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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Chamarei de "morte qualquer".

[ DEIXE AQUI SEU TÍTULO]


Mas faça isso logo após ler, mentalmente, deixe sua imaginação te guiar nessa história. Guarde sua experiência para si.


Então....



Lá vai.





- Mortos não abrem a boca até alguém os chamarem para uma conversa, meu filho.
O pior de tudo é que o filho da mãe tinha razão.

Havia perigo eminente na rotatória do aeroporto, sirenes ressoavam no vazio da noite. Aquele som contínuo em parceria com aquelas luzes, somente iria crescendo, sucessivamente, o quanto eu ia me aproximando.
Como todos os demais carros, meu pé estava lentamente pisando o freio. O painel indicava 20km/h, pouco para se incomodar e muito para conseguir observar dezenas de cabeças ao redor de um corpo no chão. Eu ainda escutei parte do nome: "Denner", era o mesmo que o meu primeiro. Seu corpo estava debruçado de forma torta, inclinada, e seu rosto havia deformações e eu tenho absoluta certeza de que eram de herança do recém-acidente. Consegui ver suas pernas tortas, e seus joelhos arqueados para dentro, seus pés se tocavam. Seus braços sumiram, e longe dele um pouco sobre a calçada, havia uma moto(ou pelo menos o que restou dela) e no guidão, havia dois pedaços de carne mortas, como se... segurando até o último minuto.

Pessoas são curiosas e isso é verdade. Mas aquelas apenas iam e chegavam, ninguém aguentara ficar por ali (mas ainda sim uns iam e vinham, mesmo com alguns vomitando para o local dizer que não valeria a pena ver, mas pessoas são realmente curiosas e isso é de fato verdade), pois o cheiro estava forte e deplorável, em questões olfativas, o cadáver estava insuportável.

Alguns lobos que vinham da floresta ao lado da pista estavam à deriva, apenas observando, esperando, aguardando uma bobeira de alguém. Afinal carne ainda era carne, e melhor ainda quando ainda estava fresca.

Os mosquitos rodeavam. E eu acelerava, o trânsito estava ficando vago.
Pelo retrovisor eu vi um lobo esperto desviando, correndo, por entre as pessoas e roubando um dos braços e indo de volta ao renque, onde todo o bando o seguia e se perdia no meio do nevoeiro.
Eles uivavam.

De alguma forma.... Esta noite há uma família satisfeita. Seus estômagos não roncavam mais.

No outro dia eu sou "acordado", se bem que não dormir e fiquei pensando na cena, por um carteiro que montava uma bicicleta e arremessava jornais na vizinhança, ele acertou o vidro do meu quarto.

Se eu bem me lembro, eu era um cara importante para a rua, todos me cumprimentavam e sorriam para mim. Mas eu vesti shorts, e camisa e parti para uma boa caminhada para pôr a mente no eixo certo, todos pareciam zangados e nem me olhavam nos olhos, não falavam nada, apenas passavam como se eu não estivesse lá.

Eu não quis dar interesse nisso.
Então eu corri.
Cruzando a ponte Kneeling, logo depois do rio onde patinhos que navegavam com destreza junto a seus filhotes, também muito depois de um antigo Wall-mart que havia mudado de endereço não há muito tempo, chegando a um banco solitário foi onde me sentei para repôr as energias.
Coincidentemente, eu digo, quase que instintivamente, certeza - eu dou de cara com a igreja onde o cara que eu me mantive pensando durante todo o meu percurso, estava sendo velado. Eu não tinha o que fazer e parecia que minha estadia naquela cidade estava sendo totalmente ignorada e provavelmente um tanto quanto odiada, então eu entrei. Enquanto eu subia os degraus da igreja eu observei o sino tocando interruptamente por sete vezes, como de costume, e depois parar. Pensei em dizer que era amigo íntimo do morto, mas talvez isso não iria colar, havia familiares ali e eles reconheceriam quaisquer amigos da vítima. Então apenas iria dizer que conhecia, isso basta, de alguma forma isso seria suficiente. Eu espero.

Entro.

Como em qualquer velório eles todos estão chorando e os que não estão, permanecem emburrados ou meneando a cabeça em tom de negatividade. Não vi foto alguma de princípio. O padre dizia algumas palavra para aquele cara de mesmo nome que eu, como se ele estivesse mesmo ouvindo.


"- Irmãos, devo saturar aqui, que Denner era um cara da paz. Muito querido em nossa vizinhança..."

Eu parei de escutar nessa parte, alguém de mesmo nome e também querido na vizinhança. Que sentindo isso faria? Eu não o conheço, mas quem sabe ele não esteja se referindo á outra vizinhança, outro bairro, até cidade talvez. Se enterrar na cidade onde uma mãe idosa mora é uma coisa ideal a se fazer, ficaria perto demais para que ela possa visita-lo enquanto não toma o mesmo fim.

Foi aí que... ele disse. Ele abriu aquela boca imunda que há algumas noite pedira dinheiro dos fiéis e disse, disse com aquele gaguejar treinado para criar ênfase em suas frases, ganhar credibilidade. Ele disse.

" Denner Ayres, meu irmão e amigo, eu sei que está na paz de Deus, eu sinto você aqui, você está aqui?" (poderia não ser uma pergunta, mas sai como se fosse.)

O véu por cima da foto cai. Sou eu nela. Isso explica. Tudo.

O badalar de sino toca sete vezes mais e se silencia. Pássaros voam e eu consigo ouvir o bater de asas deles bem distante. Eu grito, um berro profundo e mortal, minhas últimas forças. Todos da igreja olham para onde eu estava sentado - dessa vez todos eles escutaram, e alguns fecharam os olhos que estavam em prantos. A igreja é silenciada um tanto quanto unanimante com o meu "sim".

Eu percebo que... estou preso a este mundo.

- Mortos não abrem a boca até alguém os chamarem para uma conversa, meu filho. - meu avô diz.

O pior de tudo é que o filho da mãe tinha razão.

Mas ele completou que:

- Meu filho, esta história não é para se contar para ninguém. Pois Denner Ayres vai buscar em seus sonhos, você. - Ele ri atonicamente. - Quem sabe ele já não está aqui?

Lógico que não acreditei.
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Mas pra falar a verdade, que som foi este que acabei de escutar?




