posso.



Ele volta para a sua casa, certo de que iria deixar isso para os calouros, afinal não tinha nada de produtivo. Hetter cruza de volta para a rua 12 e ela está novamente e estranhamente deserta. Onde o rato se encontrava agora havia um gato e atrás dele, quase oculto, o rato comendo um glóbulo amarelo e observando MacFaless, olhares famintos. O gato ainda estara vivo e miava em um tom que não se parecia nada com um miado, era algo gutural, era um som alto mas ninguém se atrevia a olhar pelas janelas o que fazia ele pensar que todos estavam em seus décimos sonhos.
Hetter anda através da calçada e pensa "Mas que Mer#$ foi essa que acabei de ver?"
Mas seus pensamentos são novamente apagados por um raciocínio lógico que preservara desde que entrou para a polícia.
- O casal Morrigane já tinham passagens por posse de drogas, o que me faz pensar que tudo o que aconteceu foi uma vingança do crime organizado. - É quase que uma certeza, ele sabe.
- E tudo o que deve ter acontecido naquele carro, possivelmente, foi o mesmo. E mesmo se não for? quem se importa? eu vou sair antes de enlouquecer... como minha avó falava: Antes tarde do que nunca.
Então anda pelo umbral da cidade. Cruzando a rua 6, deserta, e entrando nos trilhos novamente na rua 7. Também está deserta. Nenhum pio da cidade, e ele olha para o relógio mas este também parou de funcionar, fechando o horário 3h40mim.
Não parecia a rua que um acidente havia acontecido, devia haver ao menos uma janela com as luzes acessas. Mas não há. Não há nada. Ninguém no meio da rua abraçado ou chorando, não há ninguém sentado nas fachadas ou luzes emitidas da tv. Apenas o nada.
Ele pára e observa o rastro no chão. Ainda há um braço lá. O que o faz pensar no que realmente estava acontecendo. Hetter MacFaless anda pela calçada e pisa em algo metálico se abaixa e:
- Put$ Merd#! - Ele sussurra. Era a placa do carro. Aquilo tudo devia ter sumido dali quando a perícia forense chegou.

Ele olha para trás, não em direção a rua 9 mas de onde ele viera, e há um carro lá. Não há sinal de vida lá dentro, mesmo ele se sentindo mal como se alguém tivesse tomando sua alma. Sua barriga embrulha e então o carro acelera lentamente, uns 2km/h talvez.
Seu passo acelera e o batimento começava a martelar. Sua testa está pingando de suor, e tudo aquilo estava acontecendo sem ele sequer dar conta. "É como estar no piloto automático de seu próprio corpo. É reconfortante" - Ele vê Vincent de pé dentro de sua mente, dizendo-lhe.
Ele vira para dobrar na nove e o tempo começara a acelerar.
Rua 9 então a 1, depois a 4, então de volta a 7 e novamente virando a 9, e isso continua em um loop infinito, até ele cair no chão. Seu chapéu gira lentamente em direção ao bueiro e se perde lá dentro.
Os gatos saem da área escura. Não somente um ou dois, nem mesmo dezenas, mas milhares. Todos miando em um vocal gutural. Todos sem seus olhos. Vincent está lá no meio sendo devorado pela escuridão.
Os ratos também estão lá, são poucos em comparação com os gatos. A cidade estava silenciosa.
Hetter é levado para o meio e aquilo provoca um arrepio que era como se alguém tivesse injetado gelo em seus ossos. O gelo no começo da espinha passando até o final.
Lá na escuridão você conseguiria ouvir um som de mastigação. E também um som de ossos palitando-se por entre os dentes. Sem nenhum grito ou berro de pavor.

A cidade naquela madrugada estava silenciosa.


Todos estavam se pondo a voltar para a escuridão e se ocultar durante toda a noite, e por quanto tempo? bem eu não sei.

Mas você consegue ouvir os gatos brigando por ratos ou os mosquitos batalhando por um lugar na luz, eles também sentem medo.

Um som de sacos de ossos ainda é ouvido por lá como se fosse um tipo de troféu.



E o vento...















Continua a uivar 



















Boa noite - 









segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Eu sou o umbral da porta - Stephen king, Short-Story - Sombras da noite - "Night Shift"






