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sábado, 26 de setembro de 2015

JERUSALEM'S LOT

2 de outubro de 1850

CARO BONLS,
Como foi bom entrar no hall frio e cheio de correntes de ar aqui em Chapelwaite, cada osso doendo por causa daquela abominável carruagem, necessitando aliviar de imediato minha bexiga dilatada ― e ver uma carta endereçada a mim em sua inimitável garatuja sobre a obscena mesinha de cerejeira junto à porta! Pode ter certeza de que tratei de decifrá-la tão logo as necessidades do corpo foram satisfeitas (num banheiro friamente decorado do andar térreo, onde pude ver o hálito transformar-se em vapor diante de meus olhos). Alegro-me por saber que você se recobrou do miasma que há tempo lhe atacava os pulmões, embora lhe assegure que compreendo o dilema moral com que a cura o afetou. Um abolicionista enfermo curado pelo clima ensolarado da Flórida escravagista! Ainda assim, Bones, peço-lhe, como um amigo que também penetrou no vale da treva, que se cuide bem e não se aventure a regressar a Massachusetts até que seu corpo o permita. Sua esplêndida mente e incisiva pena não nos podem prestar serviços se você for transformado em pó; e se a zona sulista é saudável para você, não existe nisso uma justiça poética? Sim, a casa é tão boa quanto fui levado a acreditar pelos testamenteiros de meu primo, embora um tanto mais sinistra. Situa-se numa enorme e protuberante ponta de terra a cerca de cinco quilômetros ao norte de Falmouth e quinze quilômetros ao norte de Portland. Nos fundos há cerca de um hectare e meio de terra onde o mato cresceu da maneira mais formidável que se possa imaginar ― juníperos, cipós, arbustos e várias espécies de trepadeiras sobem selvagemente sobre os pitorescos muros de pedra que separam a propriedade das terras da municipalidade. Horríveis imitações de estatuária grega espiam cegamente através do mato emaranhado, do topo de vários cômoros ― na maior parte dos casos, parecem prestes a se lançarem sobre os passantes. Os gostos de meu primo Stephen parecem ter variado por toda a faixa entre o inaceitável e o simplesmente horrível. Há uma esquisita casinha de verão que foi praticamente encoberta pelo sumacre vermelho e um grotesco relógio de sol no meio do que outrora deve ter sido um jardim. Acrescenta o toque final de loucura. Mas a vista da sala de visitas é compensação mais que suficiente; domino um estonteante panorama das rochas no sopé de Chapelwaite Head e do próprio Atlântico. Uma enorme janela em forma de sacada arredondada se abre para essa vista, tendo ao lado uma enorme secretária que lembra um sapo. Será ótimo para o início do romance do qual venho falando há tanto tempo (sem dúvida cansativamente). Hoje foi um dia cinzento, com ocasionais pancadas de chuva. Ao olhar para fora, tudo me parece um estudo em cor de ardósia ― os rochedos, velhos e gastos como o próprio Tempo, o céu e, naturalmente, o mar que se choca contra as presas de granito lá embaixo com um som que não é propriamente um som, mas uma vibração ― sinto as ondas nas solas dos pés enquanto escrevo. A sensação não é de todo desagradável. Sei que desaprova meus hábitos solitários, caro Bones, mas asseguro-lhe que estou bem e feliz. Calvin está comigo, prático, calado e confiável como sempre, e tenho certeza de que em meados da semana teremos colocado tudo em ordem e providenciado as necessárias entregas da cidade ― e um batalhão de mulheres para começar a tirar a poeira deste lugar! Terminarei por aqui ― ainda há muitas coisas para ver, aposentos para explorar e, sem dúvida, mil e uma execráveis peças de mobília a serem examinadas por estes olhos delicados. Mais uma vez, meus agradecimentos pelo toque familiar proporcionado por sua carta e por sua perseverante consideração. Recomende-me à sua esposa e receba minha amizade. CHARLES. 6 de outubro de 1850 CARO BONES, Que lugar, este! Continua a espantar-me ― da mesma forma que as reações dos habitantes da vila mais próxima à minha mudança para cá. É um lugarejo esquisito, com o pitoresco nome de Preacher's Comer. Foi lá que Calvin contratou a remessa de nossas provisões semanais. A outra tarefa, de providenciar um suprimento de lenha suficiente para o inverno, também foi cumprida. Mas Cal retornou com o semblante sombrio e quando lhe perguntei qual era a dificuldade, respondeu de modo bastante sério: ― Eles acham que o senhor é louco, Sr. Bones! Ri e repliquei que talvez tivessem ouvido falar da febre cerebral que me acometeu depois da morte de minha Sarah ― não há dúvida de que eu disse minhas loucuras naquela ocasião, como você pode atestar. Mas Cal protestou que ninguém sabia coisa alguma a meu respeito exceto através de meu primo Stephen, que contratara os mesmos serviços que estou providenciando agora. ― O que disseram, senhor, foi que qualquer pessoa capaz de morar em Chapelwaite deve ser louca ou corre o risco de enlouquecer. Isso me deixou completamente perplexo, como você bem pode imaginar, e indaguei quem lhe fizera a espantosa comunicação. Cal explicou que fora encaminhado a um madeireiro rabugento e um tanto embrutecido chamado Thompson, que possui cem hectares de pinheiros, bétulas e abetos e corta as árvores em toras com o auxilio dos cinco filhos, a fim de vendê-las às fábricas de papel em Portland e fornecer lenha aos moradores das redondezas. Quando Cal, ignorando o estranho preconceito do madeireiro, deu-lhe o endereço aonde a lenha devia ser entregue, o tal Thompson o encarou boquiaberto e declarou que enviaria seus filhos com a lenha, em plena luz do dia e pela estrada litorânea. Cal, aparentemente confundindo meu divertimento com preocupação, apressou-se em acrescentar que o homem cheirava a uísque barato e passara a dizer tolices sobre um lugarejo abandonado, os parentes do primo Stephen... e vermes! Cal terminou de tratar o negócio com um dos filhos de Thompson, o qual, pelo que entendi, também era carrancudo e não estava muito sóbrio nem perfumado. Depreendo que ocorreu uma reação do mesmo tipo no próprio lugarejo de Preacher's Corner, na venda local, onde Cal falou com o proprietário, embora este fosse mais do tipo mexeriqueiro. Nada disso me preocupou muito; sabemos como os rústicos adoram enriquecer suas vidas com o cheiro de escândalo e mitos, e suponho que o pobre Stephen e seu lado da família tenham sido um alvo fácil. Como eu disse a Cal, é mais que provável que um homem que tombou morto quase no alpendre de sua própria casa tenha provocado fofocas. A casa, em si, é um espanto constante. Vinte e três cômodos, Bones! Os lambris que forram os andares superiores e a galeria de retratos estão mofados mas ainda sólidos. Quando me postei no quarto de dormir de meu falecido primo, no andar de cima, pude ouvir os ratos correndo por detrás dos lambris; deviam ser grandes, pelo barulho ― quase como se pessoas andassem ali. Eu detestaria encontrar um deles no escuro; ou mesmo à luz do dia, por falar nisso. Ainda assim, não notei buracos nem fezes de ratos. Esquisito. A galeria superior está forrada com maus retratos em molduras que devem valer uma fortuna. Alguns têm alguma semelhança com Stephen, da maneira como me recordo dele. Creio que identifiquei corretamente meu Tio Henry Boone e sua esposa Judith; os outros são desconhecidos. Suponho que um deles talvez seja meu notório avó, Robert. Entretanto, o lado da família de Stephen é praticamente desconhecido para mim, o que sinto muitíssimo. O mesmo bom humor que se irradiava das cartas de Stephen para mim e Sarah, o mesmo brilho de elevada intelectualidade, aparece nesses retratos, por piores que sejam. Por quantas razões tolas as famílias se dispersam! Um escritório arrombado, palavras ásperas entre dois irmãos que morreram há três gerações, e descendentes inocentes são desnecessariamente afastados. Não posso deixar de refletir sobre como foi uma felicidade você e John Petty conseguirem entrar em contato com Stephen quando tudo parecia indicar que eu seguiria minha Sarah através dos Portões Celestiais ― e como foi uma infelicidade o destino nos roubar a oportunidade de nos conhecermos pessoalmente. Como eu adoraria ouvir Stephen defender as estátuas e móveis de nossos ancestrais! Contudo, .não permita que eu denigra este local ao extremo. É verdade que o gosto de Stephen diferia do meu, mas por baixo do verniz das aquisições feitas por ele, existem peças (muitas delas cobertas com capas nos cômodos superiores) que são verdadeiras obrasprimas. Camas, mesas e pesados arabescos escuros lavrados em teca e mogno; muitos dormitórios e salas de recepção, o escritório superior e a pequena sala de visitas possuem um encanto sombrio. Os assoalhos são de pinho-de-riga que brilha com uma luz interna e secreta. Aqui existe dignidade; dignidade e o peso dos anos. Ainda não posso dizer que gosto, mas respeito. Estou ansioso por observar as mudanças que acompanham as transformações deste clima setentrional. Cristo, como sou prolixo! Escreva logo, Bones. Relate-me seus progressos e conte- me as novidades que tem a respeito de Petty e do resto. E, por favor, não cometa o erro de tentar persuadir qualquer de seus novos conhecidos sulistas a adotarem à força suas opiniões ― consta-me que nem todos eles se contentam em replicar apenas com palavras, como costuma fazer nosso prolixo amigo Sr. Calhoun. Seu afetuoso amigo CHARLES. 