quarta-feira, 21 de outubro de 2015

A BALADA DO PROJÉTIL FLEXÍVEL - Stephen King's short stories






O churrasco havia terminado. Tinha sido excelente; bebidas, a carne mal-passada, tostada na brasa, uma salada de verduras e o molho especial de Meg. Começara às cinco da tarde. Agora eram oito e meia, já quase crepúsculo – a hora em que reuniões movimentadas começam a gerar desordem. Contudo, ali não havia uma reunião movimentada. Os reunidos eram apenas cinco: o agente e sua esposa, o prestigiado jovem escritor e sua esposa, e o editor da revista, de sessenta e poucos anos, porém parecendo ser mais idoso. O editor dedicara-se a beber Fresca. Antes que ele chegasse, o agente havia contado ao jovem escritor que, uma vez, ali houvera um problema de bebida. O problema desaparecera, bem como a esposa do editor... motivo pelo qual eles eram cinco, em vez de seis. Ao invés de surgir qualquer desordem, caiu sobre eles um ânimo introspectivo, quando começou a escurecer no pátio dos fundos do jovem escritor, dando para o lago. O primeiro livro do jovem escritor tinha recebido uma crítica excelente e vendera uma boa quantidade de exemplares. Ele era um rapaz de sorte e, para seu crédito, estava a par disso. Com divertida morbidez, a conversa passara do precoce sucesso do jovem escritor para outros escritores também prematuramente bem sucedidos e que, então, se haviam suicidado. Falou-se em Ross Lockridge, depois em Tom Hagen. A esposa do agente mencionou Sylvia Plath e Anne Sexton. O jovem escritor disse que não achava Sylvia Plath qualificada como escritora vitoriosa. Ela não se suicidara por causa do sucesso, disse ele; ela obtivera sucesso por ter-se suicidado. O agente sorriu. – Por favor, não podíamos falar de outras coisas? – perguntou a esposa do jovem escritor, um pouco nervosamente. Ignorando-a, o agente disse: – Também há a loucura. Houve os que enlouqueceram devido ao sucesso. O agente falava nos tons brandos, mas gorgeados, de um ator nos bastidores. A esposa do escritor ia protestar novamente – ela sabia que o marido, além de gostar de falar sobre o assunto, também pilheriava a respeito, porque pensava demais naquilo quando o editor da revista começou a falar. E ele disse algo tão estranho, que ela esqueceu o protesto. – A loucura é um projétil flexível. A esposa do agente olhou para ele, intrigada. O jovem escritor inclinou-se para diante, com ar inquisitivo. – Isso me soa familiar... – disse ele. – Sem dúvida – replicou o editor. – Esse termo, a imagem, "projétil flexível", é de Marianne Moore. Ela a usou para descrever um ou outro tipo de carro. Eu sempre pensei que descrevia perfeitamente a condição da loucura. A loucura é uma espécie de suicídio mental. Hoje em dia, os médicos não afirmam que a única maneira de realmente medir-se a morte é através da morte da mente? Pois a loucura é uma espécie de projétil flexível para o cérebro. A esposa do jovem escritor procurou mudar de assunto. – Alguém quer outra bebida? Ninguém se manifestou. – Pois eu quero, já que iremos falar dessas coisas – disse ela, e saiu para preparar seu drinque. – Apresentaram-me uma história certa vez, quando eu trabalhava em sua seleção, em Logan's. Naturalmente, já encerrou suas atividades, da mesma forma que Collier's e agora The Saturday Evening Post, porém sobrevivemos a ambos. – Ele declarou isto com um toque de orgulho na voz. – Publicávamos trinta e seis contos por ano, talvez mais, e a cada ano, quatro ou cinco deles figuravam na coleção de alguém como melhores do ano. E as pessoas os liam. De qualquer modo, o nome desta história a que me referi era "A Balada do Projétil Flexível", tendo sido escrita por um homem chamado Reg Thorpe. Um rapaz da idade deste jovem aqui e também um sucesso. – Não foi ele que escreveu Underworld Figures? – perguntou a esposa do agente. – Sim, foi ele. Uma ficha espantosa para uma primeira novela... Críticas espetaculares, vendas formidáveis em brochura e encadernação, Associação Literária, tudo. Inclusive o filme foi bom, embora não tanto como o livro. Nem lhe chegou aos pés. – Eu adorei aquele livro – disse a esposa do autor, novamente atraída à conversa, embora a contragosto. Tinha a surpresa e agradável expressão de quem acaba de recordar algo esquecido por muito tempo. – Ele escreveu mais alguma coisa em seguida? Li Underworld Figures quando freqüentava a faculdade, e isso foi... bem, há muito tempo, para lembrar agora. – Você não envelheceu um dia desde então – disse a esposa do agente, em tom simpático, embora achando que a esposa do jovem escritor usava um corpete pequeno demais e shorts muito apertados. – Não, ele não tornou a escrever – disse o editor. – Exceto por esta única história de que falei. Ele se matou. Ficou louco e matou-se. – Oh! – exclamou desoladamente a esposa do escritor. Eles voltavam ao tema – E o conto foi publicado? – perguntou o jovem escritor. – Não, mas não porque o autor enlouquecesse e se matasse. Ela jamais foi impressa, porque o editor ficou louco e quase se matou. O agente levantou-se de súbito para renovar seu drinque, que dificilmente precisava ser renovado. Ele sabia que o editor tivera um colapso nervoso no verão de 1969, não muito antes de Logan's ter afundado em um mar de tinta vermelha. – Eu era o editor – informou o editor aos restantes. – Em certo sentido, ficamos loucos juntos, Reg Thorpe e eu, embora eu estivesse em Nova York, ele em Omaha e nem mesmo nos conhecêssemos. Seu livro havia sido publicado seis meses antes, e ele se mudara para lá, a fim de "ordenar as idéias", como se dizia então. Só sei este lado da história, porque vejo ocasionalmente a esposa dele, quando ela vem a Nova York. É pintora e bastante boa nisso. Aliás, é uma moça de sorte. Ele quase a levou consigo. O agente voltou e sentou-se. – Começo a me lembrar de algo disso agora – falou. – E não foi apenas a esposa, certo? Ele baleou duas outras pessoas, uma delas uma criança. – Exatamente – confirmou o editor. – E foi a criança que finalmente lhe desencadeou a loucura. – A criança o levou à loucura? – perguntou a esposa do agente. – O que quer dizer com isso? O rosto do editor, no entanto, dizia que não ia ser forçado; falaria, mas sem que o questionassem. – Conheço o meu lado da história, porque o vivi – disse o editor da revista. – Também sou um sujeito de sorte. Tive uma maldita sorte. É uma coisa interessante, sobre aqueles que tentam matar-se apontando uma arma para a cabeça e puxando o gatilho. Qualquer um pensaria que é um método certeiro, melhor do que pílulas ou cortar os pulsos, mas não é. Quando uma pessoa dá um tiro na cabeça, não pode dizer o que vai acontecer. O balaço pode ricochetear no crânio e matar alguém mais. Pode seguir a curvatura craniana inteiramente e sair do outro lado. Pode alojar-se no cérebro e cegar a pessoa, sem matá-la. Um homem pode meter na testa uma bala de um 38 e acordar no hospital. Outro pode meter na testa uma bala de um 22 e acordar no inferno... se é que existe tal lugar. Sou propenso a crer que está aqui mesmo, na terra, possivelmente em Nova Jersey. A mulher do escritor riu um tanto agudamente. – O único método infalível de suicídio é atirar-se de um prédio bem alto, mas esta é uma saída tomada apenas pelos extraordinariamente dedicados. Causa tanta confusão, não é mesmo? "Meu ponto, contudo, é simplesmente este: quando a pessoa atira em si mesma com um projétil flexível, em realidade ignora qual será o desfecho. No meu caso, saltei de uma ponte e acordei em um aterro entulhado de lixo, com um motorista de caminhão espancando-me as costas e bombeando meus braços, para cima e para baixo, como se tivesse apenas vinte e quatro horas para ficar em forma e me tomasse por algum aparelho para exercitar-se em remadas. Para Reg, o projétil foi letal. Ele... Bem, lá estou eu contando uma história e nem sei se querem ouvi-la. Ele olhou inquisitivamente em torno, à penumbra cada vez maior. O agente e sua esposa entreolharam-se, duvidosos. A esposa do escritor ia falar que já haviam tido uma dose suficiente de assuntos lúgubres, quando seu marido disse: – Eu gostaria de ouvi-la. Caso não se importe de contá-la, por motivos pessoais, quero dizer. – Nunca a contei – disse o editor – porém não por motivos pessoais. Talvez nunca tenha encontrado os ouvintes certos. – Pois então, conte! – convidou o escritor. – Paul... – Sua esposa lhe pôs a mão no ombro. – Não acha que... – Agora, não, Meg. O editor disse: – A história chegou de bandeja, uma vez que nessa época, a Logan's há muito deixara de ler textos não solicitados. Quando eles chegavam, uma moça se limitava a enfiá-los em envelopes de devolução, anexando uma nota: "Devido à crescente despesa e à crescente impossibilidade do pessoal editorial em dar conta do número crescente de textos recebidos, Logan's deixou de ler manuscritos não solicitados. Desejamos-lhe sorte e que coloque sua obra em outra editora". Não é um formidável punhado de conversa fiada? Não é fácil usar a palavra "crescente" três vezes em uma só frase, mas eles conseguiram. – E se não houvesse selos para a devolução, a história ia para a cesta de papéis – disse o escritor. – Não é? – Oh, inapelavelmente! Não há piedade na cidade nua. Uma estranha expressão de desconcerto pairou no rosto do escritor. Era a expressão do homem que está em uma cova de tigres, onde dúzias de homens melhores já foram rasgados em pedaços. Até então, este homem não viu tigre algum. Contudo, ele pressente que os tigres estão lá e que suas garras continuam afiadas. – De qualquer modo – disse o editor, pegando sua cigarreira – esta história chegou e a moça da sala de correspondência a pegou, grampeou a fórmula de rejeição à primeira página e já ia enfiá-la no envelope de devolução, quando viu o nome do autor. Bem, ela tinha lido Undenworld Figures. Todos a tinham lido naquele outono ou estavam lendo, quando não se encontravam na lista de espera da livraria ou vistoriando as prateleiras dos drugstores pela edição em brochura. A esposa do escritor, que percebera a momentânea inquietude no rosto do marido, tomou-lhe a mão. Ele sorriu para ela. O editor acendeu o cigarro com um isqueiro Ronson de ouro e, à crescente escuridão, todos puderam ver quão desfigurado estava seu rosto – as bolsas frouxas abaixo dos olhos, com uma pele semelhante à dos crocodilos, as faces marcadas por sulcos, a ponta do queixo do velho emergindo daquele rosto de avançada meia-idade, como a proa de um navio. Um navio, pensou o escritor, que se chama velhice. Ninguém deseja um cruzeiro nele, porém os camarotes estão cheios. Por falar nisso, também os porões. O isqueiro apagou-se e o editor, sugou pensativamente o cigarro. – A moça da sala de correspondência que leu aquela história e a passou adiante, em vez de devolvê-la ao autor, é hoje editora-chefe na G. P. Putnam's Sons. Seu nome não vem ao caso; importa é que, no grande gráfico da vida, o vetor dessa jovem se cruzou com o de Reg Thorpe, na sala de correspondência da revista Logan's. Seu vetor subia, o dele descia. Ela entregou a história a seu chefe e esse chefe a passou para mim. Eu a li e adorei. Em realidade, era um pouco longa, mas pude ver onde ele cortaria quinhentas palavras, sem deturpar o sentido. Então, ficaria ótima. – Qual era o tema? – perguntou o escritor. – Você nem devia perguntar – replicou o editor. – Ele se ajusta maravilhosamente ao contexto total. – É sobre enlouquecer? – Sim, de fato. Qual é a primeira coisa que lhe ensinam, em seu primeiro curso universitário de escrita criativa? Escreve sobre o que você sabe. Reg Thorpe sabia sobre ficar louco, porque estava envolvido nisso. A história provavelmente me tenha seduzido, porque eu também me achava no mesmo caminho. Agora você diria – se fosse editor – que a única coisa que não precisa ser impingida ao público leitor americano, é outra história a respeito de Enlouquecer Elegantemente na América, tema secundário, Não Existe mais Dialogo. Um tema popular, na literatura do século XX. Todos os grandes escreveram a respeito e todos os escribas parecem obcecados por isso. Contudo, aquela história era engraçada. Quero dizer, era de fato hilariante. "Eu não havia lido nada igual antes e não li até hoje. O mais aproximado seriam alguns dos contos de F. Scott Fitzgerald... e Gatsby. O personagem na história de Thorpe estava enlouquecendo, mas enlouquecia de maneira muito divertida. A gente ri o tempo todo e havia duas passagens – aquela em que o herói despeja a gelatina de limão na cabeça da moça gorda é a melhor – em que se dava gargalhadas. Só que são gargalhadas nervosas, compreendam. Rimos e depois queremos olhar por cima do ombro, para saber o que ouvimos. As linhas opostas de tensão nessa história são realmente extraordinárias. Quanto mais se ri, mais nervoso se fica. E quanto mais nervoso, mais se ri... até o ponto em que o herói sai da festa dada em sua homenagem e volta para casa, onde mata a esposa e a filhinha. – Qual é a trama? – perguntou o agente. – Ora, isso não vem ao caso – replicou o editor. – Tratava-se apenas de uma história sobre um rapaz que, aos poucos, ia perdendo o controle para enfrentar o sucesso. É melhor que tudo fique vago. Uma sinopse detalhada da trama seria apenas tediosa. Sempre é assim. "De qualquer modo, escrevi-lhe uma carta. Dizia o seguinte: "Caro Reg Thorpe, Acabei de ler "A Balada do Projétil Flexível" e achei excelente. Gostaria de publicá-la em Logan's, no início do próximo ano, se lhe convier. Acha que 800 dólares soam bem? Pagamento contra aceitação. Mais ou menos". Ponto parágrafo. O editor pontilhou o ar noturno com seu cigarro. "A histeria está um pouco longa e gostaria que você a encurtasse em cerca de quinhentas palavras, se for possível. Eu estabeleceria um corte mínimo de duzentas palavras. Podemos fazer uma ilustração". Ponto parágrafo. "Telefone, se interessar." Minha assinatura. E lá se foi a carta para Omaha. – E ainda se lembra dela, palavra por palavra, como disse? – perguntou a esposa do escritor. – Mantenho toda a correspondência em um arquivo especial – disse o editor. – As cartas dele, as cópias das minhas. No fim, havia uma boa pilha, incluindo-se três ou quatro cartas de Jane Thorpe, sua esposa. De vez em quando leio tudo aquilo. Não é muito bom, claro. Querer tentar compreender o projétil flexível, é tentar compreender como uma fita de Môbius só pode ter uma superfície. É assim que são as coisas, neste melhor-de-todos-os-possíveis mundos. Sim, sei a carta palavra por palavra ou quase isso. Algumas pessoas sabem a Declaração da Independência de cor. – Aposto como ele telefonou no dia seguinte – disse o agente, sorrindo. – A cobrar. – Não, ele não telefonou. Logo depois de Underworld Figures, Thorpe deixou completamente de usar o telefone. Foi sua esposa que me contou. Quando se mudaram de Nova York para Omaha, eles nem mesmo mandaram instalar um aparelho na casa nova. Compreendam, ele havia decidido que o sistema telefônico não funcionava realmente à base de eletricidade, mas do radium. Thorpe achava que este era um dos dois ou três mais bem guardados segredos do mundo. Afirmou para sua esposa que era o radium o único responsável pela porcentagem crescente de câncer, não os cigarros, emissões de automóveis ou a poluição industrial. Cada telefone tinha um pequeno cristal de radium no fone, de modo que, em todas as vezes quando era usado, a pessoa injetava radiação na cabeça. – Nossa, o cara era mesmo louco – disse o escritor, e todos eles riram. – Ele escreveu, em vez de telefonar – disse o editor, com um piparote atirando seu cigarro na direção do lago. – Sua carta dizia o seguinte: "Caro Henry Wilson (ou apenas Henry, se possível), Sua carta foi não apenas excitante, mas também gratificante. Minha esposa ficou ainda mais satisfeita do que eu. O dinheiro está ótimo... embora eu deva dizer, com toda sinceridade, que a idéia de ver o conto publicado em Logan's me pareceu uma compensação mais do que adequada (contudo, eu o aceito, vou aceitá-lo). Estive examinando os cortes que indicou e parecem oportunos. Acredito que melhorarão a história, além de deixarem espaço para aquelas ilustrações. Atenciosamente, Reg Thorpe." – Sob sua assinatura havia um pequeno e curioso desenho... mais como um rabisco. Um olho em uma pirâmide, como aquele no verso da nota de um dólar. Contudo, em vez de Novus Ordo Secloruin, na faixa abaixo, havia estas palavras: Fornit Some Fornus. – Deve ser latim ou Groucho Marx – disse a esposa do agente. – Era apenas parte da crescente excentricidade de Reg Thorpe – respondeu o editor. – Sua esposa me disse que ele começara a acreditar nas "pessoas miúdas", algo assim como elfos e fadas. Os Fornits. Eram os elfos da sorte e Reg achava que um deles morava em sua máquina de escrever. – Oh, meu Deus! – exclamou a esposa do escritor. – Segundo Thorpe, cada Fornit possuía um pequeno dispositivo, como um pulverizador, cheio de... pó-da-sorte, creio que poderia dizer-se assim. E o pó-da-sorte... – ... tinha o nome de fornus – completou o escritor, sorrindo amplamente. – Exato. A esposa dele achava isso muito divertido. A princípio. De fato, no início – Thorpe havia concebido os Fornits dois anos antes, enquanto rascunhava Undenworld Figures – ela pensava apenas que Reg estivesse lhe fazendo uma brincadeira. Talvez, no começo ele estivesse mesmo. A coisa parece ter progredido de fantasia a superstição e de superstição a crença absoluta. Era uma... uma fantasia flexível. Só que rija no fim. Muito rija. Todos ficaram calados. Os sorrisos morreram. – Os Fomits tinham seu lado engraçado – disse o editor. – A máquina de escrever de Thorpe começou a ir regularmente para o conserto, no final da permanência do casal em Nova York, idas que se tornaram ainda mais freqüentes quando se mudaram para Omaha. Thorpe escrevia em uma máquina emprestada, quando