Richard e eu estávamos sentados em minha varanda, olhando por cima das dunas para o golfo. A fumaça de seu charuto espalhava-se preguiçosamente no ar, mantendo os mosquitos a uma distância segura. A água era um frio azul-turquesa, o céu um azul mais profundo, mais real. Uma combinação agradável. ― Você é o umbral da porta ― repetiu Richard, pensativo. ―― Tem certeza de que matou o menino? De que não foi um sonho? ― Não foi sonho. E também não o matei ― já lhe disse isto. Eles mataram. Eu sou o umbral da porta. Richard suspirou: ― Você o enterrou? ― Sim. ― Lembra-se do local? ― Sim. Enfiei os dedos no bolso do peito e peguei um cigarro. Minhas mãos eram desajeitadas em seu invólucro de bandagens. Coçavam abominavelmente. ― Se quiser ver, tem que pegar o buggy. Não pode rolar isto indiquei-lhe minha cadeira de rodas ― na areia. O buggy de Richard era um Volkswagen `59 com pneus enormes. Ele o usava para apanhar madeira trazida pela maré. Desde que se aposentara de seu negócio imobiliário em Maryland, morava em Key Caroline e fazia esculturas em troncos trazidos pelo mar, que vendia a preços vergonhosos aos turistas de inverno. Tirou uma baforada do charuto e olhou para o golfo. ― Ainda não. Quer me contar mais uma vez? Suspirei e tentei acender o cigarro. Ele me tirou os fósforos da mão e acendeu para mim. Puxei duas tragadas, inalando profundamente a fumaça. A coceira em meus dedos era de enlouquecer. ― Muito bem -declarei. ― A noite passada, às sete horas, eu estava aqui, olhando para o golfo e fumando, exatamente como agora, e... ― Recue um pouco mais no tempo ― pediu ele. ― Recuar mais? ― Conte-me a respeito do vôo. Sacudi a cabeça. ― Richard, já repetimos isso muitas vezes. Não há nada... O rosto vincado e enrugado era tão enigmático quanto uma de suas esculturas. ― Talvez você se recorde ― disse ele. ― Agora, talvez se lembre. ― Você acha? ― É possível. E quando terminar, podemos procurar a sepultura. ― A sepultura ― repeti. A palavra tinha um som oco, horrível, mais sombrio que qualquer coisa, ainda mais sombrio que todo aquele oceano através do qual Cory e eu velejáramos cinco anos antes. Escuro, escuro, escuro. Por baixo das bandagens, meus olhos fitaram cegamente a escuridão que os curativos impunham. Coçavam. Cory e eu fomos colocados em órbita pelo Saturno 16, que todos os comentaristas chamavam de Foguete Empire State Building. Era um enorme animal, realmente. Fazia o velho Saturno 1-B parecer um brinquedo e era lançado de um bunker de concreto com sessenta metros de profundidade ― tinha que ser, para evitar que arrasasse totalmente Cabo Kennedy. Fizemos órbitas em torno da Terra, verificando todos os nossos sistemas, e depois acionamos os propulsores. A caminho de Vênus. Deixamos um Senado em polvorosa, discutindo um projeto de orçamento para posteriores explorações do espaço e um bando de pessoas da NASA rezando para que encontrássemos alguma coisa ― qualquer coisa. ― Não interessa o quê ― gostava de dizer Don Lovinger, o menino prodígio particular do Projeto Zeus, quando tomávamos umas e outras. Vocês têm todos os aparelhos, além de cinco câmeras, especiais de TV e um lindo telescópio com zilhões e zilhões de lentes e filtros. Encontrem um pouco de ouro ou de platina. Ainda melhor, encontrem alguns adoráveis homenzinhos azuis para nós estudarmos, usarmos e nos sentirmos superiores. Qualquer coisa. Até mesmo o fantasma de Howdy Doody já seria um começo. Cory e eu estávamos ansiosos por atender, se possível. Nada funcionara em favor do programa de profunda exploração espacial. De Borman, Anders e Lovell, que entraram em órbita ao redor da Lua em `68 e encontraram um mundo vazio e ameaçador que parecia areia suja na praia, a Markhan e Jacks, que pousaram em Marte onze anos depois para encontrarem uma vastidão árida de areia congelada e uns poucos liquens raquíticos, o programa de profunda exploração espacial fora um dispendioso fracasso. E houve baixas: Pedersen e Lederen, subitamente lançados em órbita eterna em tomo do Sol quando tudo deixou de funcionar no antepenúltimo vôo Apolo. John Davis, cujo pequeno observatório espacial foi perfurado por um meteoróide em um acidente cujas possibilidades eram uma em mil. Não, o programa espacial não ia nada bem. Ao que tudo indicava, a órbita de Vênus seria nossa última oportunidade de dizer: "Viram como tínhamos razão? " Dezesseis dias de viagem de ida ― comemos um bocado de alimentos concentrados, jogamos um bocado de buraco, trocamos um resfriado para lá e para cá ― e sob o ponto de vista técnico foi uma sopa. Perdemos um conversor de umidade do ar no terceiro dia, ligamos o sobressalente e isto foi tudo, excetuando alguns detalhes sem importância, até a reentrada da atmosfera terrestre. Vimos Vênus crescer de uma estrela a uma lua em quarto-crescente e, finalmente, uma bola de cristal leitoso, trocamos piadas com o Controle Huntsville, escutamos fitas de Wagner e dos Beatles, cuidamos de experimentos automatizados que tratavam de tudo, desde medidas do vento solar até navegação no espaço. Efetuamos duas correções do curso, ambas infinitesimais, e no nono dia Cory saiu da nave para bater no DESA escamoteável até que este resolveu funcionar. Nada de extraordinário até que... ― DESA ― repetiu Richard. ― O que é isso? ― Um experimento que não deu certo. Jargão da NASA para designara Deep Space Antenna, uma antena para uso no espaço longínquo ― irradiávamos impulsos de alta freqüência para quem estivesse interessado em escutar-nos ― respondi, esfregando os dedos nas calças, sem resultado; na verdade, a coceira deu a impressão de piorar. ― É a mesma idéia do radiotelescópio na West Virginia ― você sabe, o que escuta as estrelas. Só que em vez de escutarmos nós transmitíamos, primordialmente para os planetas mais afastados: Júpiter, Saturno, Urano. Se existe alguma vida inteligente por lá, devia estar cochilando. ― Só Cory saiu ― Sim. E se trouxe consigo alguma praga interestelar, a telemetria não revelou. ― Mesmo assim... ― Não interessa ― interrompi, irritado. ― Só o aqui e agora importam. Mataram o menino ontem à noite, Richard. Não foi agradável ver... ou sentir. A cabeça dele... explodiu ― como se alguém lhe tivesse retirado o cérebro e colocado uma granada de mão no interior do crânio. ― Termine a estória ― disse ele. Soltei uma risada oca. ― O que há para contar? Entramos em órbita excêntrica em torno do planeta. Era radical e se deteriorava; quinhentos e doze por cento e doze quilômetros. Isto na primeira volta. Nossa segunda volta foi ainda mais alta, com o perigeu mais baixo. Tínhamos um máximo de quatro órbitas. Fizemos todas quatro. Demos uma boa olhada no planeta. Tiramos também mais de seiscentas fotos e só Deus sabe quantos metros de filme. A camada de nuvens é composta por partes iguais de metano, amônia, poeira e merda voadora. O planeta inteiro parece o Grand Canyon num túnel de vento. Cory calculou a velocidade do vento em cerca de mil quilômetros por hora perto da superfície. Nossa sonda funcionou durante toda a descida e pifou de repente. Não vimos vegetação nem sinal de vida. O espectroscópio indicou apenas traços dos minerais valiosos. E isso era Vênus. Nada, absolutamente nada ― exceto que me causava medo. Era como circularem tomo de uma casa assombrada em pleno espaço exterior. Sei o quanto isto parece anti-científico, mas quase me borrei de medo até nos afastarmos de lá. Creio que se um de nossos foguetes não se desligasse, eu cortaria o pescoço durante a descida. Não é como a Lua. A Lua é deserta mas, de algum modo, anti-séptica. O mundo que vimos era diferente, completamente diferente de tudo que alguém já viu. Talvez seja uma boa coisa existir aquela camada de nuvens. Era como um crânio completamente descarnado ― eis o melhor que consigo descrever. No caminho de volta, ouvimos que o Senado votara o corte pela metade do orçamento espacial. Cory fez um comentário sobre "parece que estamos de volta ao negócio de satélites meteorológicos, Arde". Mas fiquei quase alegre. Talvez nosso lugar não seja lá. Doze dias depois, Cory morreu e eu fiquei aleijado para o resto da vida. Perdemos toda a nossa sorte na descida. O pára-quedas não funcionou. Que acha disso, como uma pequena ironia da vida? Passamos mais de um mês no espaço, fomos mais longe que qualquer outro ser humano já conseguiu ir e tudo terminou daquela maneira porque algum sujeito estava com pressa de fazer um intervalo para o café e não dobrou direito o páraquedas, causando um embaraço nas linhas. Batemos com força. Um cara que estava num helicóptero disse que a nave parecia um bebê gigantesco caindo do céu, trazendo atrás de si a placenta. Perdi os sentidos quando batemos. Voltei a mim quando me carregavam pelo convés do Portland Nem mesmo tiveram oportunidade de enrolar o tapete vermelho sobre o qual deveríamos passar. Eu sangrava. Sangrava e era levado às pressas para enfermaria, passando sobre um tapete vermelho que não parecia tão vermelho quanto eu... ― ... Passei dois anos no hospital de Bethesda. Deram-me a Medalha de Honra, muito dinheiro e esta cadeira de rodas. Vim para cá no ano seguinte. Gosto de assistir à subida dos foguetes. ― Eu sei ― disse Richard, fazendo uma pausa antes de acrescentar: Mostre-me suas mãos. ― Não ― minha resposta foi muito rápida e áspera. ― Não posso permitir que eles vejam. Já lhe disse. ― Já se passaram cinco anos ― disse Richard. ― Por que agora, Arthur? É capaz de me dizer? ― Não sei. Não sei! Talvez o que seja tenha um longo período de gestação. Ou quem mesmo pode dizer que o