16 de outubro de 1850. CARO RICHARD, Olá, e como vai você? Tenho pensado freqüentemente em você desde que estabeleci residência aqui em Chapelwaite e esperado notícias suas ― e agora recebo uma carta de Bones dizendo-me que me esqueci de deixar meu novo endereço no clube! Fique certo de que eu lhe escreveria eventualmente, de qualquer modo; já que às vezes me parece que meus amigos verdadeiros e leais são tudo o que me resta no mundo, isto é certo e perfeitamente normal. E, meu Deus, como nos espalhamos! Você em Boston, escrevendo fielmente para The Liberator (ao qual também enviei meu endereço, por falar nisso), Hanson na Inglaterra, em mais uma de suas malditas excursões, e o pobre Bones na própria cova dos leões, curando os pulmões. Tudo por aqui vai correndo tão bem quanto se pode esperar, Dick, e esteja certo de que lhe farei um relato completo quando não estiver tão pressionado por certos eventos que vêm ocorrendo ― creio que sua mente jurídica talvez fique bastante intrigada por certos acontecimentos em Chapelwaite e cercanias. Nesse ínterim, tenho um favor a lhe pedir, caso você estiver disposto a fazê-lo. Lembra-se do historiador que me apresentou no banquete do Sr. Clary para levantar fundos para nossa causa? Creio que se chamava Bigelow. De qualquer forma, ele mencionou que tinha por hobby colecionar curiosidades históricas e folclóricas referentes exatamente à esta zona em que estou residindo. O favor, portanto, é o seguinte: poderia você entrar em contato com ele e indagar que fatos históricos, fragmentos de folclore ou boatos generalizados ― se existirem ― ele talvez conheça a respeito de um lugarejo abandonado chamado JERUSALEM'S LOT, próximo a uma vila chamada Preacher's Corner, no Rio Royal? O rio, em si, é um tributário do Androscoggin e conflui com este a aproximadamente dezoito quilômetros da foz perto de Chapelwaite. Eu ficaria imensamente grato e, o que é mais importante, talvez se trate de algo momentoso. Ao passar os olhos nesta carta, sinto que fui um pouco lacônico com você, Dick, pelo que me desculpo sinceramente. Fique certo de que me explicarei em breve e, até lá, envio minhas mais calorosas lembranças a sua esposa, aos seus dois lindos filhos e, naturalmente, a você também. Seu afetuoso amigo CHARLES. 16 de outubro de 1850 CARO BONES, Tenho algo a lhe contar que parece estranho (e mesmo um pouco inquietante) para Cal e para mim também ― veja o que pensa a respeito. No mínimo, servirá para diverti-lo enquanto combate os mosquitos! Dois dias depois que coloquei no correio minha última carta para você, um grupo de quatro jovens senhoras veio de Preacher's Comer, sob a supervisão de uma senhora idosa com fisionomia competente e intimidadora, chamada Sra. Cloris, a fim de colocar a casa em ordem e remover parte da poeira que me fez espirrar a cada passo. Todas pareciam um pouco nervosas ao cumprirem suas tarefas; na verdade, uma senhorita assustada emitiu um gritinho quando entrei na sala de visitas superior enquanto ela fazia a limpeza. Indaguei à Sra. Cloris quanto a isso (ela limpava o hall do andar térreo com uma sombria determinação que deixaria você espantado, os cabelos presos num lenço estampado desbotado) e ela se voltou para mim com ar decidido: ― Elas não gostam da casa. E eu também não gosto, senhor, porque sempre foi uma casa ruim. Fiquei boquiaberto ante a resposta inesperada e ela prosseguiu num tom mais suave: ― Não quero dizer que Stephen Boone não fosse uma boa pessoa, porque era; limpei a casa de quinze em quinze dias, às quintas-feiras, durante todo o tempo em que ele esteve aqui, da mesma forma que a limpei para seu pai, Sr. Randolph Boone, até que ele e a esposa desapareceram em 1818. O Sr. Stephen era bondoso e delicado, assim como o senhor também me parece (perdoe meu modo de falar, mas sou assim mesmo), mas a casa é e sempre foi ruim; nenhum Boone jamais foi feliz aqui desde que seu avó Robert e o irmão dele, Philip, brigaram por causa de... (aqui ela fez uma pausa, com ar quase culposo)... coisas roubadas, em 1789. Que memória tem essa gente, Bones! A Sra. Cloris prosseguiu: ― A casa foi construída em infelicidade e tem sido habitada com infelicidade; derramou-se sangue em seus assoalhos (como talvez você não saiba, Bones, meu Tio Randolph envolveu-se num acidente na escada do porão que tirou a vida de sua filha Marcella; depois, suicidou-se numa crise de remorso. O incidente está relatado numa das cartas que Stephen me escreveu na triste ocasião do aniversário de sua falecida irmã); houve desaparecimentos e acidentes. ― Tenho trabalhado aqui, Sr. Boone, e não sou cega nem surda. Tenho escutado sons horríveis nas paredes, senhor, sons horríveis... baques, quedas e, uma vez, um estranho lamento que parecia mesclado com riso. Fez-me o sangue gelar nas veias. É um lugar tenebroso, senhor. E calou-se, talvez temendo haver falado demais. Quanto a mim, mal sabia se devia ficar ofendido ou divertido, curioso ou simplesmente realista. Temo que a diversão tenha ganho a parada, naquele dia. ― E de que desconfia, Sra. Cloris? Fantasmas arrastando correntes? Mas ela se limitou a me fitar de modo estranho. ― Talvez existam fantasmas. Mas aquilo nas paredes não são fantasmas. Não são fantasmas quem chora e balbucia como os condenados ao inferno, tropeçando e esbarrando na escuridão. É... ― Vamos, Sra. Cloris ― instei com ela. ― A senhora já chegou a este ponto. Não pode acabar o que começou? A mais estranha expressão de terror, ressentimento e ― eu seria capaz de jurar ― temor religioso passou-lhe pelo rosto. ― Alguns não morrem ― sussurrou ela. ― Alguns continuam vivos nas sombras do Nada... para servirem a Ele! E foi o fim. Continuei a espicaçá-la por alguns minutos, mas ela se tornou cada vez mais obstinada e recusou-se a falar mais. Afinal, desisti, temendo que ela recobrasse o controle e abandonasse a casa. Foi o final do episódio, mas ocorreu um segundo na noite seguinte. Calvin acendera um fogo no térreo e eu estava sentado na sala de visitas, passando os olhos num exemplar da The Intelligencer e quase cochilando ao som da chuva soprada pelo vento contra as vidraças da grande janela panorâmica. Sentia-me confortável como só é possível numa noite como aquela, quando toda a miséria fica lá fora e todo o conforto e calor estão dentro de casa; todavia, pouco depois Cal surgiu à porta, parecendo excitado e um pouco nervoso. ― Está acordado, senhor? ― indagou. ― Quase ― respondi. ― O que é? ― Encontrei lá em cima algo que acho que o senhor deveria ver replicou ele, com o mesmo ar de excitação contida. Levantei-me e o acompanhei. Enquanto subíamos a larga escadaria, Cal disse: ― Eu estava lendo um livro no escritório do andar de cima ― um livro meio esquisito ― quando escutei um barulho na parede. ― Ratos ― disse eu. ― Foi só isso? Ele parou no patamar, encarando-me solenemente. O lampião que ele segurava lançava sombras fantasmagóricas nas cortinas escuras e nos retratos quase invisíveis que agora pareciam mais zombar que sorrir. Lá fora, o vento se elevou num uivo e amainou com relutância. ― Não são ratos ― disse Cal. ― Foi um som de baque, um tropeçar por trás das estantes, depois um horrível gorgolejar... horrível, senhor. Arranhões, como se alguém tentasse sair... para me atacar! Bem pode imaginar meu assombro, Bones. Calvin não é do tipo que se entrega a loucas fantasias da imaginação. Comecei a ter a impressão de que, afinal, havia um mistério nesta casa ― e, talvez, um mistério muito feio, mesmo. ― E então? ― perguntei. Tínhamos retomado a caminhada pelo corredor e pude ver a luz do escritório projetando-se no chão da