a sua foi consertada a primeira vez, já em Omaha. O gerente da firma ligou dias depois de Reg receber sua máquina de volta, para comunicar que lhe mandaria uma conta, pela limpeza não só da máquina de empréstimo, como da que pertencia a ele. – Qual era o problema? – quis saber a esposa do agente. – Acho que sei – disse a esposa do escritor. – Ela estava cheia de comida – disse o editor. – Pedacinhos diminutos de bolo e biscoitos. Havia também manteiga de amendoim na peça em que são fixados os tipos da máquina. Reg estava alimentando o Fornit que vivia em sua máquina de escrever. Também colocara comida na máquina de empréstimo, na hipótese de que o Fomit se tivesse mudado para ela. – Caramba! – exclamou o escritor. – Eu não sabia de nada disso então, compreendam. Por essa vez, escrevi em resposta, dizendo-lhe o quanto estava satisfeito. Minha secretária datilografou a carta e a trouxe para que eu a assinasse, mas então precisou sair para fazer qualquer coisa. Assinei, e ela ainda não tinha voltado. Foi quando – sem a menor razão para tanto – fiz o mesmo desenho garatujado abaixo de meu nome. Pirâmide. Olho. E "Fornit Some Fornus". Loucura. A secretária viu aquilo e perguntou se eu ia mandar a carta assim mesmo. Dei de ombros, disse-lhe que a enviasse. – Dois dias mais tarde, Jane Thorpe me telefonou. Disse que minha carta deixara Reg muitíssimo excitado. Ele pensava que achara uma alma gêmea... outra pessoa que também sabia sobre os Fornits. Vêem a que situação louca estava chegando a situação? Que me conste, àquela altura um Fornit poderia ser qualquer coisa, desde chave-inglesa para canhotos a faca de carne polaca. Idem para fornus. Expliquei a Jane que me limitara a copiar o desenho de Reg. Ela quis saber por quê. Esquivei-me à pergunta, embora a resposta pudesse ser que eu estava muito bêbado, quando assinei a carta. Ele fez uma pausa, e um silêncio incômodo caiu sobre o pátio dos fundos. As pessoas olharam para o céu, para o lago, as árvores, embora não estivessem mais interessantes agora, do que tinham estado um ou dois minutos antes. – Eu tinha estado bebendo durante toda a minha vida adulta, sendo-me impossível dizer quando a situação me escapou ao controle. No sentido profissional, eu ia do topo da garrafa até quase o próprio final. Começava a beber no almoço e voltava tocado para o escritório. Contudo, funcionava perfeitamente bem. Era a bebida depois do trabalho – primeiro no trem e depois em casa – que me levava para além do ponto funcional. "Eu e minha esposa vínhamos tendo problemas não relacionados à bebida, mas o fato de beber piorava ainda mais aqueles problemas. Ela viera se preparando para ir embora havia muito tempo. Uma semana antes da história de Reg Thorpe chegar, ela se foi. "Eu tentava manejar a situação, quando deparei com a história dele. Agora bebia pesadamente. E, para cúmulo, estava tendo – bem, acho que agora é moda dar a isso o nome de crise da meia-idade. Na época, sabia apenas que estava deprimido por causa de minha vida profissional e também da vida pessoal. Procurava lutar contra – ou tentava – uma crescente sensação de que editar histórias em massa para o mercado, histórias que terminariam sendo lidas por pacientes nervosos no dentista, donas de casa na hora do almoço e um ocasional universitário entediado, não era propriamente uma atividade nobre. Procurava também lutar contra a idéia – novamente, tentava, aliás, era o que todos fazíamos na Logan's, nessa época – de que em mais seis meses, dez ou quatorze, talvez não houvesse mais nenhuma Logan's. "Então, nessa monótona paisagem outonal da meia-idade angustiada, surge uma boa história, de autoria de um bom escritor – uma energética e divertida espiada à mecânica do enlouquecer. Foi como um raio brilhante de sol. Sei que parece estranho dizer isso sobre uma história que termina com o personagem matando a esposa e a filha pequenina, porém perguntem a qualquer editor o que ele considera uma real alegria, e ele lhes dirá que é a grande novela ou história inesperadas, caindo em sua mesa de trabalho como um grande presente de Natal. Bem, vocês todos conhecem aquela história de Shirley Jackson, "A Loteria". Ela termina da maneira mais deprimente que se possa imaginar. Quero dizer, uma bela dama é apedrejada até morrer. Seu filho e sua filha participam de seu assassinato, pelo amor de Deus! Contudo, foi uma história e tanto... e aposto como o editor da New York que primeiro leu a história, naquela noite voltou assobiando para casa. "O que estou tentando dizer é que a história de Thorpe foi a melhor coisa em minha vida, naquele momento. A única coisa boa. E, segundo o que a esposa dele me disse ao telefone, nesse dia, minha aceitação da história foi a única coisa boa que tinha acontecido a Thorpe ultimamente. O relacionamento escritor-editor é sempre de mútuo parasitismo, porém no meu caso e de Reg, esse parasitismo foi elevado a um grau incomum. – Voltemos a Jane Thorpe – pediu a esposa do escritor. – Certo. Penso que a deixei em um desvio, não? Ela ficou zangada no tocante aos Fornits. A princípio. Contei-lhe que apenas garatujara aquele símbolo olho-e-pirâmide, sem saber ao certo seu significado, e me desculpei pelo que quer que houvesse feito. "Ela dominou sua raiva e soltou tudo para mim. Estivera ficando cada vez mais ansiosa, sem ter com quem desabafar. Seus pais estavam mortos e todos os seus amigos viviam em Nova York. Reg não permitia a presença de ninguém em casa, além deles dois, alegando que os outros eram gente do Imposto de Renda, do FBI ou da CIA. Não muito depois de se mudarem para Omaha, uma garotinha chegou à porta, vendendo biscoitos para as escoteiras. Reg gritou com ela, disse-lhe que fosse vender aquilo no inferno, que sabia perfeitamente por que estava ali, e por aí adiante. Jane tentou argumentar com ele. Disse que a menina só tinha dez anos. Reg respondeu que a gente dos impostos não tinha almas nem consciências. Além do mais, disse ele, a menininha podia ser algum andróide. Andróides não estariam sujeitos às leis trabalhistas para crianças. Talvez o pessoal dos impostos houvesse mandado uma escoteira andróide, cheia de cristais de radium, para descobrir se ele estava guardando segredos... e, nesse meio tempo, para impregna-lo com raios cancerosos. – Santo Deus! – exclamou a esposa do agente. – Ela havia esperado uma voz amistosa e a minha foi a primeira. Fiquei sabendo a história da menina escoteira, sobre a preocupação de Reg com os Fornits e sua alimentação, sobre fornus e sobre como ele se recusara a ter um telefone em casa ou a usar um. Ela falava comigo de um telefone pago, em uma cabine de drugstore, cinco quarteirões além de sua casa. Disse recear que Reg não estivesse realmente preocupado com a gente dos impostos, homens do FBI ou da CIA. Em sua opinião, o que seu marido realmente temia era que Eles – algum maciço e anônimo grupo que o odiava, que o invejava, que não se deteria diante de nada para apanha-lo – houvessem tomado conhecimento de seu Fornit e quisessem matar a criatura. Se o Fornit morresse, não haveria mais novelas, mais contos, nada. Compreendem? A essência da insanidade. Eles estavam decididos a liquida-lo. Resumindo, nem mesmo o Imposto de Renda, que o fizera passar momentos infernais, no relacionado à renda gerada por Underworld Figures, serviria como pretexto. No fim, eram apenas Eles. A perfeita fantasia paranóica. Eles queriam matar o seu Fornit. – Céus, e o que você disse a ela? – perguntou o agente. – Procurei tranqüiliza-la – disse o editor. – Lá estava eu, tendo retornado pouco antes de um almoço regado a cinco martinis, falando com aquela mulher aterrorizada que me ligava de uma cabine telefônica em um drugstore de Omaha, procurando convencê-la de que tudo estava bem, de que não devia preocupar-se com o marido que acreditava estarem os telefones repletos de cristais de radium, imaginando que um bando de pessoas anônimas enviava escoteiras andróides para liquida-lo. Disse-lhe para não inquietar-se, se seu marido havia desligado seu próprio talento de sua mentalidade, a tal ponto, que acreditava haver um elfo morando em sua máquina de escrever. "Não acho que tenha sido muito convincente". Ela me pediu – não, suplicou – para trabalhar com Reg em sua história, para providenciar sua publicação. Aquela mulher fez tudo, exceto dizer que "O Projétil Flexível" era o último contato do marido com o que, humoristicamente, chamamos de realidade. "Perguntei-lhe como agir, caso Reg tornasse a mencionar os Fornits. "Seja indulgente com ele", disse ela. Foram suas exatas palavras – seja indulgente com ele. E então, desligou. "No dia seguinte, havia uma carta de Reg na correspondência – cinco páginas, datilografadas, espaço um. O primeiro parágrafo era sobre a história. Ele dizia que o segundo rascunho estava indo bem. Achava-se capaz de cortar setecentas palavras das originais dez mil e quinhentas, reduzindo o conto definitivo a nove mil e oitocentas palavras. "O restante da carta era sobre Fornits e fornus. Suas próprias observações e perguntas... dúzias de perguntas. – Observações? – o escritor inclinou-se para diante. – Quer dizer que ele os via realmente? – Não – disse o editor. – Reg não os via, em um sentido real, porém, de outra maneira... suponho que sim. Sabem como é: os astrônomos supunham – sabiam – que Plutão estava lá, muito antes de contarem com um telescópio potente o bastante para vê-lo. Sabiam tudo sobre ele, estudando a órbita do planeta Netuno. Era dessa maneira que Reg observava os Fornits. Eles gostavam de comer à noite, segundo escreveu. Será que eu já percebera isso? Ele os alimentava durante todas as horas do dia, porém havia notado que a maioria da comida desaparecia após as oito da noite. – Alucinação? – perguntou o escritor. – Não – respondeu o editor. – Sua esposa, simplesmente, limpava o máximo daquela comida na máquina de escrever, quando Reg saia para sua caminhada noturna. E ele saía todas as noites, às nove horas. – Eu diria que ela teve coragem, ligando para você – grunhiu o agente, remanejando o corpo volumoso na cadeira de jardim. – Ela própria alimentava a fantasia do homem. – Acho que não entendeu por que ela me telefonou e por que estava tão perturbada. replicou quietamente o editor. Olhou para a esposa do escritor. – Pois aposto que você entendeu, Meg. – Talvez – disse Meg, e dirigiu ao marido um desconfortável olhar de esguelha. – Ela não se irritou por você incentivar a fantasia do marido. Apenas, tinha medo que você a transtornasse. – Muito bem! – exclamou o editor, acendendo outro cigarro. – E ela removia o alimento pelo mesmo motivo. Se a comida continuasse a acumular-se na máquina de escrever, Reg faria a dedução lógica, partindo diretamente de sua própria e decididamente ilógica premissa. Ou seja, que seu Fornit morrera ou tinha ido embora. Portanto, não haveria mais fornus. Em resultado, não haveria mais escritos. Daí... O editor deixou a palavra em suspenso na fumaça do cigarro, depois prosseguiu: – Reg imaginou que os Fornits deviam ser criaturas notívagas. Elas detestavam barulho – ele já percebera que não conseguia escrever pela manhã, após reuniões ruidosas – odiavam a televisão, a eletricidade livre e o radium. Reg vendera sua TV para a Goodwill por vinte dólares, segundo afirmava, e há muito se fora o seu relógio de pulso com mostrador de radium. Depois, as perguntas. Como eu ficara sabendo sobre os Fornits? Seria possível que tivesse um morando comigo? Em caso afirmativo, o que eu pensava disto, disto ou daquilo? Acho que não preciso ser mais específico. Se vocês já possuíram um cão de determinada raça e podem recordar as perguntas feitas sobre cuidados com ele e alimentação, percebem a maioria das perguntas que Reg me fez. Um pequeno rabisco abaixo de minha assinatura, foi tudo quanto se precisou, para que se abrisse a caixa de Pandora. – O que escreveu em resposta? – perguntou o agente. – Foi aí que realmente começou o problema – respondeu lentamente o editor. – Para nós dois. Jane havia dito "Seja indulgente com ele" e foi o que fiz. Infelizmente, acho que exagerei. Quando respondi à carta, estava em casa e muito bêbado. O apartamento me parecia demasiado vazio. Tinha um cheiro rançoso de excesso de cigarros fumados e pouca aeração. As coisas tinham piorado muito, sem Sandra por ali. As cobertas em cima do sofá estavam amarfanhadas. Havia pratos sujos na pia, esse tipo de situação. Eu era um homem de meia-idade, despreparado para a domesticidade. "Enfiei uma folha de papel de minha correspondência pessoal na máquina de escrever, e pensei: Preciso de um Fornit. De fato, eu precisava de uma dúzia deles, para que tirassem o pó desta maldita casa solitária com fornus, de ponta a ponta. Naquele instante, de fato eu estava bêbado o bastante para invejar a fantasia de Reg Thorpe. "Naturalmente, escrevi para ele que tinha um Fornit. Disse-lhe que o meu tinha incríveis características similares ao dele. Era notívago. Odiava barulho, mas parecia apreciar Bach e Brahms... Falei que era comum executar meu melhor trabalho após uma noite ouvindo-os. Descobrira que meu Fornit mostrava uma decidida predileção por salsichão Kirschner's... – Reg já fizera essa experiência? Eu simplesmente deixava pequenas migalhas perto do Scrillto que sempre carregava – meu lápis azul editorial, caso não saibam – e, pela manhã, estava quase tudo consumido. A menos que, como dizia Reg, tivesse havido barulho na noite anterior. Falei-lhe que ficara satisfeito em saber do detalhe sobre o radium, embora não possuísse um relógio de pulso com mostrador fosforescente. Acrescentei que meu Fornit estava comigo desde a universidade. Fiquei tão entusiasmado com minha invenção, que escrevi quase seis páginas. No final, acrescentei um parágrafo sobre a história, algo bastante superficial, e assinei. – E abaixo de sua assinatura...? – perguntou a esposa do agente. – Claro. Fornit Some Fornus. – O editor fez uma pausa. – Não podem enxergar no escuro, mas fiquei vermelho. Eu estava tão infernalmente bêbado, tão infernalmente tocado... É possível que mudasse de idéia à fria luz do dia, mas então já era muito tarde. – Colocou a carta no correio à noite? – murmurou o escritor. – Exatamente. E então, por uma semana e meia, contive o fôlego, enquanto esperava. Certo dia, chegou o manuscrito, endereçado a mim, sem nenhuma carta. Os cortes estavam como havíamos discutido e pensei que a história houvesse ficado perfeita, mas o manuscrito estava... bem, eu o coloquei em minha pasta, levei-o para casa e o redatilografei pessoalmente. Estava coberto de manchas amarelas e estranhas. Imaginei... – Urina? – perguntou a esposa do agente. – Sim, foi o que imaginei. Contudo, não era. Quando cheguei em casa, havia uma carta de Reg em minha caixa de correspondência. Agora, dez páginas. Naturalmente, ali vinha a explicação para as manchas amarelas. Ele não conseguira encontrar o salsichão Kirschner's, de maneira que tentara o Jordan's. "Acrescentou que eles o tinham adorado. Em especial com mostarda. "Naquele dia, eu estava absolutamente sóbrio. Contudo, sua carta, acrescida daquelas lamentáveis manchas de mostarda através das páginas de seu manuscrito, fez com que eu caminhasse diretamente para o armário de bebidas. Não apenas passei ao lado do armário, não me multei. Fui embriagar-me. – O que mais dizia a carta? – quis saber a esposa do agente. Ela se mostrara cada vez mais fascinada pelo relato e agora, inclinada sobre ventre algo avolumado, exibia uma postura que fazia a esposa do escritor recordar Snoopy, no teto de sua casa de cachorro, fingindo ser um abutre. – Desta vez, continha apenas duas linhas sobre a história. Todo o crédito era atribuído ao Fornit... e a mim. O salsichão tinha sido, de fato, uma idéia fantástica. Rackne o adorara e, em decorrência... – Rackne? – perguntou o escritor. – Era o nome do Fornit – disse o editor. – Rackne. Então, em decorrência do salsichão, Rackne é que, em realidade, estava por trás do texto reescrito. O restante da carta era um canto paranóico. Nunca vi nada semelhante na vida. – Reg e Rackne... um casamento traçado no céu – disse a esposa do escritor, com uma risadinha nervosa. – Oh, de maneira alguma – replicou o editor. – O relacionamento deles era puramente de trabalho. Afinal, Rackne era macho. – Bem, fale-nos sobre a carta. – Essa é uma que não sei de cor. Tanto melhor para vocês. Mesmo anormalidades, após algum tempo tornam-se tediosas. O carteiro era da CIA. O entregador de jornais era do FBI; Reg tinha visto um revólver provido de silenciador, no saco de jornais que o menino carregava. Os vizinhos eram espiões de alguma espécie; possuíam um equipamento de vigilância em seu furgão. Ele não ousava mais ir à mercearia da esquina para comprar mantimentos, porque o proprietário era um andróide. Disse que já desconfiava disso antes, porém que agora tinha certeza. Ele vira os fios que se entrecruzavam sob o couro cabeludo do homem, nas partes que começavam a ficar calvas. Além do mais, estava alta a contagem do radium em sua casa; à noite, podia ver uma mortiça claridade esverdeada nos aposentos. "A carta terminava assim: "Espero que responda a esta e me ponha ao corrente de sua situação (e do seu Fornit), com referência a inimigos, Henry. Acredito que este nosso relacionamento tenha sido uma ocorrência que transcende à coincidência. Poderíamos dar a ele o nome de alerta-vital (de Deus? Da Providência? Do Destino? Inclua o termo que desejar) no último instante possível. "Não é crível que um homem fique sozinho por tanto tempo, contra mil inimigos. E quando, afinal, descobrir que não se encontra só... seria exagero dizer que a comunalidade de nossa experiência se levanta entre a minha pessoa e a destruição total? Talvez não. Eu preciso saber: os inimigos estão atrás de seu Fornit, como