contraí lá no espaço? Seja lá o que for, pode haver entrado em mim em Fort Lauderdale. Ou aqui mesmo, nesta varanda, pelo que sei. Richard suspirou e olhou para o mar, agora avermelhado pelo sol de final da tarde. ― Estou tentando, Arthur; não quero pensar que você esteja perdendo o juízo. ― Se for preciso, mostrar-lhe-ei minhas mãos ― repliquei, o que me custou grande esforço. ― Mas só se for preciso. Richard se levantou e pegou sua bengala. Parecia velho e frágil. ― Vou buscar o buggy. Procuraremos o menino. ― Obrigado, Richard. Ele caminhou em direção à esburacada estrada de terra que levava à sua cabana ― eu podia ver o telhado acima da Grande Duna, que se ergue por quase todo o comprimento de Key Caroline. Acima do mar, na direção do Cabo, o céu assumira uma feia coloração de ameixa e o som da trovoada longínqua me chegou aos ouvidos. Eu não sabia o nome do rapaz, mas via-o de vez em quando, caminhando ao longo da praia ao anoitecer, com a peneira sob o braço. Estava quase negro de tão tostado pelo sol e só usava um surrado par de jeans cortadas à altura das coxas. Na extremidade oposta de Key Caroline existe uma praia pública e um jovem empreendedor talvez consiga.ganhar até cinco dólares nos melhores- dias, peneirando a areia à procura de moedas perdidas. Ocasionalmente, eu lhe acenava e ele respondia com outro aceno, ambos neutros, desconhecidos mas irmãos, moradores permanentes da ilha em contraposição aos turistas esbanjadores que dirigiam Cadillacs e falavam em voz alta. Imagino que morasse no pequeno vilarejo agrupado em tomo da agência dos correios, cerca de oitocentos metros além de minha casa. Quando ele passou aquela tarde, já fazia uma hora que eu estava na varanda, imóvel, observando. Eu retirara as bandagens um pouco antes. A coceira se tornara intolerável e sempre melhorava quando eles podiam ver com seus próprios olhos. Era uma sensação como nenhuma outra no mundo ― como se eu fosse um portal ligeiramente entreaberto através do qual eles observassem um mundo que odiavam e temiam. Mas o pior era que eu também podia ver, de certo modo. Imagine sua mente transportada para uma mosca caseira, uma mosca que olhasse para seu rosto com mil olhos. Então, talvez você consiga começar a entender por que motivo eu mantinha minhas mãos envoltas em bandagens, mesmo quando não existia ninguém por perto para vê-Ias. Tudo começou em Miami. Eu tinha negócios lá com um homem chamado Cresswell, investigador do Ministério da Marinha. Ele vem checar-me uma vez por ano ― pois já estive o mais próximo que qualquer pessoa pode chegar do material secreto referente ao nosso programa espacial. Não sei o que ele procura; um brilho furtivo em meus olhos, talvez, ou uma letra vermelha em minha testa. Só Deus sabe por que. Minha pensão é tão grande a ponto de ser quase embaraçosa. Cresswell e eu estávamos sentados na varanda de seu quarto de hotel, bebericando drinques e discutindo o futuro do programa espacial americano. Era cerca de três e meia. Meus dedos começaram a coçar. Não foi nem um pouco gradual. Ligou-se de repente, como uma corrente elétrica. Mencionei o fato a Cresswell. ― Então, você pegou alguma planta venenosa naquela ilhota escrofulosa ― disse ele, sorrindo. ― A única vegetação existente em Key Caroline são os palmitos repliquei. ― Talvez seja a coceira dos sete anos. Olhei para minhas mãos. Perfeitamente normais. Mas coçavam. Mais tarde, assinei o mesmo documento de sempre ("Juro solenemente que não recebi nem revelei e divulguei informações que...") e dirigi meu carro de volta à ilha. Tenho um velho Ford equipado com freio e acelerador operados à mão. Eu o adoro ― faz com que me sinta autosuficiente. É um longo trajeto pela Rodovia 1 e, quando saí da auto-estrada e peguei a rampa de saída para Key Caroline, eu estava quase louco. Minhas mãos coçavam inacreditavelmente. Se você já passou pelo sofrimento da cicatrização de um corte profundo ou de uma incisão cirúrgica, talvez faça alguma idéia do tipo de coceira a que me refiro, tinha a impressão de que coisas vivas rastejavam e me perfuravam a carne. O sol quase desaparecera no horizonte e examinei cuidadosamente as mãos à luz do painel. Agora, as pontas dos dedos estavam vermelhas, em pequenos círculos perfeitos logo acima da parte carnuda onde estão as impressões digitais, nos locais onde ficamos com pequenos calos ao tocarmos violão. Também existiam círculos vermelhos de infecção no espaço entre a primeira e segunda juntas de cada dedo, inclusive o polegar, e na pele entre a segunda junta e a mão. Apertei os dedos da mão direita contra os lábios e retirei-os depressa, com repentino nojo. Uma sensação de atônito horror surgiu-me na garganta, lanuda e asfixiante. A carne onde os pontos vermelhos tinham surgido estava quente, febril, e o resto parecia macio, mole e frio, como a polpa de uma maçã apodrecida. Levei o resto do caminho procurando convencer-me de que realmente pegara algum tipo de urticária, em algum lugar. Contudo, no fundo de minha mente havia outro pensamento terrível. Quando criança, tive uma avó que passou os últimos dez anos de vida isolada do mundo num quarto do andar superior. Minha mãe lhe levava as refeições e seu nome era um assunto proibido para nós. Posteriormente, vim a saber que ela sofria da moléstia de Hansen ― lepra. Quando cheguei em casa, telefonei para o Dr. Flanders, no continente. Fui atendido pela secretária eletrônica. O Dr. Flanders estava fazendo um cruzeiro de pesca, mas se fosse urgente o Dr. Ballanger estaria às ordens. O Dr. Flanders regressaria no máximo até a tarde seguinte. Desliguei num movimento vagaroso e, depois, disquei para Richard. Deixei o telefone chamar uma dúzia de vezes antes de desligar. Depois disso, permaneci indeciso durante algum tempo. A coceira piorava. Parecia emanar da própria carne. Rolei minha cadeira de rodas até a estante de livros e peguei a velha enciclopédia médica que eu possuía há anos. O livro se mostrou enlouquecedoramente vago. Poderia ser tudo, ou nada. Recostei-me e fechei os olhos. Podia escutar o velho relógio de navio funcionando na prateleira do outro lado da sala. Ouvi o ronco longínquo de um jato que se dirigia a Miami. E o leve sussurro de minha própria respiração. Continuei a olhar para o livro. A percepção do fato foi lenta, mas, de repente, atingiu-me de modo assustador. Eu tinha os olhos fechados, mas, ainda assim, continuava a olhar para o livro. O que eu via era a versão difusa e monstruosa, distorcida, em quatro dimensões, de um livro. E, a despeito de tudo, a imagem era inconfundível. E não era eu o único que o olhava. Abri bruscamente os olhos, sentindo um aperto no coração. A sensação diminuiu um pouco, mas não inteiramente. Eu estava olhando para o livro, vendo as letras e diagramas com meus próprios olhos, uma experiência cotidiana perfeitamente normal; mas também via-o de um ângulo diferente, inferior ― via-o com outros olhos. Via não um livro, mas uma coisa estranha, algo de forma monstruosa e intenção ominosa. Ergui lentamente as mãos para o rosto, tendo a fantasmagórica visão de minha sala transformada numa casa de horror. Gritei. Havia olhos observando-me através de fendas na carne de meus dedos. E, enquanto eu olhava, a carne se dilatava e murchava, à medida que eles abriam implacavelmente caminho em direção à superfície. Mas não fora isto que me fizera gritar. Eu olhara para meu próprio rosto e vira um monstro. O buggy apareceu no topo da colina e Richard o freou junto à varanda. O motor acelerado roncava e pipocava. Rolei minha cadeira de rodas pelo plano inclinado à direita dos degraus normais e Richard me ajudou a embarcar. ― Muito bem, Arthur ― disse ele. ― A festa é sua. Para onde vamos? Apontei na direção da água, onde a Grande Duna finalmente começa a descer. Richard meneou afirmativamente a cabeça. As rodas traseiras derraparam, jogando areia, e partimos. Eu costumava espicaçar Richard por causa da maneira pela qual dirigia o buggy, mas não me dei o trabalho de fazê-lo naquela noite. Tinha muito mais em que pensar ― e sentir: eles não queriam o escuro e eu podia senti-los esforçando-se por ver através das bandagens, impelindo-me a retirá-las. O buggy saltava e rugia pela areia em direção ao mar, parecendo quase decolar do topo das dunas menores. À esquerda, o sol se punha no horizonte com uma glória sangrenta. Bem à nossa frente, no horizonte, as pesadas nuvens de trovoada se encaminhavam para nós. Os relâmpagos iluminavam o céu e os raios caíam no oceano. ― À sua direita ― disse eu. ― Perto daquele abrigo. Richard freou o buggy, espalhando areia, ao lado das ruínas apodrecidas do abrigo de troncos e folhas de palmeira. Estendeu a mão para trás e pegou uma pá. Fiz uma careta ao ver isso. ― Onde? ― indagou ele, sem expressão. ― Bem ali ― apontei para o local. Ele saltou e andou vagarosamente pela areia até o local, hesitou um instante e logo enterrou a pá na areia. Pareceu-me que ele cavou durante longo tempo. A areia que jogava por cima do ombro com a pá parecia úmida. As nuvens ameaçadoras estavam mais escuras, mais altas, e o mar parecia raivoso e implacável à sombra delas e ao brilho refletido do crepúsculo. Muito antes que Richard parasse de cavar, compreendi que ele não encontraria o garoto. Eles o haviam removido dali. Eu não colocara bandagens nas mãos na noite anterior, de modo que eles conseguiram ver e agir. Se foram capazes de me usar para matar o menino, poderiam usar-me para removê-lo, mesmo enquanto eu dormia. ― Não há menino algum, Arthur. Richard jogou a pá suja de areia