galeria. Observei-a com alguma trepidação. A noite já não me parecia confortável. ― O barulho de arranhões cessou. Depois, as pancadas surdas recomeçaram, desta vez afastando-se de mim. Parei um instante e juro que escutei um riso estranho, quase inaudível! Fui à estante e comecei a empurrar e puxar, julgando que pudesse haver uma divisória, ou uma porta secreta. ― Encontrou alguma? Cal parou à porta do escritório. ― Não... mas encontrei isto! Entramos e vi um buraco preto, quadrado, na estante esquerda. Naquele ponto, os livros eram falsos e o que Cal encontrara era um pequeno esconderijo. Iluminei-o com minha lanterna e vi apenas uma grossa camada de poeira, que devia representar o acúmulo, de décadas. ― Havia apenas isto ― disse Cal em voz baixa, entregando-me uma folha de papel amarelado. Tratava-se de um mapa, desenhado em linhas pretas finas como fios de teia de aranha ― o mapa de um lugarejo, ou vila. Havia talvez sete prédios e um deles, nitidamente marcado com uma torre de igreja, trazia a seguinte legenda: O VERME QUE CORROMPIA. No canto esquerdo superior, ao que devia ser o noroeste do vilarejo, uma seta apontava: Chapelwaite. Calvin disse: ― Na vila, senhor, alguém se referiu supersticiosamente a um lugarejo abandonado chamado Jerusalem's Lot. É um lugar que todos evitam. ― E isto? ― indaguei, passando o dedo sob a estranha legenda abaixo da torre. ― Não sei. Uma lembrança da Sra. Cloris, imperiosa e, não obstante, atemorizada, passou-me pela mente. ― O Verme... ― murmurei. ― Sabe alguma coisa a respeito, Sr. Boone? ― Talvez... Seria divertido procurarmos esse vilarejo amanhã, não acha, Cal? Ele assentiu, os olhos brilhando. Depois disso, passamos quase uma hora procurando alguma fenda na parede atrás do pequeno esconderijo encontrado por Cal, mas sem o menor sucesso. Os ruídos que Cal mencionara não se repetiram. Naquela noite, fomos dormir sem outras aventuras. Na manhã seguinte, Cal e eu começamos a andar pelos bosques. A chuva da noite anterior cessara, mas o céu estava sombrio, com nuvens baixas. Percebi que Cal me olhava com ar de dúvida e apressei-me em assegurar-lhe que se me cansasse ou se a jornada fosse muito longa eu não hesitaria em deixar o caso de lado. Equipamo-nos com um lanche, uma ótima bússola Buckwhite e, naturalmente, o antigo e estranho mapa de Jerusalem's Lot. Era um dia estranho e sombrio; nenhuma ave parecia piar, nenhum animal parecia mover-se enquanto avançávamos por entre os escuros troncos dos pinheiros, em direção sudeste. Os únicos sons eram os de nossos passos e o contínuo quebrar do Atlântico contra os rochedos do litoral. O cheiro do mar, quase sobrenaturalmente pesado, era nosso companheiro perene. Não percorremos mais que três quilômetros quando topamos com uma estrada quase oculta pelo mato, do tipo que antigamente chamavam "estrada de toros"; ela seguia em nosso rumo geral e tratamos de segui-la, avançando com rapidez. Falávamos pouco. O dia silencioso e ameaçador pesava sobre nossos espíritos. Por volta das onze horas, escutamos o barulho de água corrente. O resto da estrada fazia uma curva forte para a esquerda e, no outro lado de um riacho pedregoso e espumante, como uma aparição, estava Jerusalem's Lot! O riacho teria talvez dois metros e meio de largura, atravessado por uma pinguela coberta de musgo. No lado oposto, Bones, estava o mais perfeito lugarejo que você poderia imaginar, compreensivelmente castigado pelo tempo, mas espantosamente preservado. Várias casas, construídas no estilo austero porém sobranceiro pelo qual os puritanos são merecidamente famosos, aglomeravam-se junto à margem íngreme do riacho. Mais além, ao longo de uma rua coberta de mato rasteiro, havia três ou quatro construções que deveriam ter sido estabelecimentos comerciais e, mais adiante, a torre da igreja marcada no mapa, erguendo-se para o céu cinzento e parecendo indescritivelmente sinistra, com sua pintura descascada e a cruz enferrujada inclinada para um lado. ― O lugar merece o nome ― disse Calvin, baixinho, ao meu lado. Atravessamos a pinguela e começamos a explorar a vila ― e é aqui que meu relato se torna ligeiramente espantoso, Bones. Portanto, prepare-se! O ar parecia pesado ao caminharmos entre os prédios; pesado como chumbo. Os prédios se encontravam em estado de deterioração ― postigos arrancados, telhados ruídos sob o peso de nevascas passadas, janelas poeirentas e escancaradas. Sombras de cantos esquisitos e ângulos tortos pareciam formar poças sinistras. Primeiro, entramos numa velha e apodrecida taverna ― de algum modo, não parecia correto invadirmos as casas nas quais as pessoas se abrigavam quando queriam privacidade. Uma velha tabuleta, castigada pelo tempo, pendurada acima da porta rachada anunciava que ali existira a HOSPEDARIA E TAVERNA CABEÇA DE JAVALI. A porta se abriu com um rangido infernal do único gonzo que restava e entramos no ambiente sombrio. O cheiro de mofo e podridão era vaporoso e quase insuportável. Além dele, parecia haver um cheiro ainda mais profundo, um odor pegajoso e pestilento, um cheiro de muitos anos e da podridão da idade. Um fedor como o que poderia escapar de caixões funerários apodrecidos ou de tumbas violadas. Levei o lenço ao nariz e Cal me imitou. Observamos o local. ― Meu Deus, senhor... ― disse Cal com voz sumida. ― Nunca foi tocado ― terminei por ele. E, de fato, não fora. Mesas e cadeiras pareciam guardiães fantasmas vigiando o local, empoeiradas, castigadas pelas extremas alterações de temperaturas pelas quais é famoso o clima da Nova Inglaterra, mas, exceto isso, perfeitas ― como se tivessem aguardado durante as décadas silenciosas e cheias de ecos que aqueles que haviam há muito partido retornassem à taverna para pedirem copos de cerveja ou doses de uísque, jogarem cartas e acenderem cachimbos de barro. Um pequeno espelho quadrado, inteiro, estava pendurado junto ao regulamento da casa. Entende o significado, Bones? Os meninos são famosos por explorarem os locais abandonados e cometerem vandalismos; não existe uma casa "assombrada" que ainda tenha vidraças intactas, por mais aterrorizante que seja a reputação dos fantasmas que nela habitam; nenhum cemitério sombrio deixa de ter ao menos uma das lápides danificadas por meninos travessos. Certamente deve existir em Preacher's Comer ao menos uma dúzia de meninos travessos, a menos de três quilômetros de Jerusalem's Lot. Não obstante, a vidraça do taverneiro (que lhe deve ter custado uma boa nota) estava intacta ― assim como os outros objetos frágeis que encontramos em nossas explorações do local. Os únicos danos em Jerusalem's Lot foram causados pela Natureza impessoal. A implicação é óbvia: Jerusalem's Lot é um local evitado por todos. Mas por quê? Tenho um palpite, mas nem mesmo ouso mencioná-lo; tenho que prosseguir até o perturbador final de nossa visita. Subimos aos dormitórios e encontramos as camas feitas, jarras de água feitas de estanho cuidadosamente arrumadas ao lado delas. A cozinha estava igualmente intocada exceto pela poeira dos anos e por aquele horrível fedor de apodrecimento. A taverna, em si, seria o paraíso para um antiquário; só o maravilhosamente exótico fogão alcançaria um belo preço nos leilões de Boston. ― O que acha, Cal? ― perguntei ao retornarmos à vacilante luz do dia. ― Acho que é algo ruim, Sr. Boone ― replicou ele à sua maneira lúgubre. ― E creio que devemos ver mais, para ficar sabendo melhor. Demos pouca atenção às outras lojas ― havia uma loja de celeiro, mofados arreios de couro ainda pendurados em pregos enferrujados, uma mercearia, um depósito com tábuas de carvalho e de pinho ainda empilhadas, uma ferraria. A caminho da igreja no centro do lugarejo, entramos em duas casas. Ambas eram do mais perfeito estilo puritano, cheias de objetos pelas quais um colecionador daria os olhos da cara, ambas abandonadas e impregnadas do mesmo fedor podre. Nada parecia viver ou mover-se nas cercanias exceto nós dois. Não vimos insetos, aves, nem mesmo uma teia de aranha formada num canto de janela. Só poeira. Afinal, chegamos à igreja. Erguia-se acima de nós, sinistra, pouco convidativa, fria. As vidraças estavam negras com a escuridão do interior e qualquer vestígio de Deus ou de santidade já se afastara há muito tempo. Disso, tenho certeza. Galgamos os degraus e coloquei a mão na grande aldrava de ferro. Um olhar grave e sombrio passou de mim a Calvin e foi retribuído. Abri a porta. Quanto tempo se passara desde que eia fora aberta pela última