estão de Rackne? Em caso afirmativo, como você maneja a situação? Em caso negativo, tem alguma idéia de por que não estão? Repito, eu preciso saber." "A carta continha o desenho do Fornit Some Fornus abaixo da assinatura e, em seguida, vinha um P.S., constando de apenas uma frase. Contudo, uma frase letal. O P.S. dizia: "Às vezes, desconfio de minha esposa." "Li a carta do começo ao fim três vezes. No processo, dei cabo de uma garrafa inteira de Black Velvet. Comecei a considerar opções sobre como responder àquela carta. Era um grito de socorro de um homem afogando-se, sem qualquer dúvida. A história o mantivera lúcido por algum tempo, mas agora ela ficara pronta. E agora ele dependia de mim para continuar lúcido. Era algo perfeitamente racional, desde que eu acarretara tudo aquilo. "Andei de um lado para outro dentro de casa, por todos os aposentos vazios. Então, comecei a desligar coisas. Estava muito bêbado, lembrem-se, e uma forte bebedeira abre vias inesperadas de sugestibilidade. Daí o motivo de editores e advogados optarem por três drinques, antes de falarem sobre contratos, à hora do almoço. O agente deu uma risada ruidosa, mas os ânimos permaneceram rígidos, tensos e incômodos. – Por favor, tenham em mente que Reg Thorpe era um senhor escritor. Estava absolutamente convicto do que dizia. FBI. CIA. IR. Eles. Os inimigos. Certos escritores possuem o dom muito raro de refrigerar sua prosa, quanto mais apaixonadamente sentem o seu tema. Steinbeck fazia isso e também Hemingway. Reg Thorpe tinha o mesmo talento. Quando alguém penetrava em seu mundo, tudo começava a parecer muito lógico. Achava-se muito provável, uma vez aceita a premissa básica do Fornit, que o menino entregador de jornais tivesse um 38 com silenciador em sua saca de jornais. Que os universitários da casa ao lado, donos do furgão, poderiam realmente ser agentes da KGB, com cápsulas mortíferas em molares de cera, empenhados em uma missão faça-ou-morra, para matar ou capturar Rackne. "Naturalmente, não aceitei a premissa básica. Contudo, eu sentia grande dificuldade em raciocinar. E desligava coisas. Primeiro foi a televisão colorida, por que todos sabem que realmente emitem grande radiação. Na Logan's, publicamos certa vez um artigo da autoria de um cientista de reputação inatacável, sugerindo que a radiação emitida pela TV em cores doméstica estava interrompendo as ondas cerebrais humanas o suficiente para alterá-las, minuciosa, mas permanentemente. Esse cientista sugeria que talvez fosse este o motivo do declínio das notas em geral dos estudantes, dos testes literários e do desenvolvimento de especialização matemática na escola primária. Afinal, quem fica mais sentado diante de um aparelho de TV do que uma criança? "Assim, desliguei a televisão, e isso pareceu realmente arejar meus pensamentos. De fato, sentime tão melhor, que desliguei o rádio, a tostadeira, a máquina de lavar e a secadora de roupas. Lembreime então do forno de microondas e o desliguei da parede. "Senti um verdadeiro alívio, quando os dentes da maldita coisa foram arrancados. Era um dos primeiros modelos no mercado, mais ou menos do tamanho de uma casa e, sem dúvida, realmente perigoso. Hoje em dia, consegue-se fazê-los mais protegidos. "Ocorreu-me quantas coisas possuímos em uma residência comum da classe média, ligadas à parede. Veio-me uma imagem sobre esses sérios octópodes elétricos, seus tentáculos consistindo de fios elétricos, todos serpenteando pelas paredes, todos ligados a cabos externos, e todos os cabos seguindo para estações de energia elétrica, dirigidas pelo governo. "Quando fiz aquelas coisas, havia uma curiosa duplicidade em minha mente – prosseguiu o editor, após uma pausa para um gole de Fresca. – Essencialmente, eu reagia a impulsos supersticiosos. Há muitas pessoas que não passam debaixo de escadas ou abrem um guarda-chuva dentro de casa. Há jogadores de basquete que se benzem antes de uma jogada decisiva e jogadores de beisebol que trocam as meias quando estão inferiorizados. Creio que seja a mente racional tocando um acompanhamento em mau estéreo com o subconsciente irracional. Eu diria que se trata de um pequeno aposento acolchoado, dentro de todos nós, onde o único mobiliário é uma pequena mesa dobrável de jogo, sendo a única coisa sobre a mesa um revólver carregado com projéteis flexíveis. "Quando trocamos de calçada para fugir à escada ou saímos do apartamento para a chuva com um guarda-chuva fechado, parte de nosso eu integral se despe e penetra naquele aposento, onde pega a arma em cima da mesa. Talvez estejamos cônscios de dois pensamentos conflitantes: passar debaixo da escada é inofensivo e não passar debaixo de uma escada também é inofensivo. Contudo, assim que a escada está atrás de nós – ou assim que o guarda-chuva é aberto – voltamos ao ponto de partida. – Isso é muito interessante – disse o escritor. – Avance um pouco mais para mim, caso não se importe. Quando é que a parte irracional pára realmente de brincar com a arma e a aponta para a têmpora? O editor respondeu: – Quando a pessoa em questão começa a escrever para a seção de leitores dos jornais, exigindo que todas as escadas sejam retiradas, porque passar debaixo delas é perigoso. Houve risos. – Já que fomos tão longe, creio que devemos terminar. O eu irracional disparou realmente o projétil flexível no cérebro, quando a pessoa começa a mover-se violentamente pela cidade, derrubando escadas e talvez machucando os que nelas trabalham. Dar a volta em torno de escadas ou passar debaixo delas não é, certamente, um comportamento interditável. Tampouco é comportamento interditável alguém escrever cartas ao jornal, dizendo que a Cidade de Nova York entrou em colapso, porque todos passam atrevidamente debaixo das escadas usadas por operários. Contudo, é interditável começar a derrubar escadas. – Porque é premeditado – murmurou o escritor. O agente disse: – Você acertou o alvo aí, Henry. Pessoalmente, sou contra acender três cigarros com um só fósforo. Não sei como adquiri a mania, mas é assim que ajo. Aliás, li em algum lugar, que isso começou nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Parece que os atiradores alemães esperavam que os Tommies começassem a acender os cigarros uns dos outros. No primeiro clarão, consegue-se o alcance de tiro. No segundo, avalia-se o desvio da bala. E, no terceiro, estoura-se a cabeça do sujeito. Contudo, mesmo saber disso não fez qualquer diferença. Ainda continuo sem acender três cigarros com um fósforo. Uma parte de mim diz que pouco importa se acendo uma dúzia de cigarros com um fósforo. A outra, no entanto – esta, uma voz lúgubre e soturna, como um Boris Karloff interior – diz, Ohhhh, se você fizer isso..." – Entretanto, nem toda a loucura é supersticiosa, certo? – perguntou timidamente a esposa do escritor. – Será? – replicou o editor. – Joana d'Arc ouvia vozes do céu. Algumas pessoas julgam-se possuídas por demônios. Outras vêem gremlins... ou diabos... ou Fornits. Os termos que usamos para a loucura, sugerem superstição, em uma ou outra forma. Mania... anormalidade... irracionalidade... demência... insanidade... Para a pessoa louca, a realidade entortou-se. Como um todo, a criatura começa a reintegrar-se naquele quartinho onde está a pistola. "Contudo, a minha parte racional ainda estava bem presente. Ensangüentada, esfolada, indignada e talvez amedrontada, mas ainda funcionando. Dizendo: "Oh, está tudo bem. Amanhã, quando você ficar sóbrio, poderá ligar tudo outra vez, graças a Deus. Faça as brincadeirinhas que quiser, mas não passe daí. Não vá além disso." "Aquela voz racional tinha o direito de estar amedrontada. Em nós, existe algo que é muito atraído para a loucura. Todos que olham pela borda de um edifício alto, já sentiram pelo menos uma fraca, mórbida vontade de saltar. E quem quer que já tenha encostado uma arma carregada à cabeça... – Ai, pare! – disse a esposa do escritor. – Por favor! – Está bem – respondeu o editor. – Meu ponto é apenas este: mesmo a pessoa mais bem ajustada, tem sua lucidez pendendo de uma corda ensebada. Acredito realmente nisso. Os circuitos da racionalidade são fracamente construídos dentro do animal humano. "Com as tomadas desligadas, fui para meu estúdio, escrever uma carta para Reg Thorpe. Depois a coloquei em um envelope, selei-a, saí e a postei. Aliás, não me recordo de ter feito nada disso. Estava bêbado demais para lembrar. No entanto, deduzi que fiz, porque quando me levantei, na manhã seguinte, o carbono ainda estava sobre minha máquina de escrever, juntamente com os selos e a caixa de envelopes. A carta dizia o que se pode esperar de um bêbado. Seu conteúdo explicava mais ou menos isto: os inimigos eram atraídos pela eletricidade, assim como os próprios Fornits. Livre-se da eletricidade e estará livre dos inimigos. No fim, eu tinha escrito: "A eletricidade está transtornando suas idéias sobre estas coisas, Reg. Interferência com ondas cerebrais. Sua esposa tem um liquidificador?" – Com efeito, você começava a escrever cartas para o jornal – comentou o escritor. – Sem dúvida. Escrevi aquela carta em uma noite de sexta-feira. Na manhã de sábado, levantei por volta das onze horas, com ressaca e apenas vagamente cônscio da traquinada cometida na véspera. Senti ondas de vergonha, quando comecei a religar os aparelhos elétricos. A vergonha maior – e medo – foi quando vi o que tinha escrito a Reg. Revisei toda a casa em busca do original daquela carta, rezando para não a ter enviado. Contudo, ela já estava a caminho de Omaha. E só consegui passar aquele dia, tomando a decisão de carregar minha cruz como homem e seguir em frente. Foi o que fiz. "Na quarta-feira seguinte, recebi carta de Reg. Uma página, manuscrita. Toda desenhada com Fornit Some Fornus. No meio, apenas isto: "Você tinha razão. Obrigado, obrigado, obrigado. Reg. Você tinha razão. Tudo está ótimo agora. Reg. Muitíssimo obrigado. Reg. O Fornit está ótimo. Reg. Obrigado. Reg." – Oh, meu Deus! – exclamou a esposa do escritor. – Aposto como a mulher dele ficou louca – disse a esposa do agente. – Nada disso. Porque a coisa funcionou. – Funcionou? – perguntou o agente. – Ele recebeu minha carta na correspondência da manhã de segunda-feira. Na tarde desse dia, Reg foi ao escritório local da companhia de eletricidade e disse a eles que cortassem a energia de sua casa. Jane Thorpe, naturalmente, ficou histérica. Seu fogão era elétrico e, de fato, ela possuía um liquidificador, máquina de costura, uma combinação de lavadora-secadora de roupas... bem, vocês entendem. Na noite de segunda-feira, tenho certeza de que ela estava pronta para ter minha cabeça em uma bandeja. "Contudo, foi o comportamento de Reg que a levou a considerar-me um fazedor de milagres, em vez de lunático. Ele a fez sentar-se na sala de estar e conversou com ela, demonstrando a maior racionalidade. Disse saber que estivera agindo de maneira muito singular. Sabia-a preocupada com isso. Disse-lhe que se sentia bastante melhor com a eletricidade cortada e que ficaria satisfeito em ajudá-la, ante qualquer inconveniência produzida por aquele corte de energia. Depois sugeriu que fossem até a casa vizinha, dizer olá. – Não era a residência dos agentes da KGB, com radium em seu furgão? perguntou o escritor. – Exatamente. Jane não teve saída. Concordou em ir lá com ele, segundo me disse, mas já preparada para uma cena desagradável. Acusações, ameaças, histeria. Começara a pensar em abandonar Reg, se ele não acedesse em obter ajuda para seu problema. Contou-me que, naquela manhã de quarta-feira ao telefone, fizera a si mesma uma promessa: a questão da eletricidade era a gota que fazia o copo transbordar. Ele que aprontasse mais uma, e ela partiria para Nova York. Estava ficando amedrontada, entendam. A situação havia piorado aos poucos, em graus quase imperceptíveis, e ela o amava, mas já fora tão longe até onde podia ir. Decidira que, se Reg dissesse uma só palavra estranha aos estudantes vizinhos, sairia de casa. Muito mais tarde, fiquei sabendo que ela já tomara algumas discretas informações sobre o procedimento em Nebraska para internação involuntária de um doente mental. – Pobre mulher! – murmurou a esposa do escritor. – A noite, contudo, foi um estrondoso sucesso – disse o editor. – Reg não podia estar mais fascinante... e, segundo Jane, ele foi extraordinariamente fascinante. Nunca o vira assim, nos últimos três anos. A casmurrice, o retraimento, tudo desaparecera. Os tiques nervosos. O salto involuntário e o olhar por sobre o ombro, sempre que uma porta era aberta. Ele tomou uma cerveja e discorreu sobre todos os sombrios tópicos da atualidade naquela época: a guerra, as possibilidades de um exército de voluntários, as desordens nas cidades, as leis decadentes. "O fato dele haver escrito Underworld Figures veio à tona, e eles ficaram... "impressionados pelo escritor", foi como disse Jane. Três deles já o tinham lido, mas é fora de dúvida que o outro não perderia muito tempo, antes de correr para a biblioteca. O escritor riu e assentiu. Já passara por isso também. – Assim – prosseguiu o editor – deixaremos Reg Thorpe e sua esposa apenas por um momento, sem energia elétrica, porém mais felizes do que nunca... – Ainda bem que ele não possuía uma máquina de escrever IBM – disse o agente – e voltaremos ao Senhor Editor. Duas semanas passaram. O verão chegava ao fim. O Senhor Editor tinha, é claro, recaído na bebedeira várias vezes, mas em geral conseguia permanecer bastante respeitável. Os dias sucederam-se. Em Cabo Kennedy, estavam prontos para colocar um homem na Lua. O novo exemplar de Logan's, com John Lindsay na capa, já estava à venda. mas vendendo miseravelmente, como de costume. Eu havia apresentado um pedido para compra de um conto chamado "A Balada do Projétil Flexível", da autoria de Reg Thorpe, direitos para a primeira série, publicação proposta para janeiro de 1970 e preço proposto de compra 800 dólares, que era o padrão, para uma história principal na Logan's. "Recebi uma chamada de meu superior, Jim Dohegan. Eu poderia subir para falar com ele? Trotei até seu gabinete às dez da manhã, com minha melhor aparência e sentido-me ótimo. Só mais tarde, ocorreu-me que Janey Morrison, secretária dele, parecia com cara de velório. "Sentei-me e perguntei a Jim o que podia fazer por ele ou vice-versa. Evidentemente, estava com o nome de Reg Thorpe na cabeça; ter sua história era um tremendo sucesso para Logan's e desconfiei que havia algumas felicitações a caminho. Assim, podem imaginar qual o meu aturdimento, quando ele empurrou duas ordens de compra sobre a mesa, em minha direção. A história de Thorpe e uma novela de John Updike, que havíamos programado como a ficção principal para fevereiro. A palavra DEVOLUÇÃO tinha sido carimbada em ambas. "Olhei para as ordens de compra revogadas. Olhei para Jimmy. Não conseguia entender nada. De fato, não conseguia pôr meu cérebro em funcionamento para desvendar aquilo. Havia um bloqueio interno. Olhei em torno e vi sua placa elétrica. Janey a levava todas as manhãs, quando vinha trabalhar, e então ligava a placa, a fim de que Jimmy tivesse café fresco, sempre que quisesse. Aquele tinha sido um rigoroso costume na Logan's, durante três anos ou mais. E, naquela manhã, eu só conseguia pensar era, se aquela coisa estivesse desligada, eu poderia raciocinar. Sei que, se aquela coisa estivesse desligada, eu compreenderia esta questão. "Perguntei, "O que significa isto, Jim?" "Lamento como o diabo ter que dizer-lhe isto, Henry", respondeu ele, "mas Logan's não estará mais publicando trabalhos de ficção em janeiro de 1970." O editor fez uma pausa para acender um cigarro, mas seu maço estava vazio. – Alguém tem um cigarro? – perguntou. A esposa do escritor passou-lhe um maço de Salem. – Obrigado, Meg. Ele acendeu o cigarro, jogou fora o fósforo e aspirou profundamente. A brasa brilhou maciamente no escuro. – Bem – disse ele – Jim deve ter pensado que eu estava doido. Perguntei a ele, "Você se importa?" e então, inclinando-me, puxei fora a tomada de aquecimento de sua placa elétrica. "Ele ficou boquiaberto. "Diabo, o que há, Henry?" perguntou. "Sinto dificuldades em pensar com uma coisa dessas ligada", respondi. "Dá interferência". E parecia ser isso mesmo, porque sem a tomada na parede, eu conseguia encarar a situação com muito maior clareza. "Quer dizer que me mandam embora?" perguntei a ele. "Não sei", respondeu ele. "Isso é com San e a diretoria. Sinceramente, não sei de nada, Henry". "Havia muitas coisas que eu podia ter dito. Acho que Jimmy esperava uma súplica ardente por meu emprego. Sabem aquele dito, "Ele estava no mato sem cachorro"?... Pois eu digo que só compreenderão o sentido desta frase, quando forem chefes de um departamento subitamente nãoexistente. "Contudo, não supliquei por minha causa ou pela causa da ficção na Logan's. Minha súplica foi pela história de Reg Thorpe. Primeiro, falei que poderíamos dar-lhe outra programação – colocá-la no número de dezembro. "Ora, vamos, Henry", disse Jimmy. "O número de dezembro já está fechado e você sabe. Além do mais, aqui estamos lidando com dez mil palavras!" "Nove mil e oitocentas", falei. "Mais uma página inteira com ilustração", disse ele. "Esqueça". "Bem, tiramos a ilustração", argumentei. "Ouça, Jimmy, esta é uma grande história, talvez a melhor ficção que já tivemos, nos últimos cinco anos". "Eu a li, Henry", disse Jimmy. "Sei que é uma grande história. Contudo, não podemos publicá-la. Não em dezembro. É o mês do Natal, pelo amor de Deus! Você quer inserir uma história sobre um sujeito que mata a esposa e a filha, debaixo das árvores de Natal da América? Ora, você deve estar..." Ele se interrompeu, mas vi o olhar que lançou para sua placa elétrica. Era o mesmo que ter dito em voz alta, entendem? O escritor assentiu lentamente, seus