na parte traseira do buggy e sentou-se fatigadamente ao volante. A tempestade que se aproximava lançava sombras curvas e movediças ao longo da areia. A brisa que se tornava mais forte jogava ruidosamente areia na lataria enferrujada do buggy. Meus dedos coçavam. ― Eles me usaram para removê-lo ― disse eu, obtusamente. ― Estão assumindo o controle, Richard. Estão forçando a porta, um pouco de cada vez. Uma centena de vezes por dia eu me vejo diante de algum objeto perfeitamente familiar ― uma espátula, um quadro, até mesmo uma lata de ervilhas ― sem fazer idéia de como cheguei ali, estendendo as mãos, mostrando-o a eles, vendo-o como eles o vêem, como uma obscenidade, como algo monstruoso e grotesco... ― Arthur ― interrompeu Richard. ― Não, Arihur. Não fale nisso. Na obscuridade, seu rosto demonstrava desânimo e compaixão. ― Diante de alguma coisa, você disse. Remover o corpo do menino, você disse. Mas você não pode andar, Arthur. Está morto da cintura para baixo. Toquei o painel do buggy. ― Isto também está morto. Mas quando você entra nele, é capaz de fazê-lo andar. Seria capaz de fazê-lo matar. Ele não poderia deter você, mesmo que quisesse ― repliquei, ouvindo minha própria voz erguer-se histericamente. ― Sou o umbral da porta, será que você não consegue entender? Eles mataram o menino, Richard! Eles removeram o corpo! ― Acho melhor você consultar um médico ― replicou ele em voz baixa. ― Vamos voltar. Vamos... ― Verifique! Verifique o menino, então! Descubra... ― Você disse que nem mesmo sabia o nome dele. ― Ele devia ser do lugarejo. É um povoado pequeno. Pergunte... ― Falei com Maud Harrington pelo telefone, quando fui buscar o buggy. Se alguém neste estado tem o nariz mais comprido que o de Maud, eu não conheço. Perguntei se ela ouviu falar no filho de alguém, que não voltou para casa na noite passada. Ela respondeu que não. ― Mas ele é do local! Tem que ser! Richard estendeu a mão para a chave de ignição, mas eu o detive. Ele se virou para fitar-me e comecei a desenrolar as bandagens de minhas mãos. Sobre o golfo, a trovoada murmurava e rugia. Não fui ao médico nem tornei a telefonar para Richard. Passei três semanas com as mãos envoltas em bandagens sempre que saía de casa. Três semanas esperando cegamente que aquilo desaparecesse. Não era um procedimento racional; sou capaz de admitir isto. Se eu fosse um homem inteiro, que não precisasse de uma cadeira de rodas em lugar das pernas, ou que levasse uma vida normal com uma ocupação normal, eu talvez fosse consultar o Dr. Flanders ou procurasse Richard. Poderia tê-lo feito, se não fosse pela lembrança de minha avó, isolada, virtualmente encarcerada, sendo devorada viva pela própria carne infectada. Portanto, mantive um silêncio desesperado e rezei para acordar algum dia de manhã e descobrir que tudo fora um pesadelo. E, pouco a pouco, eu os sentia. Eles. Uma inteligência anônima. Eu nunca realmente tentei imaginar como eles eram ou de onde tinham vindo. Era irrelevante. Eu era o umbral deles, sua janela para o mundo. Recebia deles suficiente feedback para sentir sua repulsa e horror, para saber que nosso mundo era muito diferente do seu. Feedback suficiente para sentir-lhes o ódio cego. Não obstante, eles observavam. Sua carne estava entranhada na minha. Comecei a perceber que me usavam, realmente me manipulavam. Quando o menino passou, erguendo a mão em seu costumeiro aceno neutro, eu tinha acabado de decidir entrar em contato com Cresswell através de seu telefone no Ministério da Marinha. Richard tinha razão a respeito de uma coisa: eu tinha certeza de que fora contaminado no espaço ou naquela estranha órbita de Vênus. A Marinha me estudaria, mas não me transformaria num monstro. Eu não mais precisaria acordar na escuridão cheia de rangidos e abafar um grito ao senti-los observar, observar, observar. Voltei as mãos para o menino e dei-me conta de que não as enrolara nas bandagens. Na luz fraca do crepúsculo, pude ver os olhos que observavam silenciosamente. Eram grandes, dilatados, com íris cor de ouro. Certa vez eu esbarrara um deles contra a ponta de um lápis e sentira a dor angustiante subir pelo braço. O olho deu a impressão de fitar-me com um ódio contido que era pior que a dor física. Não esbarrei novamente. E agora, eles observavam o menino. Sentia mente desviar-se. Um momento depois, meu controle desapareceu. A porta estava aberta. Cambaleei pela areia em direção ao menino, minhas pernas movimentando-se sem nervos, como uma tábua ao sabor das ondas. Meus olhos pareceram fechar-se a passei a ver apenas através daqueles olhos estranhos ― vi um monstruoso panorama marinho de alabastro, encimado por um céu semelhante a um imenso manto cor de púrpura; vi um barraco inclinado, em ruínas, que poderia ter sido a carcaça de alguma desconhecida criatura carnívora; vi uma criatura abominável que se movia, respirava e carregava sob o braço um objeto de madeira e arame, um objeto construído de ângulos retos geometricamente impossíveis. Imagino o que ele pensou, aquele pobre menino sem nome com a peneira sob o braço e os bolsos estofados com um conglomerado de moedas sujas de areia perdidas pelos turistas, o que ele pensou ao ver-me cambalear em sua direção com as mãos estendidas como um maestro cego regendo uma orquestra lunática, o que ele pensou quando o que restava de luz incidiu em minhas mãos, vermelhas, rachadas e brilhantes com sua carga de olhos, o que ele pensou quando as mãos fizeram aquele brusco movimento no ar, logo antes de sua cabeça explodir. Eu sei o que pensei. Pensei que espiava pela borda do universo e via as labaredas do próprio inferno. O vento fustigava as ataduras, transformando-as em bandeiras drape. jantes, enquanto eu as desenrolava As nuvens tinham escondido o que restava do crepúsculo e as dunas estavam escuras, cobertas de sombras. As nuvens pareciam correr e fervilhar acima de nós. ― Precisa prometer-me uma coisa, Richard ― declarei, acima do barulho do vento. ― Você deve correr caso pareça que eu possa tentar... machucá-lo. Está entendendo? ― Sim. Sua camisa aberta no pescoço chicoteava com o vento. O rosto estava sério, decidido, e seus olhos eram pouco mais que órbitas no escuro. A última atadura caiu. Olhei para Richard. E eles olharam para Richard. Vi um rosto que conheço há cinco anos e passei a amar. Eles viram um monolito vivo, distorcido. ― Você os vê ― disse eu, em voz rouca. ― Agora, você os vê. Ele recuou involuntariamente. Seu rosto foi invadido por súbito e incrédulo pavor. Um relâmpago iluminou o céu. Os trovões andavam entre as nuvens e o mar se tornara mais negro que o próprio Estige. ― Arthur... Como ele era hediondo! Como podia eu ter convivido com ele, falado com ele? Não era uma criatura, mas uma pestilência muda. Ele era... ― Fuja! Fuja, Richard! E ele fugiu. Correu em saltos enormes. Transformou-se num andaime de encontro ao céu ameaçador. Minhas mãos se ergueram, voando sobre minha cabeça num gesto gritante e estranho, os dedos estendidos na direção da única coisa que me era familiar naquele mundo de pesadelo ― as nuvens. E as nuvens responderam. Houve o risco enorme, branco-azulado, de um raio que pareceu ser o final do mundo. Atingiu Richard, envolvendo-o. A última coisa de que me lembro é o cheiro elétrico de ozônio e o odor de carne queimada. Quando acordei, estava placidamente sentado em minha varanda, olhando na direção da Grande Duna. A tempestade passara e o ar estava agradavelmente fresco. Havia uma fina fatia de lua. A areia era virginal nem o menor sinal de Richard ou do buggy. Olhei para minhas mãos. Os olhos estavam abertos, mas esgazeados. Eles estavam exaustos. Dormiam. Eu sabia muito bem o que precisava ser feito. Antes que a porta se abrisse ainda mais, tinha que ser trancada. Para sempre. Eu já podia notar os primeiros sinais de alteração estrutural nas mãos. Os dedos começavam a encurtar-se... e a mudar. Havia uma pequena lareira na sala e, na estação, eu costumava acender um fogo contra o frio úmido da Flórida. Acendi um agora, agindo depressa. Não fazia idéia de quando eles despertariam para o que eu estava fazendo. Quando o fogo pegou bem, saí até o tambor de querosene e embebi ambas as mãos. Eles acordaram imediatamente, gritando em agonia. Quase não consegui chegar de volta à sala ― e à lareira. Mas cheguei. Isso ocorreu há sete anos. Ainda estou aqui; ainda observo os foguetes subirem. Têm sido mais numerosos, ultimamente. Este é um governo com mentalidade espacial. Até mesmo já se fala em novas sondas tripuladas para Vênus. Descobri o nome do menino, embora não faça diferença. Ele pertencia realmente ao lugarejo. Mas a mãe esperava que ele passasse a noite em casa de um amigo, no continente, e só deu alarme na segunda-feira seguinte. Richard... bem, todo mundo achava Richard um sujeito esquisito. Desconfiam que ele tenha ido para Maryland ou se amasiado com alguma mulher. Quanto a mim, sou tolerado, embora goze também de grande reputação por excentricidade. Afinal, quantos ex-astronautas escrevem regularmente a seus representantes eleitos, em Washington, sugerindo que o dinheiro da exploração do espaço poderia ser melhor empregado em outras coisas? Dou-me bem com estes ganchos no lugar das mãos. Sofri dores horríveis durante um ano ou mais, mas o corpo humano é capaz de adaptar-se a quase tudo. Aprendi a barbear-me com eles e até mesmo a dar o laço nos sapatos. E, como podem ver, minha datilografia é correta e fácil. Não espero encontrar qualquer dificuldade para enfiar o cano da espingarda na boca e puxar o gatilho.