vez? Eu diria com segurança que era o primeiro a tocá-la em cinqüenta anos; talvez mais. Dobradiças emperradas pela ferrugem gritaram quando a empurrei. O cheiro de podridão que nos sufocou era quase palpável. Cal produziu um som engasgado na garganta e virou involuntariamente a cabeça em busca de ar fresco. ― Senhor ― disse ele ―, tem certeza de que está...? ― Estou bem ― respondi calmamente. Mas não me sentia calmo, Bones, não reais do que me sinto agora. Acredito, juntamente com Moisés, Jereboão, e com o nosso Hanson (quando está com disposição filosófica), que existem lugares espiritualmente nocivos, prédios nos quais o leite do cosmos se tomou azedo e rançoso. Aquela igreja era um desses locais; eu seria capaz de jurar. Entramos num comprido vestíbulo equipado com uma empoeirada série de cabides e prateleiras contendo hinários. Não tinha janelas. Lampiões de azeite ocupavam nichos nas paredes. Uma sala normal, pensei, até que ouvi Calvin prender bruscamente a respiração e vi o que ele já notara. Era uma obscenidade. Não me atrevo a descrever aquela gravura elaboradamente emoldurada a não ser para dizer o seguinte: o desenho tinha o estilo carnudo de Rubens; representava um grotesco travesti de uma madonna com o filho; criaturas estranhas, meio encobertas pelas sombras, rastejavam ao fundo. ― Meu Deus ― murmurei. ― Não existe Deus aqui ― disse Calvin. E suas palavras deram a impressão de ficar suspensas no ar. Abri a porta que dava para a igreja propriamente dita e o fedor se transformou num miasma quase asfixiante. À tremeluzente meia-luz da tarde, os bancos se enfileiravam fantasmagoricamente na direção do altar. Acima deles, um alto púlpito de carvalho e um nártex coberto de sombras onde rebrilhava ouro. Com um soluço engasgado, Calvin, um protestante devoto, fez o Sinal da Cruz. Apressei-me em imitá-lo. Pois o ouro era uma cruz grande, lindamente lavrada ― mas pendurada de cabeça para baixo, símbolo da Missa de Satã. ― Devemos manter a calma ― escutei minha própria voz dizer. Devemos manter a calma, Calvin. Devemos manter a calma. Mas uma sombra me tocara o coração e tive um medo como nunca senti antes. Passei sob o guarda-chuva da morte e pensava que não existia outro mais escuro. Mas existe. Existe. Caminhamos pela alameda entre os bancos, nossos passos ecoando acima e ao redor de nós. Deixamos pegadas na poeira. E, no altar, havia outros tenebrosos objetos de arte. Não deixarei, não posso deixar, que minha mente volte a eles. Comecei a subir ao púlpito. ― Não, Sr. Boone! ― exclamou Cal de repente. ― Tenho medo... Mas eu já chegara ao topo. Um enorme livro estava aberto sobre a estante, escrito tanto em latim como em estranhos caracteres rúnicos que, aos meus olhos inexperientes, pareciam ser druídicos ou pré-célticos. Anexo um cartão com vários daqueles símbolos, desenhados de memória. Fechei o livro e li as palavras gravadas na capa de couro: De Vermis Mysteriis. Meu latim está enferrujado, mas ainda é capaz de traduzir: Os Mistérios do Verme. Quando minhas mãos tocaram o livro, aquela maldita igreja e o rosto pálido de Calvin, erguido para mim, pareceram dançar diante de meus olhos. Tive a impressão de escutar vozes graves, cantantes, cheias de um temor hediondo e, não obstante, ansioso ― e, além desse som, um outro que parecia encher as entranhas da Terra. Uma alucinação, sem dúvida mas, no mesmo momento, a igreja se encheu com um som muito real, que só consigo descrever como um enorme e macabro giro sob meus pés. O púlpito estremeceu sob meus dedos; a cruz profanada tremeu na parede. Saímos juntos, Cal e eu, abandonando o local à sua escuridão, e nenhum de nós ousou olhar para trás até que atravessamos a tosca pinguela sobre o riacho. Não direi que maculamos os mil e novecentos anos que o homem gastou para deixar de ser um selvagem apavorado e supersticioso ao fugirmos dali correndo; contudo, seria um mentiroso se afirmasse que nos retiramos calmamente. Eis minha narrativa. Você não deve perturbar sua cura com a idéia de que a febre me atacou outra vez; Cal pode confirmar tudo o que escrevi nestas páginas, inclusive aquele barulho horrível. Portanto, termino aqui, dizendo apenas que gostaria de vê-lo pessoalmente (pois sei que grande parte de meu assombro se desvaneceria de imediato) e que continuo seu amigo e admirador. CHARLES. 17 de outubro de 1850 PREZADOS SENHORIOS: Na mais recente edição de seu catálogo de artigos domésticos (isto é, Verão de 1850), reparei num preparado de nome Veneno Para Ratos. Gostaria de adquirir uma (1) lata de dois quilos e meio do referido preparado, ao preço mencionado de trinta centavos ($ 0,30). Anexo selos para a resposta. Favor endereçar a: Calvin McCann, Chapelwaite, Preacher's Corner, Município de Cumberland, Maine. Grato por sua atenção ao meu pedido. Atenciosamente CALVIN McCANN. 19 de outubro de 1850 CARO BONES, Acontecimentos de natureza inquietadora. Os ruídos na casa têm aumentado de intensidade. Estou chegando cada vez mais à conclusão de que não são apenas ratos que se movem dentro de nossas paredes. Calvin e eu realizamos outra busca infrutífera, procurando nichos ou passagens ocultas, mas nada encontramos. Como ficaríamos desajustados num dos romances da Sra. Radcliffe! Cal alega, porém, que grande parte do ruído vem do porão e é lá que pretendemos dar busca amanhã. O fato de saber que a irmã do Primo Stephen lá encontrou seu desafortunado fim não contribui para tranqüilizar-me. A propósito, o retrato dela está pendurado na galeria superior. Marcella Boone, se o pintor conseguiu retratá-la com fidelidade, era uma coisinha tristonha e bonita; sei que morreu solteira. Às vezes, penso que a Sra. Cloris tinha razão: é uma casa ruim. Certamente não teve outra coisa senão dissabores para seus ocupantes anteriores. Todavia, tenho mais a dizer quanto à temível Sra. Cloris, pois tive hoje minha segunda conversa com ela. Na qualidade de pessoa mais equilibrada de Preacher's Comer que conheci até o momento, fui procurá-la esta tarde, após uma desagradável entrevista que relatarei a seguir. A lenha deveria ter sido entregue esta manhã e, quando passou o meio-dia sem que ela chegasse, resolvi ir ao lugarejo em meu passeio diário. Meu objetivo era visitar Thompson, o madeireiro com quem Calvin tratou o negócio. Foi um dia lindo, cheio do vigor brilhante do outono, e quando cheguei à casa dos Thompson (Cal, que permaneceu em casa para examinar melhor a biblioteca do Tio Stephen, deu-me a orientação adequada) sentia-me com a melhor disposição que já tive nestes últimos dias e estava preparado para desculpar o atraso de Thompson na entrega da lenha. O local era um maciço emaranhado de mato e prédios arruinados necessitados de pintura; à esquerda do celeiro, uma enorme porca, cevada para o abate em novembro, grunhia e fuçava no chiqueiro enlameado; no quintal cheio de lixo entre a casa e os outros prédios, uma mulher num esfarrapado vestido de tecido riscado jogava às galinhas o milho que trazia no avental. Quando a saudei, virou para mim um rosto pálido e insípido. A repentina mudança de expressão, de total vácuo e parvoíce para um terror frenético foi digna de ser observada. Só posso pensar que ela me tomou pelo próprio Stephen, pois ergueu a mão com os dedos esticados no sinal de mau-olhado e gritou. A comida das galinhas se espalhou pelo chão e as aves se asustaram, esvoaçando a cacarejar. Antes que eu pudesse emitir um som, a figura corpulenta e ameaçadora de um homem vestido apenas com roupas de baixo compridas saiu pesadamente da casa empunhando uma espingarda numa das mãos e trazendo um garrafão de bebida na outra. Pelo brilho avermelhado no olhar e o modo trôpego de andar, deduzi que fosse Thompson, o madeireiro, em pessoa. ― Um Boone! ― rugiu ele. ― Maldito seja! Largou o garrafão, que rolou pelo chão, e fez também o sinal de mau-olhado. Com a maior equanimidade que consegui reunir nas circunstáncias, declarei: ― Vim porque a lenha não foi. Pelo acordo que você fez com meu criado... ― Maldito seja seu criado, também! E, pela primeira vez, percebi que por detrás da atitude agressiva ele procurava ocultar um medo mortal. Comecei a temer seriamente que, em sua excitação, ele pudesse realmente usar a espingarda contra mim. Tentei falar cautelosamente: ― Como um gesto de cortesia, você poderia... ― Maldita seja sua cortesia! ― Muito bem, então ― repliquei com a dignidade que me foi possível. ― Desejolhe um bom-dia até que consiga controlar-se melhor. Com