olhos nunca se afastando da sombra escura que era o rosto do editor. "Comecei a ficar com dor de cabeça. Primeiro, apenas uma dorzinha. Foi ficando mais difícil concentrar as idéias. Recordei que Janey Morrison tinha um apontador elétrico para lápis em sua mesa. Havia todas aquelas lâmpadas fluorescentes no gabinete de Jim... Os aquecedores... As máquinas de venda automáticas na concessão, no final do corredor... Se parasse para pensar nisso, concluiria que todo o maldito edifício funcionava à base de eletricidade; era um milagre que alguém conseguisse fazer qualquer coisa. Foi quando a idéia começou a imiscuir-se, imagino. A idéia de que a Logan's ia quebrar, porque ninguém podia pensar direito. E o motivo de não se poder pensar direito, era porque estávamos todos trabalhando juntos naquele arranha-céu funcionando eletricamente. Nossas ondas cerebrais estavam em total confusão.. Lembro-me de haver pensado que se um médico aparecesse lá com um desses aparelhos EEG, obteria alguns gráficos incrivelmente estranhos. Repletos daquelas enormes e agudas ondas alfa, que caracterizam tumores malignos no cérebro anterior. "Só pensar nessas coisas, aumentava minha dor de cabeça. Contudo, fiz mais uma tentativa. Perguntei-lhe se, pelo menos, falaria com Sam Vadar, o editor-chefe, para deixar a história sair no número de janeiro. Como a ficção de encerramento na revista, se preciso fosse. O último conto a ser publicado na Logan's. "Jimmy brincava com um lápis e assentiu. Disse, "Tratarei do assunto, mas nada posso garantir. Temos a história de um novelista de um só livro e a história de John Updike, também muito boa... talvez até melhor... e..." "A história de Updike não é melhor!" – exclamei. "Ora, Henry, por favor, não precisa gritar..." "Eu não estou gritando!" – gritei. "Ele ficou um tempão olhando para mim. Minha dor de cabeça estava lancinante, àquele momento. Eu podia ouvir o zumbido das lâmpadas fluorescentes. Eram como um punhado de moscas, capturadas em uma garrafa. Um som francamente odioso. Pensei então que podia ouvir Janey usando seu apontador elétrico. Estão, jazendo isso de propósito, imaginei. Querem confundir-me. Sabem que não posso concatenar as idéias e falar com clareza, enquanto essas coisas estiverem funcionando, e assim... e assim... "Jim falava algo sobre levar o assunto à próxima reunião editorial, sugerindo que, em vez de uma data arbitrária para a exclusão de ficção na revista, eles poderiam publicar todas as histórias com que eu já me comprometera verbalmente... embora... "Levantei-me, cruzei a sala e apaguei as luzes "Por que fez isso?" perguntou Jimmy. "Você sabe porquê" respondi. "Devia sair daqui, Jimmy, antes que nada mais reste de você!" "Ele se levantou e caminhou para mim. "Acho que devia tirar uma folga pelo resto do dia, Henry", disse. "Vá para casa. Descanse. Sei que tem vivido sob tensão ultimamente. Fique sabendo que farei o melhor ao meu alcance quanto a este assunto. Lamento tanto quanto você... bem, quase tanto quanto você. Contudo, devia ir para casa, pôr os pés para o alto e ver um pouco de televisão." "Televisão!" repeti, e dei uma risada. Era a coisa mais engraçada que já ouvira. "Ouça Jimmy, quero que diga algo mais a Sam Vadar em meu nome." "O que é, Henry?" "Diga a ele que está precisando de um Fornit. Ele e toda a equipe. Um Fornit? Não. Uma dúzia deles." "Um Fornit", assentiu Jimmy" Está bem, Henry. Fique certo de que direi isso a ele". "Minha dor de cabeça era terrível. Eu mal conseguia enxergar. Em alguma parte, no fundo de minha mente, eu já me perguntava como dar a notícia a Reg e gostaria de saber como ele aceitaria isso. "Eu mesmo providenciarei o pedido de compra, se descobrir a quem enviá-lo", falei. "Reg talvez tenha algumas idéias. Uma dúzia de Fornits. Seriam postos limpando este lugar, com fornus, de ponta a ponta. A maldita energia elétrica seria desligada, toda ela". Eu caminhava pelo gabinete de Jimmy e ele olhava para mim, boquiaberto. "Devem cortar toda a energia elétrica, Jimmy, diga a eles que façam isso. Diga isso a Sam. Ninguém consegue pensar direito, com toda essa interferência elétrica, estou certo?" "Você está certo, Henry, cem por cento certo. Agora, vá para casa e descanse um pouco, está bem? Tire uma soneca ou coisa assim." "Ah, os Fornits, sabe? Eles não gostam de toda essa interferência. Radium, eletricidade, é tudo a mesma coisa. Alimente-os com salsichão. Bolo. Manteiga de amendoim. Podemos conseguir requisições para essa compra?" Minha dor de cabeça era como uma bola negra de dor, por trás dos olhos. Eu via dois Jimmy, tudo em duplicata. Então, de repente, senti necessidade de um drinque. Se não havia fornus e se o lado racional de minha mente afirmava que não havia, então um drinque era a única coisa no mundo que me deixaria bem. "Claro, podemos conseguir as requisições", disse ele. "Não acredita em nada disto, não é, Jimmy?" perguntei. "É claro que acredito. Está tudo bem. Agora,. vá para casa e procure descansar um pouco." "Você não está acreditando", insisti, "mas talvez passe a acreditar, quando este circo for à falência. Como, em nome de Deus, julga que está tomando decisões racionais, se fica sentado a menos de quinze metros de um punhado de máquinas de Coca, máquinas de doces e máquinas de sanduíches" Foi quando tive um pensamento realmente terrível. "E um forno de microondas!" gritei para ele. "Elas tem um, forno de microondas embutido, para esquentar os sanduíches!" Ele começou a dizer qualquer coisa, mas não lhe prestei muita atenção. Corri para fora. A idéia daquele forno de microondas explicava tudo. Eu tinha que ir embora dali. Era isso que tornava a minha dor de cabeça tão terrível. Recordo que vi Janey e Kate Younger, do departamento de anúncios, bem como Mert Strong, da publicidade, no gabinete externo, todas me fitando de olhos esbugalhados. Deviam ter-me ouvido gritar. Meu gabinete ficava logo no andar de baixo. Fui pela escada. Entrei em minha sala, apaguei todas as luzes e peguei minha pasta. Fui de elevador até o saguão do prédio, coloquei a pasta entre meus pés e enfiei os dedos nos ouvidos. Também recordo que as outras três ou quatro pessoas que estavam no elevador, olhavam para mim com estranheza. – O editor deu uma risadinha seca. Estavam com medo. Por assim dizer. Se estivessem confinados em uma pequena caixa móvel, em companhia de um louco óbvio, vocês também teriam medo. – Oh, sem dúvida! Esta foi um pouco forte – comentou a esposa do agente. – Nem tanto. A loucura tem que começar em algum lugar. Se esta é uma história sobre qualquer coisa – se os eventos na vida de uma pessoa podem ser considerados como sendo sobre qualquer coisa – então esta é uma história sobre a gênese da insanidade. A loucura tem que começar em algum lugar e também tem que ir para algum lugar. Como uma estrada. Ou um projétil, do cano de uma arma. Eu ainda estava quilômetros atrás de Reg Thorpe, mas me encontrava a caminho. Podem apostar. "Eu tinha que ir para algum lugar, portanto, dirigi-me ao Four Fathers, um bar na Rua 49. Recordo ter escolhido especificamente esse bar, porque lá não havia vitrola automática, televisão a cores ou luzes em demasia. Lembro-me de ter pedido o primeiro drinque. Depois disso, não consigo recordar mais nada, até acordar no dia seguinte, em casa, na minha cama. Havia vômito no chão e uma enorme queimadura de cigarro no lençol que me cobria. Em meu estupor, aparentemente eu escapara da morte por dois meios extremamente desagradáveis – asfixiado ou queimado. Aliás, acho que não chegaria a sentir nenhum dos dois. – Céus! – exclamou o agente, quase com respeito. – Foi um blackout – disse o editor. – O primeiro real e legítimo blackout de minha vida – mas eles são sempre um sinal do fim e a gente nunca passa por muitos. De um modo ou de outro, nunca há muitos. Contudo, um alcoólatra lhes dirá que um blackout não é o mesmo que ficar inconsciente. Se fosse, muitos problemas seriam evitados. Quando um alcoólatra entra em blackout, ele continua fazendo coisas. Um alcoólatra em blackout é um demoninho em atividade. Uma espécie de Fornit maligno. Ele liga para a ex-esposa e diz-lhe horrores ao telefone, quando não dirige seu carro pelo lado errado no pedágio, acabando por arrasar outro carro, lotado de garotada. Ele abandona o emprego, rouba um supermercado, desfaz-se da aliança de casamento. São demoninhos ativos. "Aparentemente, o que eu fiz, foi ir para casa e escrever uma carta. Só que não era dirigida a Reg. Era para mim mesmo. E eu não a escrevi – pelo menos, segundo a carta, não fui eu". – Quem a escreveu? – perguntou a esposa do escritor. – Bellis. – E quem é Bellis? – O Fornit dele – respondeu o escritor, quase alheadamente, com olhar sombrio e distante. – Exato – disse o editor. Não parecia nem um pouco surpreso. A seguir, repetiu a carta para seus ouvintes, novamente ao doce ar da noite, acentuando com o dedo os pontos adequados. – Olá, da parte de Bellis. Sinto muito por seus problemas, meu amigo, porém gostaria de indicar, desde o princípio, que você não é o único a tê-los. Esta não é uma tarefa fácil para mim. Posso limpar sua máquina com fornus, de agora até a eternidade, porém supõe-se que movimentar as TECLAS seja responsabilidade sua. PARA isso é que Deus fez as pessoas em tamanho grande. Assim, solidarizo-me com você, mas é tudo que posso fazer. "Compreendo sua preocupação com respeito a Reg Thorpe. Eu não me preocuparia com ele, mas com Rackne, meu irmão. Thorpe fica preocupado com o que lhe acontecerá, se Rackne for embora, mas somente por ser egoísta. A maldição de servir-se a escritores, é serem todos eles egoístas. Ele não se preocupa com o que acontecerá a Rackne, se THORPE for embora. Ou se for el bonzo seco. Parece que tais coisas jamais cruzaram sua mente, oh, tão sensível. Contudo, felizmente para nós, todos os nossos infortunados problemas têm a mesma solução a curto prazo, de modo que estendo meus braços e meu diminuto corpo para dá-los a você, meu embriagado amigo. VOCÊ pode querer saber sobre soluções a longo prazo; eu lhe garanto que não existem. Todos os ferimentos são mortais. Aceite o que lhe é dado. Por vezes, você fica um pouco bambo na corda, porém ela sempre tem um fim. Abençoe a corda bamba e não desperdice respiração, xingando a queda. Um coração agradecido sabe que, no fim, todos balançamos. "Você deve pagar-lhe a história, de seu bolso, mas não com um cheque pessoal." Os problemas mentais de Thorpe são sérios, talvez perigosos, porém isto, de maneira alguma, indica burrice. Neste ponto, o editor soletrou a palavra: b-u-r-r-i-c-e. Então, prosseguiu: – Se você enviar-lhe um cheque personalizado, a loucura dele explodirá, em uns nove segundos. "Saque oitocentos e poucos dólares de sua conta bancária e faça seu banco abrir uma nova conta para você, em nome de Arvin Publishing, Inc. Faça-os compreender que precisa de cheques com aparência comercial – nada de cães de luxo ou vistas de canyons neles. Encontre um amigo, alguém de sua confiança, e o coloque como co-sacador. Assim que estiver de posse do talonário, preencha um cheque com oitocentos dólares e peça a essa outra pessoa que o assine. Então, envie o cheque a Reg Thorpe. Isso deixará você a coberto, futuramente. "Encerro e desligo." Estava assinado "Bellis". Não em holograma. Datilografado. – Minha nossa! – exclamou o escritor. – Quando levantei, a primeira coisa que notei foi a máquina de escrever. Parecia que alguém a caracterizara, como máquina de escrever-fantasma, em algum filme barato. Na véspera, ela havia sido uma Underwood negro-escritório. Ao levantar-me – com uma cabeça que parecia do tamanho de Dakota do Norte ela estava de um tom acinzentado. As últimas frases da carta estavam atropeladas e desbotadas. Dei uma espiada e imaginei que minha fiel e antiga Underwood chegara ao fim da linha, com toda a certeza. Provei algo na boca e fui até a cozinha. Havia um saco de açúcar de confeiteiro aberto, em cima do balcão, com uma concha em seu interior. Também havia açúcar de confeiteiro espalhado por todo canto, entre a cozinha e o pequeno aposento onde eu trabalhava, naquela época. – Você alimentava seu Fornit – disse o escritor. – Bellis gostava de coisas doces. Pelo menos, você assim pensou. – Sem dúvida. No entanto, embora indisposto e de ressaca como me encontrava, eu sabia perfeitamente quem era o Fornit. O editor enumerou nos dedos. – Primeiro, Bellis era o sobrenome de solteira de minha mãe. "Segundo, aquela frase, el bonzo seco. Era uma frase particular que eu e meu irmão costumávamos usar, com o significado de loucura. Quando éramos crianças. "Terceiro, e mais execrável, foi a escrita da palavra "burrice". Trata-se de uma palavra que geralmente escrevo errada. Certa vez, tive um escritor gritantemente letrado, que costumava escrever "refridgerador", com um d – em vez de "refrigerador" – pouco importando quantas vezes os revisores o corrigissem. Esse mesmo sujeito, diplomado em Princeton, sempre escrevia "sombrancelha", em vez de "sobrancelha". A esposa do escritor deu uma risada súbita – tanto embaraçada, como alegre. – Eu faço isso – disse ela. – Tudo quanto quero dizer é que os erros ortográficos de um homem – ou de uma mulher – são suas impressões digitais literárias. Perguntem a qualquer copydesk que tenha revisado algumas vezes trabalhos do mesmo escritor. "Não, Bellis era eu e eu era Bellis. No entanto, seu conselho era infernalmente bom. De fato, achei-o um grande conselho. Contudo, aqui vai algo mais, o subconsciente deixa suas impressões digitais, mas lá embaixo também existe um ser estranho. Um diabo de sujeito esquisito, que entende um diabo de coisas. Eu jamais vira aquele termo "co-sacador", apesar de todo o meu conhecimento... mas lá estava ele, era muito bom e, tempos depois, fiquei sabendo que realmente os bancos o usam. "Peguei o fone, a fim de ligar para um amigo, e então senti aquela pontada de dor – incrível! – varando-me a cabeça. Pensei em Red Thorpe, em seu radium e tornei a colocar precipitadamente o fone no gancho. Procurei esse amigo pessoalmente, após tomar uma ducha, fazer a barba e examinarme umas nove vezes ao espelho, para ter certeza de que minha aparência correspondia aproximadamente à de um ser humano racional, como se presume que seja. Ainda assim, fiz-me um monte de perguntas e vigiei-me intimamente. Creio serem bem poucos os indícios que uma ducha, barba feita e uma boa dose de Listerine não consigam esconder. Esse amigo não era do meu ramo, o que já significava algo. As notícias costumam voar, como sabem. Nos negócios. Por assim dizer. Aliás, se ele fosse do ramo, saberia que Arvin Publishing, Inc., era responsável pela Logan's e gostaria de saber que tipo de tramóia eu estava querendo armar. Como era alheio à atividade, nada perguntou e pude falar-lhe de um empreendimento de auto-editoração em que estava interessado, uma vez que, aparentemente, a Logan's decidira eliminar o departamento de ficção. – Ele perguntou por que lhe dava o nome de Arvin Publishing? – quis saber o escritor. – Perguntou. – E o que você respondeu? – Respondi – disse o editor, com um sorriso frio – que Arvin era o sobrenome de solteira de minha mãe. Houve uma breve pausa e depois o editor recomeçou a falar. Então, falou até o fim, quase sem ser interrompido. – Assim, comecei a esperar pelos cheques impressos, dos quais desejava exatamente um. Para passar o tempo, eu me exercitava. Sabem como é – levantar o copo, flexionar o cotovelo, esvaziar o copo, flexionar o cotovelo novamente. Até que, por fim, o exercício nos cansa e acabamos caindo para diante, com a cabeça em cima da mesa. Aconteceram outras coisas, mas estas eram as únicas que realmente me ocupavam a mente – a espera e o flexionamento. Que me recorde, aliás. Devo acentuar isto, porque eu estava bêbado a maior parte do tempo e então, para cada coisa que recorde, devem existir talvez cinqüenta ou sessenta que nem me passam pela cabeça. "Deixei o emprego – o que provocou um suspiro de alívio geral, disto estou certo. Um suspiro deles, porque não precisaram executar a tarefa existencial de me demitirem por loucura, de um departamento não mais em existência; um suspiro meu, porque eu achava que não conseguiria enfrentar novamente aquele edifício – o elevador, as lâmpadas fluorescentes, os telefones, a idéia de tudo quanto recebia eletricidade. "Escrevi a Reg Thorpe e sua esposa duas cartas, uma a cada um, durante aquele período de três semanas. Lembro-me de ter escrito a dela, mas não a dele – como aconteceu com a carta de Bellis, escrevi aquelas em momentos de blackocct. Contudo, eu revertia a meus velhos hábitos de trabalho quando estava alto, assim como persistia em minha velha ortografia errada. Nunca deixava de usar um carbono... e quando chegava a manhã seguinte, as cópias a carbono estavam por ali. Era como ler cartas de um estranho. "Não que as cartas fossem loucas. De maneira alguma. Aquela que terminei com o P.S. sobre o liquidificador, foi muito pior. Aquelas cartas pareciam... quase racionais. Ele parou e meneou a cabeça, lenta e cansadamente. – Pobre Jane Thorpe! Não que as coisas parecessem tão ruins no final. Ela deve ter achado que o editor de seu marido estava fazendo um altamente especializado – e humano – trabalho, ao ser indulgente com ele, arrancando-o de uma depressão cada vez mais funda. Provavelmente já tivesse ocorrido a ela a questão de ser ou não uma boa idéia alguém mostrar-se indulgente com uma pessoa que está acalentando todo o tipo de fantasias paranóicas – fantasias que, em um caso, quase levaram ao real assalto contra uma menininha. Se ocorreu, então ela preferiu ignorar os aspectos negativos, uma vez que também estava sendo indulgente com o marido. Jamais a censurei por isso – Thorpe não era apenas um ticket para refeição, alguma mula velha