Pois tudo começou outra vez, há três semanas. Há um perfeito círculo de doze olhos dourados em meu peito.

domingo, 8 de novembro de 2015

A saideira - Stephen king's Night Shift - Sombras da noite


Passavam quinze minutos das dez horas e Herb Tooklander estava pensando em fechar a casa quando o homem de sobretudo elegante e rosto branco de olhos esbugalhados entrou de repente no Tookey's Bar, que fica na parte norte de Falmouth. Era dez de janeiro, exatamente a época em que o pessoal está aprendendo a viver confortavelmente com todas as promessas de Ano-Novo que quebraram e lá fora soprava uma violenta tempestade do nordeste. Havia caído quinze centímetros de neve antes do anoitecer e a nevasca continuava feia e forte desde então. Por duas vezes Tookey vira Billy Larribee passar na elevada cabine do trator de limpar neve da prefeitura e, na segunda vez, correra até lá para levar-lhe uma cerveja ― um ato de caridade, como diria minha mãe, e meu Deus sabe que ela gastou um bocado de dinheiro com cerveja de Tookey no seu tempo. Billy informou que estavam conseguindo manter o trânsito livre na estrada principal, mas as secundárias estavam bloqueadas e deveriam continuar assim até a manhã seguinte. A rádio de Portland previa mais trinta centímetros de neve e um vento de sessenta e cinco quilômetros por hora para empilhá-la. Apenas Tookey e eu estávamos no bar, escutando o vento uivar nos beirais e observando-o fazer o fogo dançar na lareira. ― Tome uma saideira, Booth ― diz Tookey. ― Vou fechar. Serviu uma para mim e outra para ele. Foi então que a porta se abriu e o tal desconhecido cambaleou para dentro do bar com neve até nos ombros e no cabelo, como se tivesse rolado em açúcar de confeiteiro. O vento soprava atrás dele uma cortina de neve fina como poeira. ― Feche a porta! ― berrou Tookey para ele. ― Será que nasceu num celeiro? Nunca vi um homem parecer tão apavorado. Era como um cavalo que tivesse passado a tarde inteira comendo urtigas. Seus olhos rolaram na direção de Tookey e ele disse: ― Minha mulher... minha filha... Então, caiu ao chão, completamente sem sentidos. ― Nossa Mãe! ― exclamou Tookey. ― Quer fechar a porta, Booth, por favor? Obedeci e foi uma dificuldade empurrar a porta contra o vento. Tookey estava apoiado num joelho, erguendo a cabeça do sujeito e dando-lhe palmadinhas nas bochechas. Aproximei-me e constatei de imediato que era um caso grave. A cara do sujeito estava muito vermelha, mas tinha manchas cinzentas aqui e acolá; quando a gente passou os invernos no Maine desde que Woodrow Wilson era Presidente, como é o meu caso, sabe que aquelas manchas cinzentas são queimaduras produzidas pelo enregelamento. ― Desmaiou ― disse Tookey. ― Apanhe conhaque atrás do bar, está bem? Fui buscar o conhaque e voltei. Tookey abrira o sobretudo do homem. Este recobrara ligeiramente os sentidos: tinha os olhos meio abertos e murmurava algo baixo demais para que conseguíssemos entender. ― Encha a tampa da garrafa ― disse Tookey. ― Só isso? ― perguntei. ― Esse troço é dinamite ― replicou Tookey. ― Não faz sentido sobrecarregarmos o carburador do cara. Enchi a tampa com conhaque e olhei para Tookey. Ele meneou a cabeça, confirmando: ― Direto na goela. Derramei a bebida na boca do sujeito. Foi algo digno de ser visto. Ele estremeceu da cabeça aos pés e começou a tossir. O rosto ficou ainda mais vermelho. As pálpebras, que estavam a meio-pau, abriram-se como persianas de janela. Fiquei um tanto alarmado, mas Tookey limitou-se a sentá-lo como um enorme bebê e dar-lhe palmadas nas costas. O homem começou a ter vômitos secos e Tookey deu-lhe uma palmada mais forte. ― Agüente firme ― disse ele ao desconhecido. ― O conhaque está caro. O sujeito tossiu um pouco mais, mas a tosse diminuiu aos poucos. Examinei-o bem pela primeira vez. Homem da cidade, no duro, e de algum lugar ao sul de Boston, pelo meu palpite. Usava luvas de pelica, caras mas finas. Era provável que existissem outras daquelas manchas cinzentas em suas mãos e ele teria sorte se não perdesse um ou dois dedos. Usava um sobretudo realmente elegante; um casaco de trezentos dólares, no mínimo. Suas botas eram pequenas e finas, mal-chegando aos tornozelos, e comecei a imaginar em que estado se achariam seus pés. ― Melhor ― disse ele. ― Muito bem ― replicou Tookey. ― Pode vir até o fogo? ― Minha mulher e minha filha ― disse o homem. ― Estão lá fora... na tempestade. ― Pela maneira como você entrou aqui, não pensei que estivessem em casa assistindo à televisão ― comentou Tookey. ― Pode nos contar tão bem perto do fogo quanto sentado aí no chão. Ajude aqui, Booth. O cara ficou em pé mas soltou um pequeno gemido e seus lábios se contorceram de dor. Tornei a pensar nos pés dele e tentei imaginar por que motivo Deus tinha que fazer idiotas da cidade de Nova York tentarem dirigir automóvel no sul do Maine durante o auge de uma tempestade do nordeste. E perguntei com meus botões se a mulher e a filha estariam melhor agasalhadas que ele. Levamos o homem para perto da lareira e o sentamos numa cadeira de balanço que fora o lugar favorito da Sra. Tookey até morrer, em '74. A Sra. Tookey era responsável pela maior parte da fama do bar, que fora objeto de reportagens na Down East e no Sunday Telegram, tendo sido citado até mesmo no suplemento dominical do Globe de Boston. Na verdade, era mais uma taverna que um bar, com seu amplo assoalho de tábuas corridas, presas com cavilhas em vez de pregos, o bar feito com madeira de bordo, o velho teto de vigas aparentes como as de um celeiro e a enorme lareira de pedra. Depois da publicação do artigo na Down East, a Sra. Tookey começou a meter certas idéias na cabeça, querendo mudar o nome do local para Estalagem do Tookey ou Pousada do Tookey, e confesso que seria um toque mais colonial, mas prefiro simplesmente o velho nome de Bar do Tookey ― Tookey's Bar. Uma coisa é ser pedante no verão, quando o estado fica cheio de turistas; mas é completamente diferente no inverno, quando a gente tem que negociar com os vizinhos. E houvera muitas noites de inverno, como esta, que Tookey e eu tínhamos passados juntos, sozinhos, bebendo uísque escocês e água ou apenas algumas cervejas. A minha Victoria faleceu em 73 e o bar do Tookey era um bom lugar para se ir, onde existiam vozes suficientes para abafar o tique-taque do relógio da morte que se aproximava da hora marcada mesmo que fôssemos apenas Tookey e eu, já bastava. E eu não me sentiria da mesma maneira se o local se chamasse Pousada do Tookey. Pode parecer loucura, mas é verdade. Colocamos o tal sujeito diante da lareira e ele começou a tremer ainda mais que antes. Abraçou os joelhos e seus dentes chocalhavam. Algumas gotas de muco transparente lhe pingavam do nariz. Creio que ele estava começando a compreender que mais quinze minutos lá fora seriam o bastante para matá-lo. Não é a neve, é o fator de frio resultante do vento. Rouba todo o calor da gente. ― Onde saiu da estrada? ― perguntou Tookey. ― D-d-dez qu-qu-quilômetros ao s-s-sul d-d-daqui ― respondeu o desconhecido. Tookey e eu nos entreolhamos e, de repente, fiquei frio. Dos pés à cabeça. ― Tem certeza ― quis saber Tookey. ― Andou dez quilômetros pela neve? O cara assentiu com a cabeça. ― Verifiquei o odômetro quando atravessamos a cidade. Eu estava seguindo instruções... indo visitar minha cunhada... em Cumberland... nunca estive por aqui antes... somos de Nova Jersey... Nova Jersey. Se existe alguém mais puramente idiota que um novaiorquino, é um sujeito de Nova Jersey. ― Dez quilômetros ― insistiu Tookey. ― Tem certeza? ― Sim, bastante certeza. Encontrei a rampa de saída, mas estava bloqueada pela neve... estava... Tookey o agarrou pelas lapelas. Ao brilho trêmulo do fogo, seu rosto parecia pálido e tenso, dez anos mais velhos que os seus sessenta anos. ― Dobrou à direita? ― Sim, dobrei à direita. Minha mulher... ― Viu uma placa? ― Placa? ― repetiu o cara, olhando inexpressivamente para Tookey e limpando a ponta do nariz. ― Claro que vi. Estava nas minhas instruções: tome a Avenida Jointner através de Jerusalem's Lot até a rampa de acesso 295. Olhou de mim para Tookey e vice-versa. Lá fora, o vento assoviava e uivava e gemia nos beirais. ― Não era isso, moço? ― Lot ― disse Tookey tão baixo que mal o escutei. ― Oh, meu Deus... ― O que está errado? ― quis saber o forasteiro, erguendo a voz. Não acertei? Quero dizer, a estrada estava coberta de neve, mas pensei .. se existe uma cidade por aqui, os tratores estarão trabalhando e... então, eu... Simplesmente deixou a frase morrer. ― Booth ― disse-me Tookey em voz baixa. Vá telefonar. Chame o xerife. ― Claro, isso mesmo ― disse aquele idiota de Nova Jersey. ― O que há de errado com vocês, afinal? Parece que viram um fantasma. Tookey replicou: ― Não existem fastasmas em Lot, moço. Disse a elas para permanecerem no carro? ― Claro ― respondeu o sujeito, mostrando-se ofendido. ― Não sou maluco. Bem, ninguém poderia provar, pelo menos para mim. ― Como se chama? ― indaguei. ― Tenho que dizer ao