isso, dei-lhe as costas e comecei a caminhar em direção ao lugarejo. ― Não volte mais aqui! ― berrou ele atrás de mim. ― Fique com seus demônios, lá em cima! Maldito! Maldito! Maldito! Atirou uma pedra que me atingiu o ombro. Não lhe dei a satisfação de esquivar-me. Portanto, fui procurar a Sra. Cloris, decidido a decifrar ao menos o mistério da inimizade de Thompson. Ela é viúva (e não me venha com sua conversa de casamenteiro, Bones; ela tem pelo menos quinze anos mais que eu e já passei dos quarenta) e mora sozinha num encantador chalé à beira-mar. Encontrei-a pendurando a roupa lavada e ela pareceu genuinamente satisfeita por ver-me. Constatei que isto foi um grande alívio; é quase indescritivelmente vexatório ser um pária por motivo incompreensível. ― Sr. Boone ― cumprimentou ela, com uma leve reverência. ― Se veio para tratar de lavagem de roupa, saiba que não aceito serviço depois de setembro. Meu reumatismo causa tantas dores que já é sacrifício bastante lavar minha própria roupa. ― Eu gostaria que a lavagem de roupa fosse o assunto de minha visita. Vim pedir ajuda, Sra. Cloris. Preciso saber tudo que a senhora seja capaz de me contar a respeito de Chapelwaite e de Jerusalem's Lot, bem como o motivo pelo qual a gente daqui me encara com tanto temor e desconfiança! ― Jerusalem's Lot! O senhor sabe a respeito disso, então? ― Sim ― respondi. ― E visitei o local com meu companheiro, há uma semana. ― Meu Deus! Ela ficou branca como leite e cambaleou. Estiquei a mão a fim de ampará-la. Seus olhos rolavam horrivelmente e, por instante, tive certeza de que ela ia desmaiar. ― Sra. Cloris, sinto muito se disse algo que.. ― Entre ― convidou ela. ― O senhor precisa saber. Meu bom Jesus, os dias ruins voltaram! Recusou-se a falar até terminar de preparar chá forte em sua cozinha ensolarada. Quando o chá ficou pronto, ela passou algum tempo a fitar pensativamente o oceano. Inevitavelmente, nossos olhares foram atraídos para o promontório de Chapelwaite, onde a casa dominava o panorama do mar. O grande janelão refletia como um brilhante os raios do sol poente. Uma vista linda mas estranhamente perturbadora. De repente, ela se voltou para mim e declarou com veemência: ― Sr. Boone, precisa deixar Chapelwaite imediatamente! Fiquei perplexo. ― Tem havido um hálito ruim no ar desde que o senhor se mudou para aquela casa. Na semana passada ― desde que o senhor colocou os pés naquele lugar amaldiçoado ― aconteceram presságios e portentos. Um epíploo na face da lua; bandos da bacuraus que fazem ninhos nos cemitérios; um nascimento anormal. O senhor tem que partir! Quando recobrei a fala, disse da maneira mais suave possível: ― Essas coisas são sonhos, Sra. Cloris. Certamente a senhora deve saber disso. ― É sonho Barbara Brown ter dado à luz uma criança sem olhos? Ou Clifton Brockett ter encontrado uma trilha plana, com um metro e meio de largura, atravessando os bosques além de Chapelwaite, na qual todo o mato murchou e se tornou branco? E o senhor, que visitou Jerusalem's Lot, pode afirmar verdadeiramente que nada ainda vive lá? Não pude responder; a cena naquela igreja hedionda me surgiu diante dos olhos. Ela cerrou os punhos enrugados num esforço para acalmar-se. ― Sei dessas coisas não apenas através de minha mãe e da mãe dela. O senhor conhece a história de sua família no que se relaciona com Chapelwaite? ― Vagamente ― disse eu. ― A casa foi residência dos descendentes de Philip Boone desde a década de 1780; seu irmão Robert, meu avó, radicou-se em Massachusetts após uma discussão por causa de documentos roubados. Pouco sei a respeito dos descendentes de Philip, exceto que a sombra da infelicidade caiu sobre eles, passando de pai para filho e para os netos ― Marcella morreu num trágico acidente e Stephen caiu para a morte. Foi seu desejo que Chapelwaite se tornasse minha e dos meus, terminando, assim, com a briga de família. ― Nunca terminará ― murmurou a Sra. Cloris. ― Nada sabe a respeito da briga inicial? ― Robert Boone foi apanhado roubando coisas na escrivaninha do irmão. ― Philip Boone era louco ― disse ela. ― Um homem que traficava com o mal. A coisa que Robert Boone tentou remover da escrivaninha era uma bíblia profana, escrita em linguagens antigas: latim, druida e outras. Um livro infernal. ― De Vermis Mysterüs. Ela recuou como se tivesse levado uma bofetada. ― Sabe a respeito? ― Eu o conheço... toquei-o. Mais uma vez, ela deu a impressão de desmaiar. Levou a mão aos lábios como se tentasse abafar um grito. ― Sim ― prossegui. ― Em Jerusalem's Lot. No púlpito de uma igreja profanada e corrupta. ― Ainda está lá; ainda lá, então. Ela se balançou na cadeira. ― Eu esperava que Deus, em Sua sabedoria, tivesse-o atirado no fundo do inferno. ― Que relação existia entre Philip Boone e Jerusalem's Lot. ― Relação de sangue ― disse ela sombriamente. ― Ele trazia a Marca da Fera, embora andasse em trajes do Cordeiro. E na noite de 31 de outubro de 1789, Philip Boone desapareceu... e a população inteira daquele amaldiçoado lugarejo sumiu com ele. Ela pouco mais disse; com efeito, pouco mais parecia saber. Limitou-se a reiterar suas súplicas para que eu me fosse, alegando como motivo para isso algo a respeito de "sangue chamar sangue" e murmurando sobre "aqueles que vigiam e aqueles que guardam" : À medida que o crepúsculo avançava, ela pareceu mais agitada, em vez de acalmar-se. A fim de aplacá-la, prometi que seus desejos seriam levados em grande consideração. Voltei para casa, caminhando entre as sombras que aumentavam, minha boa disposição bastante dissipada e a cabeça girando com indagações que ainda agora me perseguem. Cal recebeu-me com a notícia de que os barulhos em nossas paredes haviam aumentado ― como posso atestar neste momento. Tento convencer-me de que são apenas ratos, mas, então, revejo o rosto aterrorizado e ansioso da Sra. Cloris. A lua se ergueu sobre o oceano, inchada, cheia, cor de sangue, manchando o mar com uma tonalidade maléfica. Minha mente retoma àquela igreja e (aqui uma linha riscada) Mas você não verá isso, Bones. É loucura demais. Creio que está na hora de dormir. Meus pensamentos estão com você. Lembranças CHARLES. (O seguinte foi extraído do diário de bolso de Calvin McCann) 20 de outubro de '50 Esta manhã, tomei a liberdade de forçar o fecho do livro; fiz isso antes que o Sr. Boone se levantasse da cama. Não adiantou; está tudo em código. Um código simples, creio. Talvez consiga decifrá-lo com a mesma facilidade que forcei o fecho. Estou certo de que é um diário, numa caligrafia estranhamente semelhante à do Sr. Boone. De quem era o livro, na prateleira mais obscura desta biblioteca, com um fecho vedando as páginas? Parece antigo, mas como é possível afirmar? O ar apodrecedor foi mantido isolado das páginas. Voltarei ao assunto mais tarde, se houver tempo; o Sr. Boone está decidido a revistar o porão. Temo que estes terríveis acontecimentos lhe façam mal à saúde ainda abalada. Devo tentar persuadi-lo a... Mas aí vem ele. 20 de outubro de 1850 CARO BONES, Não posse escrever Eu ainda não posso escrever a respeito Eu Eu Eu (Do diário de bolso de Calvin MeCann) 20 de outubro de 50 Como eu temia, a saúde dele não agüentou... Meu Deus, Pai nosso que estais no céu! Não suporto lembrar; não obstante, está enraizado, gravado a fogo em meu cérebro ― aquele horror no porão...! Agora, estou sozinho; oito e meia da noite; a casa em silêncio, mas... Encontrei-o desmaiado sobre a escrivaninha; ainda está dormindo; não obstante, como se portou nobremente enquanto fiquei paralisado, arrasado! Está pálido como cera, tem a pele fria. Não é a febre outra vez, graças a Deus. Não me atrevo a movê-lo ou abandoná-lo para ir ao povoado. Se eu fosse, quem voltaria comigo para ajudá-lo? Quem viria a esta casa amaldiçoada? Oh, o porão! As coisas naquele porão, que assombram nossas paredes! 