que precisava ser trabalhada e paparicada, trabalhada e paparicada, até estar pronta para o matadouro; acontece que ela amava o cara. À sua maneira, Jane Thorpe era uma grande dama. Assim, após ter vivido com Reg desde os Primeiros Tempos aos Altos Tempos e finalmente aos Loucos Tempos, creio que ela concordaria com Bellis, ao abençoar a corda bamba, sem desperdiçar a respiração xingando a queda. Naturalmente, quanto mais bambos nos sentimos, mais difícil se torna equilibrar-nos, quando afinal chega o fim... mas mesmo aquele rápido equilíbrio pode ser uma bênção, admito – pois quem prefere cair? "Naquele curto período, recebi respostas de ambos – cartas extraordinariamente otimistas... embora houvesse uma qualidade estranha e quase final naquele otimismo. Era como se... bem, esqueçamos a filosofia barata. Se eu conseguir atinar com o significado, falarei. Deixemos isso por ora. "Reg passou a jogar cartas com os rapazes vizinhos, todas as noites. Quando as folhas começaram a cair, eles achavam que Reg Thorpe era o próprio Deus, baixado à terra. Se não jogavam cartas ou disputavam uma partida de Frisbee, discutiam literatura, com Reg animando-os delicadamente em seus passos futuros. Ele arranjara um cachorrinho no abrigo de animais local e passeava com ele, de manhã e à noite, enquanto isso conhecendo outros moradores do quarteirão, como acontece conosco, se levamos nosso cão a passeio. Quem decidira que os Thorpe eram pessoas peculiares, agora começava a pensar diferente. Quando Jane sugeriu que, sem aparelhagem elétrica ela poderia usar os serviços de uma faxineira, Reg concordou imediatamente. Ela ficou pasma ante o jovial assentimento dele. Não se tratava de uma questão de dinheiro – após Undenworld Figures, eles nadavam no ouro – tratava-se deles, deduziu Jane. Eles estavam em toda parte, tal era o decreto de Reg, e que melhor agente para eles do que uma faxineira, que andava por todos os cantos da casa, espiava debaixo das camas e armários, talvez até dentro das gavetas também, caso elas não estivessem trancadas e depois fixadas com pregos, por medida de segurança? "Contudo, ele lhe disse que contratasse a mulher, acrescentou que se sentia um sujeito insensível, por não haver pensado nisso mais cedo, mesmo embora ela insistiu em contar-me o detalhe – Reg estivesse fazendo a maioria dos serviços pesados, como a lavagem de roupa, por exemplo. Reg só impunha uma pequena condição: que a faxineira não tivesse permissão de entrar em seu estúdio. "O melhor de tudo, o mais encorajador, na opinião de Jane, era o fato de que seu marido voltara a trabalhar, agora em um novo romance. Ela lera os três primeiros capítulos e os considerara maravilhosos. Tudo isto, segundo me escreveu, começara quando eu havia aceito "A Balada do Projétil Flexível" para a Logan's – o período anterior, que havia sido de maré muito baixa. E ela me abençoava por isso. "Estou certo de que o agradecimento de Jane era sincero, embora sua gratidão não parecesse conter muito calor e o otimismo de sua carta se mostrasse algo turvo – pronto, voltamos novamente a isso. Naquela carta, seu otimismo assemelhava-se a um dia ensolarado, mas com aquelas nuvens de bordas carregadas, prenunciando um temporal para breve. "Todas essas boas notícias – jogos de cartas, o cachorro e a faxineira, além do novo romance – e, no entanto, ela era inteligente demais para acreditar que o marido estivesse ficando bom novamente... ou assim acreditei, apesar de em meu próprio fog, Reg viera exibindo sintomas de psicose. A psicose é como câncer pulmonar, em um sentido – nenhum dos dois se cura espontaneamente, embora tanto os pacientes de câncer como os lunáticos possam ter seus bons dias. "Pode me dar outro cigarro, querida? A esposa do escritor deu-lhe o cigarro. – Afinal de contas – prosseguiu o editor, puxando seu isqueiro Ronson, os sinais da idéia fixa do marido estavam por toda parte, em volta dela. Nada de telefone; nada de eletricidade. Ele afixara plástico de embalar em todas as placas de interruptores. Continuava colocando comida na máquina de escrever, tão regularmente, como a punha no prato de seu novo cãozinho. Os universitários que moravam ao lado o julgavam um grande sujeito, mas não o viam calçar luvas de borracha para recolher o jornal no alpendre pela manhã, devido a seus temores sobre a radiação. Eles não o ouviam gemer enquanto dormia e nem tinham que consolá-lo, quando ele acordava gritando, com terríveis pesadelos que não conseguia recordar. "Você, minha querida – disse ele, virando-se para a esposa do escritor –, deve estar-se perguntando por que Jane continuou em companhia do marido. Embora não tenha dito em palavras, a idéias está em sua mente, não? Ela assentiu. – Exato. E não pretendo oferecer uma longa tese motivacional – a coisa conveniente sobre histórias reais, é que só precisamos dizer – foi assim que aconteceu, deixando que os outros se preocupem sobre o motivo. Em geral, ninguém jamais sabe por que coisas acontecem... em particular as pessoas que dizem saber. "Em termos de Jane Thorpe, no entanto, relativamente à sua percepção seletiva, tinham acontecido coisas que eram um bocado boas. Contratou uma mulher negra de meia-idade para fazer a faxina e se dispôs a explicar-lhe francamente as idiosincrasias do marido. A mulher, de nome Gertrude Rulin, riu e disse que estava acostumada a pessoas de hábitos bastante estranhos: Jane passou a primeira semana do serviço de Gertrude mais ou menos como se sentiu durante aquela primeira visita aos vizinhos jovens do lado – esperando alguma explosão de loucura. Contudo, Reg encantou a faxineira tão completamente como encantara os rapazes, conversando sobre o trabalho dela na igreja, seu marido e o filho caçula, Jimmy que, segundo Gertrude, fazia Dennis o Terrível, parecer o próprio tédio no primeiro grau escolar. Gertrude tinha onze filhos ao todo, mas havia um espaço de nove anos entre Jimmy e o anterior. Esse filho temporão lhe tornava a vida dura. "Reg parecia estar indo bem... pelo menos, olhando-se as coisas de uma certa forma. Contudo, estava tão louco como sempre, é claro, o que também acontecia comigo. A loucura bem pode ser uma espécie de projétil flexível, mas qualquer perito em balística que entenda do ofício, dirá que duas balas jamais são iguais. A carta de Reg para mim falava ligeiramente sobre seu novo romance, para então passar de imediato para os Fornits. Os Fornits em geral, Rackne em particular. Ele especulava sobre se eles realmente queriam matar Fornits ou – achava mais provável – capturá-los vivos e estudá-los. Fechava a carta, dizendo, "Tanto meu apetite como minha visão de vida melhoraram imensuravelmente depois que começamos nossa correspondência, Henry. Fico-lhe muito grato. Afetuosamente, Reg" Um P.S. mais abaixo, perguntava casualmente se fora designado algum ilustrador para sua história. Aquilo me provocou uma ou duas pontadas de culpa, bem como uma rápida viagem ao armário de bebidas. "Reg envolvia-se com os Fornits; eu com o álcool. "Minha carta de resposta mencionava os Fornits apenas de passagem – a esta altura, eu estava realmente paparicando o homem, pelo menos nessa questão; um elfo com o sobrenome de solteira de minha mãe e meus hábitos pessoais de errar na ortografia estavam pouco me importando. "O que passara a interessar-me, cada vez mais e mais, era o tema da eletricidade, microondas, ondas radiofônicas e interferência do rádio irradiando-se de pequenos aparelhos eletrodomésticos, bem como um baixo nível de radiação e só Deus sabe o que mais. Fui à biblioteca e apanhei livros sobre o assunto; comprei livros que falavam nisso também. Neles, havia muita coisa assustadora... e naturalmente, bem aquilo que eu procurava. Tomei providências para que meu telefone fosse desligado e a eletricidade cortada. Isso ajudou durante algum tempo, mas certa noite, quando eu cambaleava na porta, bêbado, com uma garrafa de Black Velvet em uma das mãos, a outra mão enfiada no bolso do sobretudo, vi aquele olhinho vermelho no teto, espiando para mim. Céus, por um minuto, pensei que ia ter um ataque cardíaco. A princípio, ele parecia um besouro... um grande besouro escuro, com um olho cintilante. "Eu tinha uma lanterna Coleman, a gás, e a acendi. Imediatamente vi o que era. Só que, em vez de ficar aliviado, aquilo me deixou pior. Assim que dei uma boa espiada na coisa, tive a impressão de que podia sentir vastos e nítidos acessos de dor varando-me a cabeça – como ondas de rádio. Por um momento, foi como se meus olhos houvessem girado nas órbitas, de maneira a permitirem que eu olhasse meu próprio cérebro e, lá dentro, visse células soltando fumaça, ficando negras, morrendo. Era um detector de fumaça – um dispositivo ainda mais recente do que os fornos de microondas, em 1969. "Saí precipitadamente do apartamento e fui até o térreo – eu morava no quinto andar, mas então estava sempre usando as escadas – e martelei a porta do zelador. Disse-lhe que queria aquela coisa fora de minha casa, queria-a fora de lá em seguida, queria-a fora de lá ainda aquela noite, queria-a fora de lá dentro de uma hora. Ele me fitou como se me julgasse absolutamente pirado – perdoem-me a expressão – bonzo seco, e hoje posso compreender aquilo. Aquele detector de fumaça deveria fazer com que me sentisse bem, presumia-se que me daria segurança. Hoje, é claro, eles são previstos em lei, mas então constituíam um Grande Avanço, pago pela associação de moradores do prédio. "O zelador o removeu – não demorou muito – mas não me perdia de vista e, em certa forma limitada, eu podia entender o que sentia. Eu precisava barbear-me, fedia a uísque, tinha os cabelos grudados à cabeça e meu sobretudo estava sujo. Ele certamente sabia que eu não estava mais trabalhando; que minha televisão fora levada embora; que meu telefone e a energia elétrica haviam sido voluntariamente cortados. O zelador me considerava louco. "Posso ter estado louco mas – como Reg – não era burro. Apelei para o charme. Editores precisam ter uma certa dose de charme, compreendam. Então, azeitei a situação que parecia lamentável, com uma nota de dez dólares. Por fim, fui capaz de ajeitar as coisas, mas da maneira como todos olhavam para mim, nas duas semanas seguintes – minhas duas últimas semanas no prédio – a história sem dúvida viajou. O fato de nenhum membro da associação dos moradores procurar-me, desgostoso com minha atitude ingrata, era particularmente revelador. Talvez pensassem que eu poderia atacá-los com uma faca de carne. "De qualquer modo, naquela noite tudo isso era de menos em meus pensamentos. Sentei-me à luz da lanterna Coleman, a única luz nos três aposentos, excetuando-se toda a eletricidade que, em Manhattan, passava pelas janelas. Eu tinha uma garrafa na mão e um cigarro na outra. Fiquei olhando para a chapa no teto, onde estivera o detector de fumaça com seu único olho vermelho – um olho tão imperceptível à luz do dia, que eu nem o notara. Considerei o fato inegável de que, embora estivesse com toda a energia elétrica desligada em meu apartamento, existira aquele ítem isolado e vivo... e onde havia um, poderia haver outros. "Mesmo não havendo, todo o edifício pululava de fios – tinha tantos fios, como as células malignas e os órgãos deteriorados enchendo o organismo de um moribundo de câncer. Fechando os olhos, eu podia ver todos eles na escuridão de seus condutos, cintilando com uma espécie de luz verde inferior. E, mais além, a cidade inteira. Um fio, quase inofensivo em si, ligado a um interruptor... o fio além do interruptor, um pouco mais grosso, levando ao porão, através de um conduto, onde se unia a outro fio ainda mais grosso... este internando-se debaixo da rua, até um volumoso punhado de fios, estes últimos tão grossos, que em realidade eram cabos. "Quando recebi a carta de Jane Thope, falando no plástico de embalar, parte de minha mente reconhecia que ela encarava isso como um sinal da loucura de Reg – e essa parte sabia que eu teria de reagir como se toda a minha mente a julgasse com razão. A outra parte de minha mente – de longe agora a preponderante – pensou: "Que idéia maravilhosa!" e então cobri todas as chapas de interruptores do apartamento da mesma forma que Reg havia feito, já no dia seguinte. Lembre-se, eu era o homem que, supostamente; estava ajudando Reg Thorpe. De um modo um tanto desesperador, chega a ser muito engraçado. "Naquela noite, decidi ir embora de Manhattan. Havia uma velha casa da família, nas Adirondacks, para onde eu poderia ir. A idéia pareceu excelente. A única coisa que me mantinha na cidade, era a história de Reg Thorpe. Se "A Balada do Projétil Flexível" era o salva-vidas de Reg em um mar de loucura, também era o meu – eu queria inserir aquela história em uma boa revista. Feito isto, que tudo se danasse. "Foi onde parou a não-tão-famosa correspondência Wilson-Thorpe, pouco antes de tudo ir por água abaixo. Éramos como dois agonizantes viciados em drogas, comparando os méritos relativos da heroína e das anfetaminas. Reg tinha Fornits em sua máquina de escrever. Eu tinha Fornits nas paredes e ambos tínhamos Fornits em nossas cabeças. "Ainda havia eles. Não esqueçam: eles. Não fazia muito tempo que eu andava oferecendo a história, quando decidi que eles incluíam todos os editores de ficção das revistas em Nova York – embora não existissem muitos, no outono de 1969. Se fossem todos reunidos, poderiam ser mortos com um só cartucho de espingarda, algo que, não demorou muito, comecei a achar uma idéia infernalmente boa. "Foram precisos cinco anos, antes que eu pudesse ver a situação pela perspectiva deles. Eu me indispusera com o zelador, um sujeito que só me via quando o calor era infernal e quando era época de sua gratificação natalina. Quanto aos outros sujeitos... bem, ironicamente, muitos deles eram realmente meus amigos. Na época, Jared Baker era o editor-assistente de ficção na Esquire e ambos havíamos estado na mesma companhia de fuzileiros, na Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Tais sujeitos não ficavam apenas inquietos, após verem o novo e melhorado Henry Wilson. Ficavam abismados. Se eu apenas enviasse a história aos possíveis interessados, com uma carta agradável de apresentação, explicando a situação de qualquer modo, a versão que eu tinha dela – eu talvez houvesse vendido a história de Thorpe quase em seguida. Contudo, oh, de maneira alguma, isso não era o suficiente. Não para aquela história. Eu precisava cuidar para que ela recebesse o tratamento pessoal. Assim, andei de porta em porta com ela, um fedorento e grisalho ex-editor, de mãos trêmulas, olhos vermelhos e uma grande equimose na face esquerda, produto de um choque contra a porta do banheiro, quando ele se encaminhara para o vaso, no escuro, duas noites antes. Eu bem podia estar usando um letreiro com a inscrição FUGITIVO DO HOSPÍCIO. "Eu tampouco queria falar com eles em seus escritórios. De fato, era-me impossível. Há muito se fora o tempo em que podia entrar em um elevador e subir quarenta andares. Assim, eu os encontrava como os traficantes encontram os viciados – em parques, escadas ou, no caso de Jared Baker, em uma casa de hamburgers, na Rua 49. Jared, pelo menos, ficaria satisfeito em pagar-me uma refeição decente, mas já se fora o tempo, vocês compreendem, em que qualquer maitre cioso do nome permitiria minha entrada em um restaurante freqüentado por pessoas do mundo dos negócios. O agente pestanejou. – Recebi promessas negligentes de que a história seria lida, depois perguntas sobre como eu estava, quanto andava bebendo. Recordo – vagamente – haver tentado dizer a uns dois deles que vazamentos de eletricidade e radiação estavam deteriorando o pensamento de todo mundo. Lembro-me também de que quando Andy Rivers, que editava ficção para American Crossings, aconselhou-me a procurar ajuda profissional para meu estado, respondi que era ele quem precisava dessa ajuda. – Vê aquelas pessoas na rua? – perguntei-lhe. Estávamos no Parque Washington Square. Metade delas, talvez até mesmo três quartos delas, têm tumores cerebrais. Eu não lhe venderia a história de Thorpe por nada, Andy. Diabo, você não a entenderia, nesta cidade. Seu cérebro está na cadeira elétrica e você nem sabe disso. "Eu tinha uma cópia da história em minha mão, enrolada com um jornal. Sacudi-a diante do nariz dele, da maneira como se faz com um cão, para que fique ereto em um canto. Depois fui embora. Lembro-me dele gritando para que eu voltasse, qualquer coisa sobre uma xícara de café e conversarmos mais um pouco, mas então passei por uma loja vendendo discos com desconto, seus altofalantes estrondeando heavy metal para a calçada, e filas de luzes fluorescentes, frias como gelo, brilhando no interior. Perdi a voz dele, em uma espécie de profundo zumbido dentro de minha cabeça. Recordo haver pensado duas coisas – eu precisava sair logo da cidade, o mais depressa possível, ou estaria acalentando meu próprio tumor cerebral – e era imperioso tomar um drinque, imediatamente. "Naquela noite, voltando ao meu apartamento, encontrei uma nota debaixo da porta. Dizia "Queremos você fora daqui, seu biruta." Joguei-a fora, sem lhe dar a menor importância. Nós, veteranos em birutice, temos coisas mais importantes a preocupar-nos, do que notas anônimas de inquilinos vizinhos. "Eu refletia no que havia dito a Andy Rivers sobre a história de Reg. Quanto mais pensava nisso – e mais drinques tomava – mais sentido fazia. O "Projétil Flexível" era curioso e, superficialmente, fácil de ser seguido... mas abaixo da superfície era surpreendentemente completo. Estaria eu imaginando que outro editor na cidade conseguiria apreender a história em todos os seus níveis? Talvez outrora, mas eu ainda acharia isso, agora que meus olhos se tinham aberto? Teria eu realmente pensado que havia espaço para apreciação