xerife. ― Lumley. Gerard Lumley. Ele continuou a conversar com Lumley e eu atravessei o salão até o telefone. Levei o fone ao ouvido e não escutei nada. Um silêncio mortal. Bati no gancho duas vezes. Ainda assim, nada. Voltei para perto da lareira. Tookey servira outra dose de conhaque para Gerard Lumley e esta desceu pela garganta dele muito melhor. ― Ele não estava? ― indagou Tookey. ― O telefone está mudo. ― Diabo! ― exclamou Tookey. Trocamos um olhar. Lá fora, o vento soprava neve contra as vidraças. Lumley olhou de Tookey para mim e vice-versa. ― Bem, nenhum de vocês dois tem carro? ― perguntou ele, com a voz novamente cheia de ansiedade. ― Elas precisam deixar o motor ligado para que a calefação funcione. Eu tinha apenas um quarto de tanque de gasolina e levei duas horas e meia para... Ouçam: querem fazer o favor de responder? Levantou-se e agarrou o peito da camisa de Tookey. ― Moço ― disse Tookey ―, creio que suas mãos perderam o juízo. Lumley olhou para a mão, encarou Tookey e largou a camisa. ― Maine ― sibilou ele entredentes, fazendo a palavra soar como um insulto à mãe de alguém. ― Muito bem ― acrescentou ―, onde fica o posto de gasolina mais próximo? Devem ter um reboque... ― O posto de gasolina mais próximo fica em Falmouth Center, a cinco quilômetros daqui, seguindo pela estrada. ― Obrigado ― disse o forasteiro, levemente sarcástico, encaminhando-se para a porta e abotoando o sobretudo. ― Mas não estará aberto ― aduzi. Ele se voltou vagarosamente e nos encarou. ― De que está falando, velho? ― Está querendo lhe dizer que o posto de gasolina em Falmouth Center pertence a Billy Larribee e Billy saiu para dirigir o trator de limpar a neve, seu maldito idiota ― explicou Tookey, paciente. ― Agora, por que não volta para cá antes de estourar uma veia do pescoço? Ele voltou, parecendo aturdido e amedrontado. ― Está me dizendo que não podem... que não existe...? ― Não estou lhe dizendo nada ― replicou Tookey. ― Você é quem está falando o tempo todo. Se parar de falar por um minuto, poderemos pensar no problema. ― O que há nessa cidade, Jerusalem's Lot? ― quis saber Lumley. Por que a estrada estava interrompida? Por que não havia luzes? Eu disse: ― Jerusalem's Lot foi incendiada há dois anos. ― E nunca a reconstruíram? ― perguntou ele. ― Por que a estrada estava interrompida? Por que não havia luzes? ― Parece que não ― disse eu, olhando em seguida para Tookey. Que vamos fazer a respeito disso? ― Não podemos deixar as mulheres lá ― declarou ele. Aproximei-me de Tookey. Lumley se afastara para olhar pela janela a noite tempestuosa. ― E se as apanharam? ― perguntei. ― Pode ser ― disse Tookey. ― Mas não temos certeza. Minha Bíblia está na prateleira. Você tem aí sua medalha do Papa? Tirei o crucifixo da camisa e mostrei a ele. Nasci e fui criado protestante, mas a maioria dos moradores das redondezas de Jerusalem's Lot usa algum objeto católico ― um crucifixo, uma medalha de São Cristóvão, um rosário ou algo semelhante. Porque há dois anos, durante um sombrio mês de outubro, Jerusalem's Lot enveredou pelo mau caminho. As vezes, tarde da noite, quando havia apenas alguns fregueses assíduos reunidos em torno da lareira de Tookey, a conversa girava sobre o assunto. E a maior parte do que se diz a respeito é verdade. As pessoas de Jerusalem's Lot começaram a desaparecer. Primeiro, apenas algumas; depois, outras mais; depois, um grupo inteiro. As escolas fecharam. A cidade ficou deserta durante quase um ano. Oh, algumas poucas pessoas se mudaram para lá, a maior parte delas idiotas de outros estados, como aquele belo espécime que agora tínhamos nas mãos ― atraídas pelo baixo preço das propriedades, suponho. Mas não duraram muito. Muitas delas se mudaram um ou dois meses depois de terem chegado. As outras... bem, elas desapareceram. Então, a cidade se incendiou, queimando-se até os alicerces. Foi no final de um longo outono de seca. Dizem que o fogo começou perto da Marsten House, na colina que dominava a Avenida Jointner, mas ninguém sabe o que provocou o incêndio. Até hoje ninguém sabe. Depois disso, as coisas melhoraram por algum tempo. Depois, recomeçaram. Apenas uma vez escutei mencionarem a palavra "vampiros". Um maluco motorista de caminhão de transporte de madeira, chamado Richie Messina, de Freeport, estava no Tookey naquela noite, já tendo tomado umas e outras. ― Jesus Cristo! ― gritou o brutamontes, que tinha pelo menos dois metros e setenta de altura em suas calças de lã, camisa quadriculada e botas de couro. ― Por que vocês têm tanto medo de falar. Vampiros! É isso que todos estão pensando, não é mesmo? Jesus Cristo num carrinho puxado a cavalo! Sabem o que existe lá em Salem's Lot? Querem que eu lhes diga? Querem? ― Diga logo, Richie ― disse Tookey. Fez-se um profundo silêncio no bar. Podia-se ouvir o fogo crepitar na lareira e, lá fora, a leve chuva de novembro batendo nas vidraças. ― A palavra é sua ― acrescentou Tookey. ― O que existe lá é o básico bando de cães selvagens ― declarou Richie Messina. É isso aí. Isso e um bando de velhas que gostam de uma boa estória de fantasmas. Ora, por oitenta dólares eu sou capaz de ir lá e passara noite naquela casa mal-assombrada, ou no que resta dela e que tanto preocupa vocês. Bem que tal? Alguém quer apostar? Mas ninguém queria. Richie era um fanfarrão e ficava violento quando bebia demais. Ninguém derramaria lágrimas em seu velório, mas nenhum de nós desejava que ele fosse a Salem's Lot depois do escurecer. ― Vocês todos que se fodam! ― vociferou Richie. ― Tenho uma espingarda quatorze no meu Chevrolet e ela é capaz de deter qualquer coisa em Falmouth, Cumberland ou Jerusalem's Lot! E é para lá que eu vou agora. Saiu do bar como um furacão, antes que alguém pudesse dizer uma palavra. Ninguém falou durante algum tempo. Então, Lamont Henry disse em voz muito baixa: ― Santo Deus! Esta é a última vez que alguém terá visto Richie Messina. E Lamont, metodista convicto desde o colo da mãe, fez o Sinal da Cruz. ― Ele curará o pileque e mudará de idéia ― disse Tookey, embora parecesse inquieto. ― Voltará na hora de fecharmos, dizendo que tudo não passou de brincadeira. Mas Lamont estava certo, daquela vez, pois ninguém tornou a ver Richie. Sua mulher disse à polícia que ele fora para a Flórida, a fim de fugir dos credores, mas podíamos ler a verdade em seus olhos ― apavorados e doentes de medo. Pouco depois disso, mudouse para Long Island. Talvez temesse que Richie voltasse para buscá-la numa noite escura. E não sou eu quem dirá que isso era impossível. Agora, Tookey olhava para mim e eu olhava para ele enquanto tornava a guardar o crucifixo na camisa. Nunca me senti tão velho ou tão assustado em minha vida. Tookey tornou a dizer: ― Não podemos deixar as mulheres lá, Booth. ― Sim, eu sei. Encaramo-nos por mais alguns instantes. Depois, ele estendeu a mão e me apertou o ombro. ― Você é um bom sujeito, Booth. Aquilo foi o bastante para animar-me um pouco. Parece que quando a gente ultrapassa os setenta as pessoas esquecem de que somos um homem, ou de que algum dia o fomos. Tookey foi até Lumley e disse: ― Tenho um Scout com tração nas quatro rodas. Vou buscá-lo. ― Pelo amor de Deus, homem, por que não me disse antes? Lumley voltou-se bruscamente da janela e olhou raivosamente para Tookey. ― Por que teve que passar quinze minutos fazendo rodeios? Tookey respondeu muito mansamente: ― Moço, cale a boca. E se tiver vontade de abri-la, lembre-se de quem entrou naquela estrada interrompida durante uma tempestade de neve. O forasteiro começou a dizer alguma coisa, mas tornou a fechar a boca. Seu rosto ficara muito vermelho. Tookey saiu para tirar o Scout da garagem. Tateei embaixo do balcão à procura de seu frasco cromado e o enchi de conhaque. Talvez precisássemos daquilo antes que a noite terminasse. Nevasca do Maine... já estiveram numa? A neve vem voando, tão densa e fina que parece areia e tem o mesmo som ao bater na lataria dos veículos. Não usamos faróis altos porque refletem o brilho da neve e fica impossível enxergar a mais que três metros de distância. Com os faróis baixos, pode-se enxergar talvez quatro metros e meio. Mas sou capaz de viver com a neve. O que não me agrada é o vento, que sopra a neve em mil e uma estranhas formas voadoras e tem o som de todo o ódio, sofrimento e medo neste mundo. Existe morte na garganta de uma tempestade de neve, morte branca ― e, talvez, algo além da morte. Não é um som agradável de ouvir quando se está bem acomodado na cama, sob as cobertas, com os trincos passados nos postigos e as portas trancadas. Mas é muito pior quando se está dirigindo um veículo. E nós estávamos indo diretamente para Salem's Lot. ― Será que não podemos ir um pouco mais depressa? ― quis saber Lumley. Repliquei: ― Para quem chegou meio-enregelado, você está com uma pressa danada de sair outra vez. Ele me lançou um olhar ressentido e confuso, calando a boca. Seguíamos pela estrada a uma velocidade constante de quarenta quilômetros por hora. Era difícil acreditar que Billy Larribee acabara