22 de outubro de 1850 CARO BONES, Voltei a mim, embora debilitado, após trinta e seis horas de inconsciência. Voltei a mim... que pilhéria sinistra e amarga! Jamais voltarei a ser o mesmo ― jamais. Vi-me cara a cara com uma loucura e um horror que estão além dos limites da expressão humana. E ainda não chegou o fim. Se não tosse por Cal, creio que me suicidaria neste momento. Ele é uma ilha de sanidade em meio a toda esta loucura. Você saberá de tudo. Equipamo-nos com velas para explorar o porão e elas produziam um brilho forte que era bastante adequado ― infernalmente adequado! Calvin tentou dissuadir-me, mencionando minha recente doença, dizendo que o máximo que encontraríamos talvez fosse alguns ratos saudáveis marcados para morrer envenenados. Permaneci decidido, porém; Calvin soltou um suspiro e respondeu: ― Faça como quiser, então, Sr. Boone. A entrada do porão consiste de um alçapão no chão da cozinha (que Cal me assevera ter pregado com tábuas fortes desde então) e só conseguimos erguê-lo com grande esforço. Um cheiro fétido e avassalador subiu da escuridão, semelhante ao fedor que impregnava o lugarejo no outro lado do rio Royal. A vela que segurava iluminou uma escada íngreme que descia para a escuridão. Os degraus se encontravam em lamentável estado de conservação ― numa certa altura, um deles desaparecera por completo, deixando lugar a um buraco negro ― e era bastante fácil perceber como a infeliz Marcella podia ter morrido ali ― Cuidado, Sr. Boone! ― disse Cal. Respondi-lhe que não tinha intenção de ser outra coisa senão cauteloso e descemos a escada. O chão era de terra batida, as paredes de sólido granito e quase não havia umidade. O local em nada se parecia com um paraíso dos ratos, pois não existiam as coisas que os ratos costumam usar para fazer seus ninhos, tais como caixotes velhos, móveis quebrados, pilhas de papel e assim por diante. Levantamos nossas velas, iluminando um pequeno círculo, mas ainda conseguindo enxergar muito pouco. O chão tinha uma inclinação gradativa que parecia estar sob a sala de visitas principal e o salão de jantar ― isto é, em direção ao leste. Foi nessa direção que avançamos. Tudo estava no mais completo silêncio. O fedor no ar tornava-se cada vez mais forte e a escuridão parecia fechar-se sobre nós como lã, como se sentisse ciúmes da luz que a depusera temporariamente, após tantos anos de reinado absoluto. Na extremidade oposta, as paredes de granito cediam lugar a madeira polida que dava a impressão de ser totalmente negra e desprovida de qualidades refletivas. .Ali terminava o porão, deixando o que parecia ser uma alcova que se abria do espaço principal. A alcova estava situada em ângulo, o que impossibilitava inspecioná-la sem dobrar a esquina. Calvin e eu dobramos a esquina. Foi como se um espectro apodrecido do sinistro passado da casa se erguesse diante de nós. Na alcova havia uma única cadeira e, acima dela, pendurado num gancho preso a uma das robustas vigas do teto, estava um apodrecido laço de corda de cânhamo. ― Então, foi aqui que ele se enforcou ― murmurou Cal. ― Meu Deus! ― Sim... com o cadáver da filha caído ao pé dos degraus atrás dele. Cal começou a falar; então, vi seus olhos fixarem um ponto às minhas costas e suas palavras se transformaram num grito. Como, Bones, poderei descrever a visão que nos surgiu diante dos olhos? Como posso lhe contar a respeito dos hediondos moradores que viviam em nossas paredes? A parede da extremidade oposta abriu-se com um giro, e, daquela escuridão, uma cara nos lançou um olhar malévolo ― uma cara com olhos tão negros como o próprio Estige. A boca se abria num sorriso sem dentes, agoniado; uma mão amarela, apodrecida, esticou-se em nossa direção. A criatura emitiu um som horrível, semelhante a um miado, e avançou um passo cambaleante para nós. A luz de minha vela incidiu sobre ela... E vi a lívida marca do laço em seu pescoço! Por detrás dela, algo se moveu ― algo com que sonharei até o dia em que todos os meus sonhos cessarem: uma moça com o rosto pálido putrefato e um sorriso de caveira; uma moça cujo pescoço tombava para o lado num ângulo inacreditável. Eles nos queriam; sei disso. E sei que nos teriam arrastado para aquela escuridão, tornando-nos seus, se eu não tivesse jogado minha vela diretamente sobre a figura hedionda do homem, atirando-lhe logo em seguida a cadeira que estava sob o laço. Depois disso, tudo é confusão. Minha mente baixou a cortina. Acordei, como disse, em meu quarto, com Cal ao meu lado. Se eu pudesse partir, fugiria desta casa de horror com a camisola esvoaçando em meus calcanhares. Mas não posso. Transformei-me num peão em um drama mais profundo e tenebroso. Não me pergunte como sei; apenas sei. A Sra. Cloris tinha razão quando falou em sangue chamar sangue; e o quanto estava horrivelmente certa quando falou daqueles que vigiam e daqueles que guardam. Temo haver despertado uma Força que estava adormecida há meio século no tenebroso lugarejo de Salem's Lot, uma Força que matou meus ancestrais e os fez infernalmente prisioneiros como nosfératu ― os Nãomortos. E tenho temores ainda maiores, Bones, mas ainda só conheço uma parte. Se eu soubesse... se ao menos eu soubesse tudo! CHARLES. Postscriptum: E, naturalmente, escrevo isto apenas para mim; estamos isolados de Preacher's Corner. Não ouso levar minha mácula até lá para colocar esta carta no correio e Calvin se recusa a sair de perto de mim. Talvez se Deus for bom, estas linhas cheguem até você de algum modo. C. (Do diário de bolso de Calvin McCann) 23 de outubro de '50 Hoje ele está mais forte; conversamos rapidamente sobre as aparições no porão; concordamos que não foram alucinações nem tinham origem ectoplásmica, mas eram reais. Será que o Sr. Boone desconfia, como eu, de que elas se foram? Talvez; os ruídos cessaram; não obstante, tudo parece ominoso, ainda encoberto por um manto escuro. Tenho a impressão de que aguardamos no enganador Olho da Tempestade.. Encontrei um maço de papéis num dos dormitórios, na última gaveta de uma escrivaninha com tampa corrediça. Alguma correspondência e notas com recibo levaram-me a crer que se tratava do quarto de Robert Boone. Apesar disso, o documento mais interessante são anotações rabiscadas no verso de anúncio de chapéus de pele de castor para homens. Em cima está escrito: Bem-aventurados os mansos. Abaixo, está escrita a aparente tolice: bkmdvhnrumahodozmynvok lesaoerthrndgszsuapsjs Creio que seja a chave para decifrar o livro em código que encontrei na biblioteca. O código acima é, sem dúvida, bastante elementar e foi usado na Guerra de Independência com o nome de "Grade de Cerca': Eliminando-se os "nulos" da segunda anotação, tem-se: bmvnuaoomiio eaetrdssass Colocando-se as letras da linha inferior nos intervalos da linha superior, o resultado é a citação original das Bem-aventuranças. Antes de me atrever a mostrar isto ao Sr. Boone, devo certificar-me do conteúdo do livro... 24 de outubro de 1850 CARO BONES, Um acontecimento espantoso ― Cal, sempre calado até estar absolutamente seguro do que diz (uma rara e admirável qualidade humana!), encontrou o diário de meu avô Robert. Declara modestamente que a descoberta foi acidental, mas desconfio que perseverança e trabalho árduo lhe permitiram decifrar o código no qual o livro foi escrito. De todo modo, que luz sombria ele lança sobre os mistérios desta casa! A primeira notação está datada de 1 ° de junho de 1789 e a última de 27 de outubro de 1789 ― quatro dias antes do cataclísmico desaparecimento a que se referiu a Sra. Cloris. É uma narrativa de obsessão cada vez mais profunda ― ou, melhor, de loucura cada vez maior ― e esclarece de modo medonho as relações que ligavam meu tio-avô Philip, o povoado de Jerusalem's Lot e o livro que está naquela igreja profanada. Segundo Robert Boone, o povoado é mais antigo que Chapelwaite (que foi construída em 1782) e Preacher's Comer (conhecido naquela época por Preacher's Rest e fundado em 1741); foi fundado por um grupo dissidente da fé puritana em 1710, uma seita liderada por um obstinado fanático religioso chamado James Boon. Que sobressalto esse nome me causou! Creio que não pode existir dúvida quanto ao parentesco desse tal Boon com a minha família. A Sra. Cloris não poderia estar mais correta em sua crença supersticiosa de que o parentesco consangüíneo é de crucial importância na questão; e relembro com horror a resposta dela quando indaguei a respeito de Philip e a relação dele com Salem's Lot. "Relação de sangue", replicou ela ― e temo que seja verdade. O povoado transformou-se numa comunidade permanente instalada ao redor da igreja na qual Boon pregava ― ou imperava. Meu avô dá a entender que Boon também mantinha relações íntimas com muitas mulheres do povoado, assegurando-lhes que essa era a vontade e o caminho de Deus. Em conseqüência, o lugarejo tornou-se uma anomalia que só poderia ter existido naqueles tempos isolados e estranhos, nos quais a crença em bruxas e a fé na Virgem Maria caminhavam de mãos dadas: um lugarejo religioso um tanto degenerado, com cruzamentos consangüíneos, controlado por um pregador