e compreensão, em um local entupido de fios como uma bomba de terrorista? Céus, havia voltagem vazando por todos os lados! "Li o jornal, enquanto ainda havia luz do dia suficiente para isto, procurando esquecer todo o maldito negócio por um momento e, ali, na página um do Times, havia um artigo sobre como o material radiativo de usinas de força nuclear permanece desaparecendo – o artigo prosseguia, teorizando que se houvesse nas mãos certas uma quantidade suficiente desse material, ele podia ser facilmente usado para uma arma nuclear muito suja. "Permaneci sentado à mesa da cozinha enquanto o sol se punha e, em minha mente, podia vê-los batendo pó de plutônio, como os mineiros de 1849 batiam ouro. Apenas, eles não queriam explodir a cidade com aquilo, oh, não! Eles o queriam apenas para salpicá-lo por aí e liquidar a mente de todos. Eles eram os maus Fornits, e toda aquela poeira radioativa era fornus de má-sorte. Os piores fornus de má-sorte de todos os tempos. "Decidi que, afinal de contas, não queria vender a história de Reg – pelo menos, não em Nova York. Saí da cidade, assim que chegaram os cheques que eu pedira. Quando estivesse no interior do estado, poderia começar a enviá-la para as revistas literárias de fora da cidade. Sehanee Review seria um bom lugar para começar, admiti, ou talvez Iowa Review. Eu poderia explicar a Reg mais tarde. Ele compreenderia. Aquilo parecia resolver todo o problema, de modo que tomei um drinque. E o drinque tomou o homem. Por assim dizer. Entrei em blackout. Conforme resultou, só me restava mais um blackout. "No dia seguinte, chegaram os talões de cheques de minha Companhia Arvin. Preenchi um deles a máquina e fui ver meu amigo, o "co-sacador". Houve outro daqueles aborrecidos interrogatórios, mas desta vez, mantive a calma. Eu queria aquela assinatura. Conseguia-a, finalmente. Fui a um estabelecimento que fornecia material impresso e providenciei para que me fizessem papel de correspondência com o timbre da Companhia Arvin, comigo esperando. Carimbei um endereço de retorno em um envelope comercial, datilografei o endereço de Reg (o açúcar de confeiteiro já fora removido de minha máquina de escrever, porém as teclas ainda tinham uma tendência a colar-se umas nas outras) e acrescentei uma breve nota pessoal, dizendo que nenhum cheque a um escritor já me dera mais prazer pessoal... e estava sendo sincero. Isso ainda é verdade. Passou-se quase uma hora, antes que eu me decidisse a pô-lo no correio – simplesmente, não conseguia saber até que ponto ele parecia oficial. Era muito difícil, para um fedorento bêbado, que em cerca de dez dias não trocara a roupa de baixo, chegar a essa vital conclusão. O editor fez uma pausa, esmagou o cigarro no cinzeiro e olhou para seu relógio. Então, curiosamente, como o chefe do trem anunciando que a composição chegou a alguma cidade importante, falou: – Chegamos ao inexplicável. "Este é o ponto de minha história que mais tem interessado aos dois psiquiatras e vários analisadores mentais com quem estive associado nos meus trinta meses de vida seguintes. Foi a única parte que me forçavam a desdizer, como sinal de que eu estava ficando bem. Segundo um deles declarou, "Esta é a única parte de sua história que não pode ser explicada como indução censurável... uma vez, isto é, seu sentido de lógica tenha sido recuperado". Finalmente, eu a desmenti, porque tinha certeza – mesmo eles não tendo – de que estava ficando bem e sentia uma maldita vontade de sair do sanatório. Pensei que se não desse o fora de lá em pouco tempo, acabaria maluco novamente. Assim, voltei atrás – Galileu também fez isso, quando mantiveram seus pés no fogo – mas nunca desmenti nada para mim mesmo. Não afirmo que tenha realmente acontecido o que vou dizer; apenas digo ser a minha crença de que aconteceu. Trata-se de uma pequena qualificação, mas crucial para mim. "Portanto, meus amigos, vamos ao inexplicável: "Levei os dois dias seguintes preparando-me para uma mudança da cidade. Por falar nisso, a idéia de dirigir o carro não me perturbava em absoluto. Quando eu era criança, havia lido que o interior de um carro é um dos lugares mais seguros para ficar-se durante uma tempestade elétrica, já que os pneus de borracha funcionam como isoladores quase perfeitos. Realmente, eu ansiava por entrar em meu velho Chevrolet, levantar os vidros de todas as janelas e rodar para fora daquela cidade, que já começara a considerar um poço de raios. Não obstante, em meus preparativos incluía-se a remoção da lâmpada do teto, cuja tomada seria vedada com plástico de embalagem, além de girar o botão da luz inteiramente para a esquerda, a fim de eliminar a iluminação do painel. "Quando entrei em meu apartamento, pretendendo passar nele a última noite, o lugar estava vazio, exceto pela mesa da cozinha, a cama e minha máquina de escrever no estúdio. Aliás, a máquina estava no chão. Não era minha intenção levá-la comigo – havia demasiadas más associações ligadas a ela e, por outro lado, as teclas iam ficar grudadas para sempre. Que o próximo inquilino fique com ela, pensei – ele e também Bellis. "Era apenas o pôr-do-sol e o lugar tinha uma coloração esquisita. Eu estava totalmente bêbado e tinha outra garrafa no bolso do sobretudo, contra as vigílias noturnas. Passei pelo estúdio, acho que querendo ir até o quarto. Lá eu me sentaria na cama, pensaria sobre fios, eletricidade, radiação livre e beberia, até ficar embriagado o suficiente para dormir. "O que eu chamava de estúdio era, em realidade, a sala de estar. Eu a tornara meu local de trabalho, porque tinha a melhor iluminação de todo o apartamento uma grande janela dando para oeste, parecendo chegar até o horizonte. Era algo próximo do Milagre dos Pães e dos Peixes, em um apartamento de quinto andar em Manhattan, mas a linha de visão lá estava. Eu não a questionava, apreciava-a, apenas. Aquele aposento era cheio de uma límpida, adorável claridade, mesmo nos dias chuvosos. "A qualidade da luz noturna, contudo, era espectral. O sol poente inundara a sala com um clarão avermelhado. Claridade de fornalha. Vazio, o aposento parecia grande demais. Meus calcanhares faziam ecos uniformes, no assoalho de madeira. "A máquina de escrever estava no meio do piso e eu ia apenas passar por ela, quando vi que havia um pedaço rasgado de papel, enfiado debaixo do rolo – o que me sobressaltou, pois sabia que não havia papel algum na máquina, quando saíra da última vez para comprar uma nova garrafa. "Olhei em torno, procurando se havia alguém – algum intruso – ali dentro comigo. Contudo, não era bem em intrusos, assaltantes ou pivetes que eu pensava, mas em... fantasmas. "Notei um espaço rasgado no papel da parede, à esquerda da porta do quarto. Compreendi, então, de onde proviera o papel na máquina de escrever. Alguém havia, simplesmente, arrancado um pedaço do papel de parede. "Eu ainda olhava para aquilo, quando ouvi um único, mas distinto ruído claque! – embora quase imperceptível, atrás de mim. Dei um salto e girei, com o coração em disparada na garganta. Estava aterrorizado, mas sabia perfeitamente que som era aquele – quanto a isso, não havia dúvida nenhuma. A gente trabalha com palavras a vida inteira e conhece bem o som de uma tecla da máquina de escrever batendo contra o papel, mesmo em um quarto vazio ao crepúsculo, onde não há ninguém batendo a tecla. Todos olharam para ele no escuro, as faces como borrados círculos brancos. Ninguém disse nada, mas uns se aproximaram mais dos outros. A esposa do escritor segurava firmemente uma das mãos do marido. – Eu me senti... fora de mim. Irreal. Talvez seja sempre assim que nos sentimos, ao atingirmos o ponto do inexplicável. Caminhei lentamente até a máquina de escrever. Meu coração batia como louco em minha garganta, mas mentalmente eu estava calmo... inclusive, gelado. "Claque! Outra tecla saltou. Desta vez, eu a vi – a tecla ficava na terceira fileira, a partir do topo, do lado esquerdo. "Agachei-me lentamente sobre os joelhos. Então, todos os músculos em minhas pernas ficaram bambos de repente e quase encolhi pelo resto do movimento, até cair sentado diante da máquina de escrever, com meu sujo sobretudo London Fog espalhado à minha volta, como a saia de uma jovem, ao fazer sua mais reverente e profunda mesura. A máquina de escrever emitiu aquele ruído mais duas vezes, rapidamente, pausou, tornou a emiti-lo. Cada claque produzia a mesma espécie de eco surdo que meus pés haviam feito no assoalho. "O papel de parede havia sido colocado no rolo da máquina, de maneira a que a parte com a cola seca ficasse para fora. As letras estavam onduladas e empastadas, mas pude lê-las: rackn, diziam. Depois, houve mais um claque! e a palavra era rackne. "Então... – ele pigarreou e sorriu de leve. – Mesmo após tantos anos, é difícil dizer isto... apenas falar o que houve. Tudo bem. O simples fato, sem qualquer enfeite, é o seguinte: eu vi uma mão saindo da máquina de escrever. Uma mão incrivelmente pequenina. Saiu de entre as teclas B e N, na última fileira, enrolada em si como um punho, para movimentar a barra do espaçamento. A máquina saltou um espaço – muito depressa, como um soluço – e a mão recuou para onde viera. A esposa do agente riu com estridência. – Ria com vontade, Marsha – disse suavemente o agente, e ela riu. As batidas de teclas começaram a soar um pouco mais rápido – prosseguiu o editor – e, após algum tempo, pude ouvir ofegar a criatura que movia as teclas, da maneira como alguém ofega, ao trabalhar duro, chegando mais e mais perto de seu limite físico. Após algum tempo, a máquina mal imprimia alguma coisa. A maioria das teclas se enchera com aquela velha matéria gomosa, mas eu podia ler as letras. Estava escrito Rackne está morr, e então a tecla do e ficou presa à cola. Olhei para aquilo por um momento e então, estirando um dedo, libertei-a. Não sei se a criatura – Bellis – conseguiria libertá-la sozinha. Acho que não. Contudo, eu não queria ver... vê-la... tentar. Apenas a visão daquele pulso já era suficiente para deixar-me à beira do desequilíbrio. Se visse o elfo inteiro, por assim dizer, creio que ficaria realmente louco. E não havia a questão de fugir dali, porque toda a força das pernas me abandonara. "Claque-claque-claque, aqueles diminutos grunhidos e soluços de esforço e, após cada palavra, aquele punho pálido, sujo e oleoso de graxa, saindo entre o B e o N para martelar a barra do espaço. Não sei ao certo quanto isso durou. Sete minutos, talvez. Talvez dez. Ou talvez para sempre. "Por fim, os claques pararam e percebi que não o ouvia mais respirar. Talvez o entezinho houvesse perdido os sentidos... talvez apenas tivesse desistido e ido embora... ou talvez houvesse morrido. Podia ter tido um ataque de coração ou coisa assim. Minha única certeza é de que a mensagem não havia sido completada. Ao todo, ela dizia, em caixa baixa: rackne está morrendo é o garotinho jimmy thorpe que não sabe diga a thorpe que rackne está morrendo garotinho jimmy está matando rackne e... isso era tudo. "Encontrei forças para me firmar nos pés e então saí dali. Caminhei em largas passadas na ponta dos pés, como se a criatura tivesse ido dormir e, se eu tornasse a produzir aqueles ecos surdos no assoalho, ela talvez acordasse, para começar novamente a datilografar... Acho que se isso acontecesse, o primeiro claque me poria gritando. E continuaria gritando, até que meu coração ou a cabeça explodissem. "Meu Chevrolet estava no pátio do estacionamento, no fim da rua, cheio de gasolina, já carregado e pronto para a partida. Coloquei-me atrás do volante, e então recordei a garrafa no bolso do sobretudo. Minhas mãos tremiam tanto, que eu a deixei cair, mas ela aterrou em cima do banco e não se quebrou. "Lembrei-me dos blackouts e, meus amigos, naquele momento exato um blackout era exatamente do que eu precisava – e foi exatamente o que aconteceu. Recordo haver tomado o primeiro e segundo goles do gargalo da garrafa. Recordo ter ligado a chave do carro e depois de ouvir Sinatra no rádio, cantando "That Old Black Magic", o que parecia bem ajustado à situação. Em vista das circunstâncias. Por assim dizer. Lembro-me de ter acompanhado a canção e de beber mais alguns goles. Eu estava na última fila do estacionamento e podia ver a luz do tráfego na esquina, mudando segundo a passagem do tempo. Fiquei pensando naqueles estalidos de teclas na sala vazia e no clarão avermelhado que ia fanando em meu estúdio. Pensei naqueles sons arquejantes, como se algum elfo ginasta houvesse pendurado pesos de linha de pesca nas extremidades da tecla O e fizesse exercícios de levantamento, dentro da minha velha máquina de escrever. Pensei também na superfície áspera do avesso daquele retalho de papel de parede. Minha mente insistiu em querer examinar o que poderia ter acontecido, antes que eu chegasse ao apartamento... insistia em ver a coisa – ele – Bellis – saltando, agarrando o pedaço frouxo do papel de parede junto à porta do quarto, por ser o único ainda existente no local com qualquer semelhança de papel – pendurando-se nele – e finalmente o rasgando, carregando-o em sua cabeça para a máquina de escrever, como a uma folha de palmeira nipa. Fiquei procurando imaginar como é que ele – a criatura – conseguira colocar o pedaço de papel em torno do rolo da máquina. Como nada disso tinha aparência de blackout, então fiquei bebendo. Frank Sinatra parou de cantar, houve uma publicidade para o Crazy Eddie's e depois Sarah Vaughan passou a cantar "I'm Gonna Sit Right Down and Write Myself a Letter" (Vou-me sentar bem aqui e escrever uma carta para mim mesmo) e isso era algo mais que podia relacionar à situação. Afinal, eu havia escrito para mim recentemente ou, pelo menos, pensava que tinha escrito, até essa noite, quando acontecia algo, dandome motivo para considerar minha postura naquela questão, por assim dizer. Cantei juntamente com a boa e velha Sarah Soul, e foi quando devo ter adquirido velocidade de escape pois, em meio ao segundo estribilho, sem a menor pausa em absoluto, eu estava botando as tripas para fora, enquanto alguém primeiro me dava tapas nas costas, em seguida erguia-me os cotovelos, atrás de mim, depois os baixando e tornando a dar-me palmadas. Era o motorista de caminhão. A cada palmada sua, eu sentia um enorme jato de líquido subir em minha garganta e quase voltar novamente para dentro do corpo, exceto que o homem me erguia os cotovelos e, quando fazia isso, eu tornava a vomitar. A maioria de meu vômito não se compunha de Black Velvet, mas de água do rio. Quando finalmente tive forças para erguer a cabeça o suficiente e espiar em torno, eram seis horas da tarde e três dias depois; eu jazia na rampa do Rio Jackson, na Pensilvânia oeste, cerca de cento e cinqüenta quilômetros ao norte de Pittsburgh. Meu Chevrolet caíra no rio e sua traseira era visível, apontando para o alto. Eu ainda conseguia ler o adesivo de McCarthy, colado no pára-choque. "Arranja-me outra Fresca, meu bem? Tenho a garganta seca como o inferno. A esposa do escritor foi buscar-lhe a soda, silenciosamente. Quando a entregou a ele, abaixou-se impulsivamente e beijou sua face enrugada, como couro de crocodilo. Ele sorriu, e seus olhos cintilaram à claridade mortiça. Uma bondosa e delicada mulher, não obstante, ela não se deixou enganar, em absoluto, por aquele cintilar. Jamais era a alegria que punha olhos brilhantes daquela maneira. – Obrigado. Meg. Ele bebeu profundamente, tossiu, rejeitou com um aceno a oferta de um cigarro. – Já fumei os suficientes por hoje. Vou parar de fumar inteiramente. Em minha próxima encarnação. Por assim dizer. "Nem preciso contar o resto de minha história. Ela teria contra si o único pecado de que qualquer história pode ser realmente culpada – é previsível. Eles pescaram cerca de quarenta garrafas de Black Velvet de meu carro, muitas delas vazias. Eu balbuciava sobre elfos e eletricidade, sobre Fornit, mineradores de plutônio e fornus. Decidiram que eu estava totalmente louco e, claro, era exatamente o que acontecia comigo. "Agora, temos aqui o que aconteceu em Omaha, enquanto eu dirigia por lá segundo os talões de crédito para gasolina, encontrados no porta-luvas do Chevrolet. Enquanto eu dirigia por cinco estados do norte. Tudo isto, compreendam, foi informação que obtive de Jane Thorpe, durante um longo e penoso período de correspondência, que culminou com um encontro a dois em New Haven, onde ela hoje reside, pouco depois que recebi alta do sanatório – uma recompensa por, finalmente, voltar atrás em minha história. Findo aquele encontro, choramos nos braços um do outro, e foi quando acreditei ser possível haver ainda uma vida real para mim, talvez mesmo a felicidade. "Naquele dia, por volta de três da tarde, bateram à porta da residência dos Thorpe. Era um garoto mensageiro do telégrafo. O telegrama tinha sido enviado por mim, última peça de nossa infortunada correspondência. Dizia o seguinte: REG TENHO INFORMAÇÃO CONFIANÇA DE QUE RACKNE ESTÁ MORRENDO É O GAROTINHO SEGUNDO BELLIS BELLIS DIZ NOME DELE É JIMMY FORNIT SOME FORNUS HENRY. "Caso tenha passado por suas mentes aquela maravilhosa pergunta de Howard Baker O que ele sabia e quando ele soube? direi isto: eu sabia que Jane contratara uma faxineira; e não sabia – exceto através de Bellis – que essa faxineira tinha por filho um garotinho endiabrado chamado Jimmy. Terão de aceitar minha palavra por isso, embora eu deva acrescentar, com toda sinceridade, que os psiquiatras ocupados com meu caso nos dois anos e meio seguintes não me deram o menor crédito. "Jane estava na mercearia, quando o telegrama chegou. Ela o encontrou, após a morte de Reg, em um de seus bolsos traseiros da calça. A hora da transmissão e da entrega estava anotada nele, juntamente com a linha informando Sem telefone. Entrega pessoal. Jane disse que, embora