de passar o trator naquele trecho, havia mais ou menos uma hora; mais cinco centímetros de neve tinham-se acumulado na estrada e o vento começava a soprá-los para formar montículos. As rajadas nais fortes de vento sacudiam o Scout. Os faróis iluminavam um impenetrável turbilhão branco à nossa frente. Não encontramos um único carro. Cerca de dez minutos mais tarde, Lumley soltou uma exclamação de espanto: ― Ei! O que é aquilo? Apontava para meu lado do carro. Eu estivera olhando para a frente. Virei a cabeça, mas tarde demais. Tive a impressão de ainda ver de relance um vulto baixo se afastando do carro e sumindo na neve, mas poderia ser apenas imaginação. ― O que foi? Um veado? ― perguntei. ― Creio que sim ― disse Lumley com voz trêmula. ― Mas os olhos... pareciam vermelhos. Virou-se para mim: ― Como são os olhos de um veado à noite? O tom de sua voz era quase suplicante. ― Podem parecer qualquer coisa ― respondi, refletindo que talvez fosse verdade, mas eu vira muitos veados à noite, de dentro de muitos carros, e nunca deparei com um par de olhos que tivessem reflexos vermelhos. Tookey permaneceu calado. Cerca de quinze minutos depois chegamos a um local onde o monte de neve no lado direito da estrada não era tão alto, porque os tratores de limpar neve costumam erguer um pouco as lâminas quando passam por um cruzamento. ― Parece que foi aqui que fizemos a curva ― disse Lumley, parecendo não ter muita certeza. ― Não estou vendo a placa... ― É aqui mesmo ― afirmou Tookey,. com uma voz muito diferente do normal. ― Dá para ver apenas o topo do poste. ― Oh, claro ― disse Lumley, parecendo aliviado. ― Escuta, Sr. Tooklander, lamento ter sido tão brusco lá atrás. Estava com frio, preocupado e acusando-me de ser duzentos tipos de idiota. E desejo agradecer a ambos... ― Não nos agradeça até termos as mulheres dentro do carro atalhou Tookey. Engrenou a tração nas quatro rodas e abriu caminho à força pelo monte de neve acumulada, chegando à Avenida Jointner, que atravessa Jerusalem's Lot e segue até a Rodovia 295. A neve jorrava contra os guarda-lamas. A traseira mostrou tendência para derrapar um pouco, mas Tookey estava habituado a dirigir na neve desde o tempo do onça. Controlou a derrapagem, falando com o carro, e prosseguimos. Os faróis iluminavam as marcas deixadas a intervalos por outro veículo, que logo desapareciam. O cano de Lumley. Este se debruçava para diante, procurando avistá-lo. De repente, Tookey disse: ― Sr. Lumley. ― O que é? ― indagou ele, olhando para Tookey. ― O pessoal destas bandas é um tanto supersticioso a respeito de Jerusalem's Lot ― disse Tookey, soando bastante calmo ― embora eu pudesse ver-lhe os vincos de tensão ao redor da boca e o modo pelo qual seus olhos se dirigiam incessantemente de um lado para outro. ― Se sua família estiver dentro do carro, ora, será ótimo. Nós as transferiremos para este carro e voltaremos à minha casa; amanhã de manhã, quando a tempestade cessar, Billy terá o máximo prazer em rebocar seu automóvel para fora do monte de neve. Contudo, se não estiverem no carro... ― Não estiverem no carro? ― interrompeu asperamente Lumley. Por que não estariam? ― Se não estiverem no carro ― prosseguiu Tookey, sem responder as perguntas ―, vamos dar a volta e retornar a Falmouth Center para chamar o xerife. De qualquer maneira, não faz sentido perambularmos por aí à noite, em meio à tempestade, não é mesmo? ― Elas estarão no carro. Em que outro lugar poderiam estar? Eu acrescentei: ― Mais uma coisa, Sr. Lumley: se avistarmos alguém, não falaremos com eles. Nem mesmo se falarem conosco. Está entendendo? Com voz muito sumida, Lumley indagou: ― Quais são as tais superstições? Antes que eu pudesse responder ― só Deus sabe o que eu teria dito ―, Tookey atalhou: ― Chegamos. Aproximavamo-nos da traseira de uma grande Mercedes. O capô inteiro estava mergulhado num monte de neve e outro monte amassara todo o lado esquerdo do carro. Mas as lanternas traseiras estavam acesas e podíamos ver a fumaça saindo do cano de descarga. ― A gasolina não acabou, pelo menos ― comentou Lumley. Tookey parou o Scout e puxou o freio de mão. ― Lembra-se do que Booth lhe disse, Lumley. ― Claro, claro. Mas ele só conseguia pensar na mulher e na filha. E não vejo por que censurá-lo. ― Pronto, Booth? ― perguntou-me Tookey. Seus olhos, sombrios e cinzentos à luz do painel, cruzaram com os meus. ― Creio que sim ― respondi. Saímos e o vento nos atacou, jogando-nos neve no rosto. Lumley foi à frente, curvado contra o vento, o elegante sobretudo enfunado às suas costas como uma vela. Lançava duas sombras: um dos faróis de Tookey e outra das lanternas traseiras de seu próprio carro. Fui atrás dele e Tookey um passo atrás de mim. Quando cheguei ao porta-malas da Mercedes, Tookey me deteve. ― Deixe-o ir sozinho ― disse ele. ― Janey! Francie! ― gritou Lumley. ― Tudo bem? Abriu a porta do lado do motorista e debruçou-se para o interior do carro. ― Tudo... Ficou petrificado. O vento lhe arrancou a pesada porta das mãos e escancaroua. ― Meu Deus, Booth ― disse Tookey, contra o barulho do vento. Acho que aconteceu outra vez. Lumley virou-se para nós. Tinha o rosto apavorado e perplexo, os olhos esbugalhados. De repente, atirou-se contra nós através da neve, tropeçando e quase caindo. Empurrou-me para o lado como se eu não existisse e agarrou Tookey. ― Como você sabia? ― rugiu ele. ― Onde estão elas? Que diabo se passa aqui? Tookey livrou-se dele, afastando-o para um lado, e avançou até o automóvel. Ele e eu olhamos juntos para o interior da Mercedes. Quente como uma torrada saída da chapa, mas não continuaria assim por muito tempo. A pequena luz amarela que indicava o final da gasolina estava acesa. O grande automóvel estava vazio. No tapete do chão junto ao banco da direita estava uma boneca de criança. E um casaco de esqui de criança dobrado sobre o encosto do banco. Tookey levou as mãos ao rosto... e desapareceu de repente. Lumley o agarrara, empurrando-o de encontro ao monte de neve. O forasteiro estava pálido e desvairado. A boca se mexia como se mastigasse algo amargo que ainda estava preso aos dentes e ele não conseguia cuspir. Enfiou o braço no carro e pegou o casaco de esqui de criança. ― O casaco de Francie? ― disse quase num sussurro. Então, soltou um berro: ― O casaco de Francie! Olhou para mim, atônito e incrédulo, dizendo: ― Ela não pode sair do carro sem o casaco, Sr. Booth. Ora... ora ... morrerá congelada. ― Sr.― Lumley... Ele passou por mim, ainda segurando o casaco, e gritou: ― Francie! Janey! Onde estão vocês? Onde estão? Estendi a mão para Tookey e ajudei-o a levantar-se. ― Você está...? ― Não importa ― atalhou ele. ― Precisamos pegá-lo, Booth. Fomos atrás de Lumley o mais depressa possível, o que não era muito rápido com a neve nos chegando à altura dos quadris em alguns lugares. Mas ele parou e nós o alcançamos. ― Sr. Lumley... ― disse Tookey, pousando-lhe uma mão no ombro. ― Por aqui ― interrompeu Lumley. ― Foi por aqui que elas vieram. Vejam! Olhamos para baixo. Estávamos numa espécie de depressão do terreno e o vento passava acima de nossas cabeças. E podíamos ver dois conjuntos de pegadas, um adulto e outro de criança, que começavam a ser cobertos pela neve. Se chegássemos cinco minutos mais tarde, teriam desaparecido. Lumley começou a andar na direção das pegadas e Tookey o deteve. ― Não! Não, Lumley! Ele voltou o rosto desvairado para Tookey e cerrou o punho. Ergueu o braço... mas algo na expressão de Tookey fê-lo hesitar. Olhou de Tookey para mim e vice-versa. ― Ela morrerá congelada ― repetiu, como se fossemos duas crianças. ― Será que não entendem? Ela deixou o casaco no carro e tem apenas sete anos de idade... ― Elas podem estar em qualquer lugar ― disse Tookey. ― É impossível seguir essas pegadas. Já terão desaparecido na próxima elevação do terreno. ― O que sugere? ― quis saber Lumley, em voz aguda e histérica. Se voltarmos para chamar a polícia, ela morrerá de frio! Francie e a minha mulher! ― Talvez já estejam mortas ― disse Tookey, encarando Lumley. Congeladas ou algo pior. ― Que quer dizer com isso? ― perguntou Lumley. ― Fale logo, diabo! Conte-me! ― Sr. Lumley ― começou Tookey ―, existe alguma coisa em Jerusalem's Lot... Mas, afinal, fui eu quem terminei a frase, dizendo a palavra que esperava jamais pronunciar: ― Vampiros, Sr. Lumley. Jerusalem's Lot está cheia de vampiros. Presumo que seja difícil para o senhor engolir... Ele me fitava como se eu tivesse ficado verde. ― Malucos ― murmurou. ― Vocês são dois malucos. Então, deu-nos as costas, colocou as mãos em concha na boca e gritou: ― FRANCIE! JANEY! Começou a avançar outra vez. A neve lhe chegava à bainha do elegante sobretudo. Olhei para Tookey: ― Que fazemos agora? ― Vamos atrás dele ― respondeu Tookey, os cabelos emplastrados de neve e parecendo realmente um tanto maluco. ― Não posso abandoná-lo aqui, Booth. Você pode? ― Não ― repliquei. ― Creio que não. Começamos a caminhar pela neve da melhor maneira possível, no encalço de Lumley. Ele deixava um