meio louco cujas verdades gêmeas eram a Bíblia e o sinistro Morada dos Demônios de De Goudge; uma comunidade na qual rituais de exorcismo eram praticados regularmente; uma comunidade de incesto, com a insanidade mental e defeitos físicos que costumam acompanhar tal pecado. Desconfio (e creio que Robert Boone também desconfiava) que um dos filhos bastardos de Boon tenha fugido (ou sido seqüestrado) de Jerusalem's Lot e procurado sua fortuna ao sul do lugarejo ― e assim teve origem nossa linhagem atual. Sei, por cálculos de minha família, que nosso clã supostamente teve origem naquela região de Massachusetts que tão tardiamente foi transformada no Estado Soberano do Maine. Meu bisavô, Kenneth Boone, enriqueceu em resultado do então florescente comércio de peles. Foi sua fortuna, aumentada pelo tempo e por investimentos conscienciosos, que erigiu este lar de meus ancestrais, construído muito depois de sua morte em 1863. Seus filhos, Philip e Robert, construíram Chapelwaite. Sangue chama sangue, afirmou a Sra. Cloris. Seria possível que Kenneth fosse filho de James Boon, tivesse fugido à loucura do pai e do lugarejo por este controlado, só para que seus filhos, sem terem conhecimento do fato, construíssem o lar dos Boone a menos de três quilômetros da origem dos Boone? Se assim foi, não parece que alguma Mão enorme e invisível nos tenha guiado? De acordo com o diário de Robert, James Boon era velho em 1789 e realmente devia ser. Atribuindo-lhe a idade de vinte e cinco anos na época da fundação do povoado, em 1789 ele teria cento e quatro anos uma idade prodigiosa. O trecho abaixo foi extraído diretamente do diário de Robert Boone: 4 de agosto de 1789 Hoje, encontrei pela primeira vez esse Homem ao qual meu Irmão se ligou de modo tão doentio; devo admitir que o tal Boon controla um estranho Magnetismo que muito me perturbou. É um verdadeiro Ancião, com barba branca, trajando uma sotaina negra que me pareceu um tanto obscena. Ainda mais perturbador foi o fato de estar rodeado de mulheres, como um sultão cercado por seu harém; e Philip assegura que ele ainda é ativo, embora tenha pelo menos oitenta anos... Eu só visitara o lugarejo uma vez anteriormente e não tornarei a visitá-lo; as ruas são silenciosas e cheias do temor que o Velho inspira de seu púlpito: temo também que parentes se tenham cruzado com parentes, tão grande é o número de fisionomias semelhantes. Tive a impressão de que, para qualquer lado que me voltasse, via sempre o rosto do Velho... todos são tão descorados; parecem desbotados, como se desprovidos de qualquer vitalidade. Vi crianças sem olhos e sem narizes, mulheres que choravam, balbuciavam e apontavam para o céu sem razão aparente, ouvi citações das Escrituras mescladas com frases sobre o Demônio;... Philip queria que eu permanecesse para assistir aos serviços religiosos, a idéia daquele Ancião no púlpito, diante da população consangüínea, causou-me repulsa e arranjei uma desculpa... As anotações precedentes e subseqüentes a esta falam do crescente fascínio de Philip por James Boon. A 1° de setembro de 1789, Philip foi batizado na igreja de Boon. Seu irmão escreve: "Estou perplexo de espanto e horror ― meu Irmão se transformou diante de meus próprios olhos ―, dá até mesmo a impressão de estar ficando parecido com o desgraçado Ancião." A primeira menção ao livro ocorre em 23 de julho. O diário de Robert registra-o sumariamente: "Phihp regressou do pequeno povoado esta noite com o que me pareceu um semblante um tanto desvairado. Recusou-se a falar até a hora de irmos deitar, quando disse que Boon indagara a respeito de um livro intitulado Mistérios do Verme. Para agradar Philip, prometi escrever a Johns & Goodfellow pedindo informações sobre o assunto; Philip mostrou-se quase exageradamente agradecido." Em 12 de agosto, a seguinte anotação: "Recebi hoje duas cartas... e uma de Johns & Goodfellow, de Boston. Têm notícia do livro pelo qual Philip demonstrou interesse. Existem apenas cinco exemplares neste país. A carta foi bastante fria, o que é realmente esquisito. Conheço Henry Goodfellow há anos." 13 de agosto: Philip ficou loucamente excitado com a carta de Goodfellow; recusa-se a revelar o motivo. Limita-se a dizer que Boon está extremamente ansioso para obter um exemplar. Não posso imaginar a razão, pois, a julgar pelo título, parece apenas um inofensivo tratado sobre jardinagem... Estou preocupado com Philip; parece tornar-se mais esquisito dia a dia. Agora, desejo que não tivéssemos regressado a Chapelwaite. O verão está quente, opressivo, cheio de maus presságios... No diário de Robert existem apenas mais duas referências ao famigerado livro (ele parece não ter avaliado a verdadeira importância do livro, mesmo no fim). A julgar pelo registro de 4 de setembro: Solicitei a Goodfellow que atue como agente de Philip na questão da compra do livro, embora minha opinião se insurja contra isso. O que adianta tergiversar, porém? Se eu recusar, Philip não tem seu próprio dinheiro? Em troca, obtive a promessa de Philip no sentido de repudiar aquele inadmissível batismo... não obstante, ele está tão frenético, quase febril; não confio nele. Estou irremediavelmente no mato sem cachorro quanto ao assunto... Finalmente, em 16 de setembro: O livro chegou hoje, com um bilhete de Goodfellow declarando que não quer mais negócios comigo... Philip excitou-se a um ponto anormal; praticamente arrancou-me o Livro das mãos. Está escrito em latim popular e em caracteres rúnicos que não consigo compreender. A Coisa parece quase quente ao tato, dá a impressão de vibrar em minhas mãos, como se contivesse um imenso Poder... Lembrei a Philip sua promessa de repúdio e ele se limitou a rir de modo feio e louco, sacudindo o livro diante de mim e gritando repetidamente: "Conseguimos! É nosso! O Verme! O Segredo do Verme!" Saiu correndo, suponho que ao encontro de seu louco Benfeitor, e não tornei a vê-lo hoje... Nada mais há a respeito do livro, mas fiz certas deduções que me parecem ao menos plausíveis. Primeiro, que o tal livro, como disse a Sra. Cloris, foi o motivo da briga entre Robert e Philip; segundo, que é um repositório de feitiçaria malfazeja, possivelmente de origem druídica (muitos dos rituais de sangue druídicos foram preservados por escrito pelos conquistadores romanos da Inglaterra em nome da erudição e muitos desses infernais livros de receitas estão entre a literatura proibida no mundo inteiro); terceiro, que Boon e Philip tencionavam utilizar o livro para seus próprios fins. Talvez, de alguma maneira pervertida, tivessem boas intenções, mas não acredito. Creio que muito antes já se haviam empenhado a quaisquer poderes desconhecidos que existam além dos limites do Universo; poderes que talvez existam além da própria tessitura do Tempo. Os últimos registros do diário de Robert Boone emprestam uma tênue luz de corroboração a tais especulações e deixo que falem por si mesmos: 26 de outubro de 1789 Hoje ocorreu uma tremenda algazarra em Preacher's Corner; Frawley, o ferreiro, agarrou-me o braço e quis saber "o que seu irmão e aquele louco anti-Cristo andam tramando por lá". Goody Randall afirma que têm aparecido no céu Sinais que prenunciam um grande e iminente desastre. Nasceu uma vaca com duas cabeças. Quanto a mim, não sei o que é iminente; talvez seja a Loucura de meu Irmão. Seus cabelos encaneceram quase de um dia para outro, seus olhos são grandes círculos injetados de sangue dos quais o agradável brilho da Sanidade Mental parece haver sumido. Ele sorri, murmura sozinho e, por algum motivo que só ele conhece, passou a ficar em nosso porão quando não está em Jerusalem's Lot. Os bacuraus se congregaram em volta da casa e no gramado; seus pios em meio à neblina se mesclam ao barulho do mar num grito sobrenatural que impede qualquer idéia de dormir. 