o telegrama tivesse apenas um dia, havia sido tão manuseado que dava a impressão de haver sido recebido um mês antes. "De certa maneira, esse telegrama, aquelas vinte e quatro palavras foram o verdadeiro projétil flexível, e eu o disparei bem no cérebro de Reg Thorpe, por toda a distância a partir de Paterson, Nova Jersey. Eu estava tão infernalmente bêbado, que nem mesmo me lembrava de tê-lo feito. "Durante suas duas últimas semanas de vida, Reg se ajustara a um padrão que parecia a própria normalidade. Levantava-se às seis, preparava o desjejum para si mesmo e a esposa, depois escrevia por uma hora. Por volta das oito, trancava seu estúdio e levava o cão para um longo e despreocupado passeio na vizinhança. Mostrava-se sempre acessível em tais passeios, parando para conversar com quem quisesse palestrar com ele, amarrando o cachorro fora de um café próximo e tomando uma xícara de café pelo meio da manhã. Depois, recomeçava a caminhada. Raramente voltava para casa antes do meio-dia. Em muitos dias, chegava ao meio-dia e meia ou uma da tarde. Parte disto era um esforço para escapar à gárrula Gertrude Rulin, segundo acreditava Jane, porque o padrão de seu marido só começara a solidificar-se, uns dois dias depois da faxineira começar a trabalhar para eles. "Reg fazia um almoço leve, deitava-se por cerca de uma hora, depois se levantava e escrevia por duas ou três horas. Ao anoitecer, às vezes visitava os rapazes vizinhos, com Jane ou sozinho; em outras ocasiões; ele e Jane iam ao cinema ou apenas ficavam lendo na sala de estar. Deitavam-se cedo, Reg geralmente um pouco antes de Jane. Ela escreveu que havia muito pouco sexo entre eles e que, quando havia, era sem êxito para ambos. "Contudo, o sexo não é importante para a maioria das mulheres", disse ela, "e Reg vinha trabalhando bem novamente, o que constituía um substituto razoável para ele. Eu diria que, naquelas circunstâncias, essas duas últimas semanas foram as mais felizes nos últimos cinco anos. "Eu quase chorei ao ler isto. "Eu ignorava tudo sobre Jimmy, mas não era esse o caso de Reg. Ele estava a par de tudo, exceto do fato mais importante – que Jimmy passara a ir com sua mãe para o trabalho. "Como deve ter ficado furioso ao receber meu telegrama e perceber o que sucedia! Ali estavam eles, afinal. E, aparentemente, sua própria esposa era um deles, porque ela estava na casa, quando Gertrude e Jimmy lá se encontravam. E ela nunca lhe dissera uma só palavra sobre Jimmy. O que me tinha ele escrito, em uma carta anterior? Às vezes, desconfio de minha esposa." "Quando ela voltou para casa, no dia em que o telegrama chegou, descobriu que Reg se ausentara. Havia uma nota, em cima da mesa da cozinha, dizendo, "Meu bem – fui à livraria. Volto à hora do jantar". A nota pareceu a Jane perfeitamente normal... mas se ela soubesse de meu telegrama, a própria normalidade daquelas palavras a teria deixado terrivelmente amedrontada, creio eu. Jane compreenderia que Reg a imaginava como tendo mudado de lado. "Reg nem chegou perto de uma livraria. Foi ao Empório de Armas Little John's, no centro da cidade. Comprou uma automática 45 e dois mil cartuchos de munição. Teria comprado uma AK-70, se Little John's possuísse permissão para vendê-las. Reg queria proteger seu Fornit, compreendam. De Jimmy, de Gertrude, de Jane. Deles. "Na manhã seguinte, tudo transcorreu dentro da rotina estabelecida. Jane recorda ter pensado que seu marido usava uma suéter muito grossa para um dia de outono tão quente, mas isso foi tudo. A suéter, naturalmente, era por causa da arma. Ele saiu para passear com o cão, levando a 45 enfiada no cinto. "Reg seguiu diretamente para o restaurante onde costumava tomar seu café matinal, sem paradas ou conversas durante o trajeto. Levou o cãozinho até a área de descarga de mercadorias, amarrou sua correia a um trilho e voltou para casa, por ruas traseiras. "Estava a par da programação dos rapazes vizinhos, sabia que eles não se encontrariam em casa. Sabia também onde eles guardavam uma duplicata da chave. Entrou na casa, foi para o andar de cima e ficou vigiando sua própria residência. "Às oito e quarenta, viu Gertrude Rulin chegar. Ela não estava sozinha. Em sua companhia, havia realmente um menino pequeno. O comportamento turbulento de Jimmy Rulin, na classe do primeiro grau, convenceu a professora e o conselheiro-chefe, quase imediatamente, de que todos (exceto talvez a mãe de Jimmy, que descansaria com a ausência do filho) passariam melhor, caso o menino esperasse mais um ano, antes de freqüentar a escola. Jimmy estava farto de repetir o jardim-da-infância e, durante a primeira metade do ano, ia para a escola no período da tarde. As duas creches existentes na zona de Gertrude encontravam-se lotadas, e ela não podia trabalhar à tarde para os Thorpe, porque já tinha outro compromisso como faxineira, de quatorze às dezesseis horas, no lado oposto da cidade. "O desfecho de tudo, foi o consentimento relutante de Jane, quanto a Gertrude poder levar Jimmy consigo, até que conseguisse providenciar um outro arranjo. Ou até Reg descobrir, como estava prestes a ocorrer. "Jane achava que talvez o marido não se incomodasse, já que, ultimamente, vinha sendo muito cordato sobre tudo. Por outro lado, ele poderia ter um ataque de nervos. Se tal acontecesse, teriam que ser feitos outros arranjos. Gertrude disse que compreendia. E, acima de tudo, estipulou Jane, o garoto não devia tocar em qualquer coisa pertencente a Reg. Gertrude garantiu que assim seria; a porta do dono da casa estava trancada, e trancada ficaria. "Thorpe deve ter cruzado os dois pátios como um atirador de tocaia, cruzando a terra-deninguém. Ainda não vira o menino. Moveu-se ao longo da lateral da casa. Ninguém na sala de refeições. Ninguém no quarto. E então, no estúdio – onde Reg morbidamente esperara vê-lo – lá se encontrava ele. O rosto do garoto parecia afogueado de excitamento e, sem dúvida. Reg deve ter acreditado que, finalmente, ali estava um legítimo agente deles. "O garoto empunhava uma espécie de máquina do raio-da-morte e a apontava para a mesa de trabalho... enquanto Reg podia ouvir Rackne gritando, do interior de sua máquina de escrever. "Talvez julguem que eu esteja atribuindo dados subjetivos a um homem que agora se encontra morto. Ou, em palavras mais rudes, inventando coisas. Pois não estou. Na cozinha, tanto Jane como Gertrude ouviam o nítido som trinado da pistola espacial de plástico que Jimmy empunhava. Ele a estivera usando pela casa inteira, desde que começara a vir com a mãe e, a cada dia, Jane tinha esperanças de que as pilhas do brinquedo se extinguissem. Não havia engano quanto ao som. Tampouco havia engano sobre o lugar de onde ele vinha – o estúdio de Reg. "Compreendam, o garoto era realmente do material de Dennis o Terrível, se havia um lugar na casa onde ele não deveria ir, era justamente esse o lugar onde tinha de ir, para não morrer de curiosidade. Ele não demorou muito a descobrir que Jane tinha uma chave do estúdio de Reg sobre a platibanda da lareira na sala de refeições. Jimmy já teria entrado antes no estúdio? Creio que sim. Jane disse recordar haver dado uma laranja a ele, três ou quatro dias antes; mais tarde, quando limpava a casa, encontrou cascas da laranja debaixo do pequeno sofá do estúdio. Reg não gostava de laranjas – dizia-se alérgico a elas. "Jane deixou cair na pia o lençol que lavava e correu para o quarto de dormir. Ouvia o ruidoso ríá-icá-iiá da pistola espacial e também ouvia Jimmy gritando: "Eu vou te pegar! Você não pode fugir! Posso ver você pelo VIDRO!" E... ela disse... disse ter ouvido algo gritando. Um som agudo e desesperado, segundo afirmou, tão cheio de dor, que era quase insuportável. "Quando ouvi aquilo", disse ela, "compreendi que teria de abandonar Reg, pouco importando o que acontecesse, porque os contos da carochinha eram verdadeiros... a loucura era contagiosa. Sim, pois quem eu ouvia era Rackne; de algum modo, aquele garotinho levado estava matando Rackne, matando-o com os disparos de uma arma espacial, comprada por dois dólares na casa Kresge's. "A porta do estúdio estava escancarada, com a chave na fechadura. Mais tarde, nesse mesmo dia, vi uma das cadeiras da sala de refeições encostada junto à lareira, com o assento todo marcado pelos tênis de Jimmy. O menino estava inclinado para a mesa da máquina de escrever de Reg. Ele – Reg – possuía um antigo modelo de máquina de escrever, do tipo para escritório, com partes de vidro nas laterais. Jimmy tinha o cano de sua pistola espacial encostado a uma daquelas partes de vidro e disparava para o interior da máquina de escrever. Uá-uá-uá, e impulsos púrpuras de luz eram disparados contra a máquina de escrever. De repente, pude compreender tudo quanto Reg já dissera sobre eletricidade, porque embora aquele brinquedo fosse apenas movido por pilhas elétricas inofensivas, realmente dava a impressão de expelir ondas venenosas, que me varavam a cabeça e carbonizavam meu cérebro. "Eu vi você aí!" gritava Jimmy, e seu rosto estava tomado pela alegria infantil – era algo belo e terrível ao mesmo tempo. "Você não vai poder fugir, Capitão Futuro! Você está morto, alienígena!" E aqueles gritos... ficando mais fracos... menos intensos... "Pare com isso, Jimmy!" gritei. "Ele saltou. Eu o assustara. Virou-se... olhou para mim... estirou-me a língua... e tornou a encostar o cano da pistola no painel de vidro, recomeçando a atirar – uã-uã-uã – e expelindo aquela nojenta luz purpúrea. "Gertrude vinha chegando pelo corredor, gritava que ele parasse, que saísse dali, que ia levar a maior surra de sua vida... quando então a porta da frente escancarou-se com ímpeto e Reg surgiu no corredor, berrando. Bastou-me um olhar para ele e compreendi que estava insano. A arma encontravase em sua mão. "Não mate o meu filhinho!" gritou Gertrude quando o viu, avançando para contê-lo. Reg simplesmente a empurrou para um lado. "Jimmy nem parecia perceber o que acontecia – apenas continuou disparando sua pistola espacial para dentro da máquina de escrever. Eu podia ver aquela luz purpúrea pulsando na escuridão entre as teclas, uma luz semelhante à produzida por aqueles arcos elétricos, a mesma sobre a qual dizem que não podemos olhar sem óculos protetores especiais, porque ela poderia cozinhar as retinas, cegandonos. "Reg entrou, roçou violentamente em mim, derrubando-me. "RACKNE!" gritou ele. "VOCÊ ESTÁ MATANDO RACKNE!" "E, mesmo enquanto Reg cruzava o estúdio às carreiras, aparentemente pretendendo matar aquela criança", disse-me Jane, "tive tempo de pensar nas muitas vezes em que Jimmy estivera ali, disparando sua arma contra a máquina de escrever, enquanto eu e sua mãe estávamos no andar de cima, trocando a roupa de cama, ou no pátio dos fundos, pendurando a roupa lavada, sem ouvirmos o uá-uáuá... sem ouvirmos aquela coisa... o Fornit... lá dentro, gritando. "Jimmy não parou, nem mesmo quando Reg irrompeu no estúdio – apenas ficou disparando contra a máquina de escrever, como se soubesse que aquela era sua última chance. Desde então, tenhome perguntado se Reg não estaria certo também sobre eles. Talvez eles apenas flutuem por aí, de vez em quando penetrando na cabeça de uma pessoa, como alguém mergulhando em uma piscina. Em seguida, eles fazem esse alguém executar o trabalho sujo, insistindo em serem atendidos. Depois, o sujeito em que eles estiveram, pergunta, "Como? Eu? Fiz o quê?" "Um segundo antes de Reg chegar lá, o grito no interior da máquina de escrever tornou-se um breve guincho esganiçado – e vi sangue espalhar-se por todo o interior daquela placa de vidro, como se o que quer que existisse lá, finalmente acabasse de explodir, como dizem que um animal vivo explodirá, se colocado em um forno de microondas. Sei que isto pode parecer loucura, mas eu vi aquele sangue – ele bateu no vidro em um jato, antes de começar a escorrer. "Peguei ele! exclamou Jimmy, altamente satisfeito. "Peguei..." "Então, Reg o jogou através do estúdio, em toda a distância. Jimmy se chocou contra a parede. A pistola foi arrancada de sua mão, bateu no chão e se quebrou. Nada mais era além de plástico e pilhas Eveready, naturalmente. "Reg espiou dentro da máquina de escrever e deu um grito. Não foi um grito de dor ou de fúria, embora nele houvesse fúria – era, principalmente, um grito de pesar. Virou-se então para o menino. Jimmy tinha escorregado para o chão e o que quer que houvesse sido – se é que fora algo mais do que apenas um garotinho travesso – agora era apenas uma criança aterrorizada de seis anos. Reg apontou a arma para ele e isso é tudo de que me lembro. O editor terminou sua soda e colocou a lata a um lado, cuidadosamente. – Gertrude e Jimmy Rulin recordam o suficiente para preencher a lacuna – disse ele. – Jane gritou, "Reg, NÃO!– Quando Reg se virou para fitá-la, ela conseguiu levantar-se e atracou-se com o marido. Ele a baleou, estilhaçando-lhe o cotovelo esquerdo, mas Jane não o soltou. Enquanto continuava atracada a ele, Gertrude chamou o filho e Jimmy correu para ela. "Reg empurrou Jane e tornou a baleá-la. Agora, a bala passou raspando pelo lado esquerdo de seu crânio. Menos de meio centímetro para a direita, e o projétil a teria matado. Há pouca dúvida quanto a isso e nenhuma quanto à certeza de que Reg mataria Jimmy Rulin e talvez também sua mãe, se não fosse a intervenção de Jane Thorpe. "Ele baleou o garoto – quando Jimmy correu para os braços da mãe, logo depois da porta do estúdio. A bala penetrou na nádega esquerda do garoto, em um trajeto para baixo. Saiu pela parte superior da coxa esquerda, sem ofender o osso, passando através da pele de Gertrude Rulin. Houve muito sangue, porém nenhum dano importante a qualquer dos dois. "Gertrude bateu a porta do estúdio e carregou seu filho que chorava e sangrava, corredor abaixo, até deixar a casa pela porta da frente. O editor tornou a fazer uma pausa, pensativo. – Jane estaria sem sentidos, na ocasião, ou deliberadamente preferiu esquecer o que aconteceu em seguida. Reg sentou-se em sua poltrona de escritório e encostou o cano da 45 contra o meio da testa. Apertou o gatilho. O projétil não lhe varou o cérebro e o transformou em um vegetal vivo, nem viajou em semicírculo pelo crânio, saindo inofensivamente no ponto mais distante. A fantasia era flexível, mas o projétil final foi o mais rijo possível. Reg caiu para diante, em cima da máquina de escrever, morto. "Quando a polícia irrompeu, encontraram-no desse jeito. Jane estava sentada em um canto afastado, semi-inconsciente. "A máquina de escrever estava coberta de sangue e, presumivelmente, também cheia dele; ferimentos na cabeça são muito, muitíssimo hemorrágicos. "Todo o sangue era Tipo O. "O tipo do sangue de Reg Thorpe. "E esta, senhoras e senhores, é a minha história. Não, posso dizer mais nada. De fato, a voz do editor se fora reduzindo, até não passar de um fosco sussurro. Não houve a costumeira tagarelice pós-reunião, nem mesmo a desajeitadamente brilhante conversa que as pessoas às vezes usam para cobrir a indiscreção momentânea em algum coquetel ou, pelo menos, para disfarçar o fato de que a situação, em algum ponto, ficou muito mais séria do que em geral acontece, quando por ocasião de um jantar. Não obstante, quando o escritor viu o editor encaminhar-se para seu carro, foi incapaz de conter uma pergunta final. – A história – disse ele. – O que aconteceu à história? – Está se referindo à... – À "Balada do Projétil Flexível", exatamente. À história de Reg Thorpe, que provocou tudo isso. Aquele foi o real projétil flexível – para você, se não para ele. Que diabo aconteceu a uma história que era tão infernalmente espetacular? O editor abriu a porta de seu carro; era um pequeno Chevette azul, tendo no para-choque traseiro um adesivo que dizia AMIGOS NÃO DEIXAM QUE AMIGOS DIRIJAM EMBRIAGADOS. – Bem, ela jamais foi publicada. Se Reg possuía uma cópia a carbono, deve tê-la destruído após estar de posse do meu recibo e aceitação da história – considerando-se seus sentimentos paranóicos sobre eles, o que seria bem condizente com a situação. "Eu tinha comigo seu original mais três fotocópias, quando mergulhei no Rio Jackson. Os quatro estavam em uma pasta de papelão. Se houvesse colocado essa pasta no porta mala, hoje ainda teria a história, uma vez que a traseira de meu carro não chegou a mergulhar – e, mesmo que mergulhasse, as laudas se teriam secado. Contudo, eu a queria perto de mim, de modo que coloquei a pasta no banco dianteiro, ao lado do motorista. As janelas estavam arriadas, quando bati na água. As laudas... presumo que apenas tenham sido levadas boiando pela correnteza, chegando até o mar. Antes quero acreditar nisso, do que em irem apodrecendo com o resto do lixo no fundo daquele rio, inclusive comidas pelos peixes locais ou algo ainda menos agradável esteticamente. Acreditar que foram levadas para o mar é mais romântico e ligeiramente mais improvável, porém quando se trata daquilo em que prefiro crer, acho que ainda posso ser flexível. "Por assim dizer. O editor entrou em seu pequeno carro e afastou-se. O escritor ficou parado, espiando até as luzes traseiras piscarem e desaparecerem. Então se virou. Meg estava ali, parada à cabeceira da alameda, no escuro, sorrindo um pouco incertamente para ele. Tinha os braços apertadamente cruzados sobre o busto, embora a noite fosse cálida. – Somos os últimos dois – disse ela. – Quer entrar? – Naturalmente. A meio caminho, na alameda, ela parou e perguntou: – Não há Fornits em sua máquina de escrever, há, Paul? E o escritor que, por vezes – com freqüência – perguntava-se de onde, exatamente, vinham as palavras, respondeu, em tom corajoso: – É claro que não. Em absoluto! Os dois entraram em casa, de braços dados, e fecharam a porta contra a noite.
 

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