rastro largo, avançando pela neve como um touro enfurecido. Tinha sua juventude para gastar e se distanciava cada vez mais de nós. Minha artrite começou a incomodar-me horrivelmente e comecei a olhar para as pernas, dizendo comigo mesmo: Um pouco mais, só um pouco mais, continue avançando, diabo, continue avançando... Esbarrei em Tookey, que estava postado de pemas abertas num monte de neve. Tinha a cabeça baixa e ambas as mãos apertadas contra o peito. ― Tookey ― perguntei ―, você está bem? ― Muito bem ― disse ele, baixando as mãos. ― Vamos atrás dele, Booth. Quando cansar, ele verá a luz da razão. Chegamos ao topo de uma elevação e lá estava Lumley, no fundo da depressão seguinte, procurando desesperadamente mais pegadas. Pobre homem, não tinha a menor possibilidade de encontrá-las. O vento soprava exatamente onde se encontrava e qualquer pegada desapareceria três minutos depois de ser deixada na neve. Muito mais em duas horas... Lumley levantou a cabeça e gritou para a noite: ― FRANCIE! JANEY! PELO AMOR DE DEUS! Pude sentir o terror e o desespero em sua voz e tive pena dele. A única resposta que obteve foi o rugido do vento, parecendo a passagem de um trem de carga. Quase parecia zombar de Lumley, dizendo: Eu as levei, Sr. Nova Jersey, com seu carro bonito e seu sobretudo elegante. Eu as levei e apaguei as pegadas; amanhã de manhã, elas estarão tão lindas e congeladas quanto dois morangos num freezer.. ― Lumley! ― berrou Tookey acima do vento. ― Ouça: esqueça-se de vampiros, fantasmas e tudo o mais, mas lembre-se de uma coisa! Você está piorando as coisas para elas! Precisamos buscar... Então, houve uma resposta, uma voz vinda do escuro como o repicar de um sino de prata. Meu coração ficou gelado como gelo numa cisterna. ― Jerry... É você, Jerry? Lumley girou nos calcanhares ao escutar a voz. Então ela veio, flutuando das sombras de um pequeno bosque como um fantasma. Era mesmo uma mulher da metrópole e, naquele momento, parecia ser a mulher mais linda que eu já vira. Senti vontade de me aproximar para dizer-lhe o quanto me alegrava saber que, afinal, ela estava bem. Usava uma pesada roupa de lã verde, um poncho, creio que assim chamam. Flutuava ao redor dela. Os cabelos escuros esvoaçavam ao vento selvagem como a água de um riacho em dezembro, antes de ser congelado pelo inverno. Talvez eu tenha avançado um passo em direção a ela, pois senti a mão de Tookey em meu ombro, calejada e quente. E, não obstante ― como devo dizer? ― eu ansiava por ela, tão morena e linda, com aquele poncho verde flutuando ao redor do pescoço e dos ombros, tão exótica e estranha a ponto de me fazer pensar em alguma bela mulher de um dos poemas de Walter de la Mare. ― Janey! ― gritou Lumley. ― Janey! E começou a avançar pela neve em direção a ela, com os braços estendidos. ― Não! ― berrou Tookey. ― Não, Lumley! Ele nem olhou... mas ela, sim. Olhou para nós e sorriu. E quando ela sorriu, senti meus anseios, meu desejo, transformarem-se num pavor tão frio quanto a sepultura, tão branco e silencioso quanto ossos envoltos numa mortalha. Mesmo da elevação do terreno, conseguíamos distinguir o sinistro brilho vermelho naqueles olhos. Eram menos humanos que os olhos de um lobo. E quando ela sorriu, percebemos como seus dentes se tinham tornado compridos. Ela deixara de ser humana. Era uma criatura morta que, de algum modo, voltara à vida naquela negra tempestade uivante. Tookey fez o Sinal da Cruz para ela, que se encolheu momentaneamente... e depois tornou a sorrir para nós. Estávamos longe demais e, talvez, apavorados demais. ― Pare! ― sussurrei. ― Não podemos impedir? ― Tarde demais, Booth! ― replicou Tookey, sombrio. Lumley chegara até ela. Ele próprio parecia um fantasma, coberto de neve como estava. Estendeu as mãos para ela... e então começou a gritar. Eu escutarei aquele som em meus pesadelos: um homem adulto gritando como uma criança assustada por um sonho mau. Tentou afastar-se dela, recuar, mas os braços dela, compridos, nus, brancos como a neve, moveram-se como serpentes e o enlaçaram. Pude vê-la tombar a cabeça de lado e, em seguida, levá-la à frente... ― Booth! ― exclamou Tookey com voz rouca. ― Temos que sair daqui! Portanto, fugimos. Suponho que haja quem diga que fugimos como ratos assustados, mas é porque não estiveram lá naquela noite. Voltamos sobre nossos próprios rastros, caindo, levantando, escorregando, deslizando. Eu olhava repetidamente por cima do ombro, a fim de verificar se a mulher vinha atrás de nós, com aquele sorriso medonho e observando-nos com aqueles olhos vermelhos. Voltamos ao Scout e Tookey se dobrou em dois, segurando o peito. ― Tookey! ― exclamei, deveras amedrontado. ― O que... ― Coração ― disse ele. ― Está ruim há mais de cinco anos. Coloque-me no outro assento, Booth. Vamos cair fora daqui! Enfiei um braço por baixo de seu casaco e, não sei como, consegui colocá-lo no carro e sentá-lo no banco do passageiro. Ele recostou a cabeça no encosto do banco e fechou os olhos. Tinha a pele amarela, com aparência de cera. Dei a volta pela frente do capô, correndo, e quase esbarrei na garotinha. Ela estava parada junto à porta do motorista, com os cabelos presos à moda Maria Chiquinha, usando apenas um leve vestido amarelo. ― Moço ― disse ela, numa voz alta e nítida, tão doce quanto a névoa matinal. ― Quer me ajudar a encontrar minha mãe? Ela foi embora e estou com tanto frio... ― Queridinha ― respondi ―, queridinha, acho melhor subir no carro. Sua mãe... Interrompi-me e, se alguma vez estive prestes a desmaiar, foi naquele momento. A garotinha estava parada ali, mas seus pés estavam em cima da neve e não havia pegadas em qualquer direção. Então, ela olhou para mim ― Francie, a filha de Lumley. Tinha apenas sete anos de idade e continuaria a tê-los por uma infinidade de noites. Seu rostinho tinha uma horrível brancura cadavérica, os olhos um vermelho prateado que dava vontade da gente se atirar neles. E logo abaixo do maxilar eu pude ver dois furinhos como picadas de alfinete, as bordas horrivelmente laceradas. Ela estendeu os braços para mim e sorriu. ― Pegue-me no colo, moço ― pediu suavemente. Quero dar-lhe um beijo. Então, o senhor pode me levar à minha mamãe. Eu não queria, mas nada pude fazer. Estava curvado para a frente, os braços estendidos. Pude ver sua boca se abrindo e as pequenas presas salientes por detrás de seus lábios rosados. Algo lhe escorreu pelo queixo, prateado e brilhante. Com um pavor surdo, distante, dei-me conta de que ela estava babando. Suas mãos pequenas me seguraram pelo pescoço e eu pensei: Bem, talvez não seja tão ruim, depois de algum tempo... Então, algo negro voou de dentro do Scout e atingiu-a no peito. Ocorreu uma explosão de fumaça com cheiro esquisito, um relâmpago que sumiu instantaneamente. Ela recuou, sibilando. O rosto retorcia-se numa máscara vulpina de raiva, ódio e dor. Ela se virou de lado... e desapareceu. Num momento ela estava ali, no momento seguinte, havia apenas um redemoinho de neve que se parecia um pouco com um vulto humano. Então, o vento soprou-o para longe. ― Booth! ― sussurrou Tookey. ― Depressa, agora! E eu me apressei. Mas não tanto que não tivesse tempo para apanhar o que ele jogara na garotinha vinda do inferno. Era a Bíblia de sua mãe. Isso ocorreu há algum tempo. Agora, estou mais velho ― e já não era um frangote naquela ocasião. Herb Tooklander faleceu há dois anos. Morreu tranqüilamente, durante a noite. O bar ainda existe, um casal de Waterville o comprou, gente boa, mantendo-o quase o mesmo. Mas não vou muito lá. De algum modo, parece-me diferente sem a presença de Tookey. As coisas em Jerusalem's Lot continuam praticamente como sempre foram. No dia seguinte, o xerife encontrou o carro daquele sujeito, o tal Lumley, sem gasolina e com a bateria arriada. Nem Tookey nem eu dissemos uma palavra a respeito. De que adiantaria? E, de vez em quando, algum viajante de carona ou alguém que veio acampar na região desaparece lá por perto, em Schoolyard Hill ou nas proximidades do cemitério. Encontram a mochila ou o livro de bolso do sujeito, ensopados pela neve ou pela chuva, ou por algo semelhante. Mas nunca encontram a pessoa. Ainda tenho pesadelos com aquela noite tempestuosa em que fomos até lá. Não tanto com a mulher quanto com a garotinha e o modo como esta sorriu e estendeu os braços para que pudesse pegá-la no colo, para que ela pudesse dar-me um beijo. Mas estou velho e em breve chegará o tempo em que os pesadelos terminam. Talvez vocês tenham ocasião de viajar pelo sul do Maine qualquer dia desses. Um panorama bonito. Talvez até mesmo parem no bar do Tookey para um drinque. É um bom lugar. Os novos donos o mantiveram o mesmo. Portanto, tomem seu drinque e meu conselho é que continuem logo rumo ao norte. Seja lá por que motivo for, não tomem a estrada que vai para Jerusalem's Lot. Em especial, não depois do anoitecer. Por lá ainda existe uma garotinha. E creio que ela ainda está à espera do beijo de boanoite.
 

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