27 de outubro de 1789 Segui Philip esta noite quando ele partiu para Jerusalem's Lot, mantendo-me a uma distância segura para não ser descoberto. Os malditos bacuraus se aglomeraram nos bosques, enchendo tudo com seu cântico mortífero e enlouquecedor. Não me atrevi a atravessar a ponte; o povoado estava às escuras, com exceção da igreja, que estava iluminada por um brilho vermelho que parecia transformar as altas janelas ogivais em olhos do Inferno. Vozes se erguiam e baixavam numa Litania do Demônio, às vezes rindo, às vezes soluçando. O próprio solo parecia contorcer-se e gemer sob meus pés, como se arcasse com um peso terrível. Fugi, perplexo e aterrorizado, os gritos infernais dos bacuraus retinindo-me nos ouvidos enquanto eu corria através dos bosques tenebrosos. Tudo avança para o Clímax, ainda desconhecido e imprevisível. Não ouso dormir por causa dos sonhos que surgem, mas também não me atrevo a permanecer acordado para enfrentar os terrores loucos que possam aparecer. A noite está cheia de sons horríveis e temo que... E, não obstante, sinto o impulso de voltar, de observar, de ver. Parece-me que Philip ― e o Ancião ― chamam por mim. As aves malditas malditas malditas E aqui termina o diário de Robert Boone. Mesmo assim, Bones, você deve perceber que próximo ao fim ele alega que o próprio Philip parecia chamá-lo. Minha conclusão foral é formada com base nessas linhas, no que dizem a Sra. Cloris e os outros, mas, sobretudo, naquelas figuras aterrorizadoras do porão, mortas e, não obstante, vivas. Nossa linhagem continua a ser desafortunada, Bones. Paira sobre nós uma praga que se recusa a permanecer enterrada; vive uma hedionda vida de sombra nesta casa e naquele lugarejo. E a culminação do ciclo se aproxima outra vez. Sou o último com o sangue dos Boone. Temo que algo saiba disso e que eu esteja no nexus de um esforço maligno fora de qualquer compreensão racional. O aniversário é na véspera de Todos-os-Santos, de hoje a uma semana. Como devo proceder? Se ao menos você estivesse aqui para aconselhar-me, para ajudarme! Se ao menos você estivesse aqui! Preciso saber tudo; preciso voltar ao lugarejo abandonado. Que Deus me proteja! CHARLES. (Do diário de bolso de Calvin McCann) 25 de outubro de '50 O Sr. Boone dormiu durante o dia quase inteiro. Está pálido e muito mais magro. Temo que a recaída da febre seja inevitável. Enquanto tornava a encher sua jarra de água, vi duas cartas endereçadas ao Sr. Granson, que está na Flórida, e não foram levadas ao correio. Ele planeja retornar a Jerusalem's Lot; se eu permitir, será o mesmo que matá-lo. Ousarei ir às escondidas até Preacher's Correr e alugar uma charrete? Devo fazê-lo ― mas se ele acordar? Se, ao voltar, eu não o encontrar em casa? Os barulhos em nossas paredes recomeçaram. Graças a Deus ele ainda dorme! Estremeço ao pensar nisso tudo. Mais tarde Levei o jantar ao Sr. Boone numa bandeja. Ele pretende levantar-se mais tarde e, a despeito de suas evasivas, sei o que planejava fazer; não obstante irei a Preacher's Correr. Vários dos pós soporíferos que lhe foram receitados durante sua recente moléstia ainda estão nas minhas coisas; ele tomou um com o chá, sem saber. Está dormindo outra vez. Deixá-lo a sós com as Coisas que perambulam dentro de nossas paredes me aterroriza; permitir que ele permaneça mais um só dia nesta casa aterroriza-me muito mais. Tranquei-o no quarto. Deus permita que ele ainda esteja aqui, a salvo e adormecido, quando eu voltar com a charrete! Ainda mais tarde Apedrejaram-me! Apedrejaram-me como a um cão selvagem e hidrófobo! Monstros e demônios! Eles, que se dizem homens! Estamos prisioneiros aqui... As aves, os bacuraus, começaram a reunir-se. 26 de outubro de 1850 CARO BONES, É quase noite e acabo de acordar, tendo dormido durante a maior parte das últimas vinte e quatro horas. Embora Cal nada tenha dito, creio que colocou pó soporífero em meu chá, pois percebeu minhas intenções.. É um bom e fiel amigo, com as melhores intenções, de modo que não tocarei no assunto. Não obstante, estou decidido. Amanhã será o dia. Estou calmo e decidido, mas também tenho a impressão de sentir o sutil renascimento da febre. Se assim for, tem que ser amanhã. Talvez hoje à noite fosse ainda melhor; contudo, nem as chamas do próprio Inferno poderiam induzir-me a pôr os pés naquele lugarejo depois do crepúsculo. Caso eu não torne a lhe escrever, Bones, Deus o abençoe e proteja. CHARLES. Postscriptum ― As aves estão gritando e os horríveis barulhos nas paredes recomeçaram. Cal pensa que não escuto, mas está enganado. C. (Do diário de bolso de Calvin McCann) 27 de outubro de '50 5 horas da manhã. É impossível persuadi-lo. Muito bem. Irei com ele. 4 de novembro de 1850 CARO BONES, Fraco, porém lúcido. Não tenho certeza quanto à data, mas meu almanaque assegura, pela hora da maré e do pôr-do-sol, que eu devo estar correto. Sentado à mesa onde me sentei para lhe escrever minha primeira carta de Chapelwaite, olho para o mar escuro no qual os últimos vestígios de luz desaparecem com rapidez. Nunca mais o verei. Esta noite é a minha noite; abandono-o em troca das sombras que possam existir. Como se quebra de encontro aos rochedos, esse mar! Lança nuvens de espuma salgada ao ar escuro, como bandeiras fazendo estremecer o chão sob meus pés. Vejo meu reflexo na vidraça, pálido como um vampiro. Estou sem alimento desde 27 de outubro e deveria estar sem água, se Cal não tivesse, naquele dia, colocado a jarra de água em minha mesa de cabeceira. Oh, Cal! Ele não mais existe. Ele deixou de existir, Bones. Foi em meu lugar, no lugar deste farrapo de braços finos como palitos e rosto de caveira que vejo refletido na vidraça escura. E, apesar de tudo, talvez ele seja o mais afortunado; pois nenhum sonho o assombra como me tem assombrado estes últimos dias ― formas contorcidas que se esgueiram nos corredores de pesadelo do delírio. Mesmo agora minhas mãos tremem; sujei a página de tinta. Naquela manhã, Cal defrontou-se comigo quando eu estava prestes a sair às escondidas ― e eu pensava ser tão astucioso. Eu lhe dissera que estava disposto a partir e lhe pedi que fosse até Tandrell, a cerca de dezesseis quilômetros daqui, e alugasse transporte num local onde éramos menos notórios. Ele concordou em ir e vi-o partir a pé pela estrada litorânea. Logo que sumiu de vista, aprontei-me depressa, vestindo um casaco e cachecol (pois o dia estava gelado; o primeiro toque do inverno que chegava vinha na brisa cortante daquela manhã). Desejei por um momento ter uma arma de fogo, mas logo ri de mim mesmo por sentir tal desejo. De que vale uma arma numa situação como essa? Saí pela despensa, parando para uma última olhada ao mar e ao céu; para respirar o ar fresco contra o odor putrefato que eu iria sentir em breve; para observar o vôo de uma gaivota que caçava abaixo das nuvens. Voltei-me ― e lá estava Calvín McCann. ― O senhor não irá sozinho ― disse ele, com a expressão mais séria que já vi em seu rosto. ― Mas, Calvin... ― comecei. ― Não, nem mais uma palavra. Vamos juntos e fazemos o que precisamos, ou levo o senhor de volta à casa, nem que seja pela força. O senhor não está bem de saúde. Não irá sozinho. É impossível descrever as emoções conflitantes que me dominaram: confusão, irritação, gratidão ― e, a despeito de tudo, a maior delas foi amor. Caminhamos em silêncio, passando pelo pavilhão de verão e pelo relógio de sol, descendo a encosta cheia de mato e penetrando nos bosques. Tudo mortalmente silencioso ― nenhuma ave piava, nenhum grilo se fazia ouvir. O mundo parecia envolto numa cortina de silêncio. Havia apenas o perene cheiro de sal e, de longe, o leve odor de fumaça de lenha. Os bosques eram uma gritante mistura de cores, mas, a meus olhos, o escarlate parecia predominar sobre todas as outras. Logo o cheiro de sal passou e outro odor mais sinistro o substituiu; aquela putrefação que já mencionei. Quando chegamos à pinguela que atravessava o Royal, esperei que Cal instasse comigo mais uma vez para desistir, mas ele não o fez. Parou, fitou a sinistra torre da igreja, que parecia zombar do céu, e depois olhou para mim. Prosseguimos. A passos rápidos mas temerosos, caminhamos até a igreja de James Boon. A porta ainda estava entreaberta, como a havíamos deixado na visita anterior, e a escuridão do interior parecia escarnecer de nós. Ao subirmos os degraus, meu coração pareceu encher-se de bronze; minha mão tremia ao segurar a aldrava e empurrá-la. O mau cheiro lá dentro era mais forte e mefítico que antes. Penetramos no vestíbulo escuro e, sem nos determos, passamos à nave da igreja. A desordem era total. Algo vasto estivera em ação no local e ocorrera uma violenta devastação. Bancos virados e jogados a esmo. A cruz profanada estava encostada na parede leste e um buraco irregular no reboco acima dela indicava a força com que fora atirada. Os lampiões de azeite tinham sido arrancados de seus elevados suportes e o fedor de óleo de baleia se mesclava ao terrível mau cheiro que impregnava o lugarejo. E na alameda central, como um horrível rastro de noiva, havia uma trilha de pus escuro misturado com sinistros filetes de sangue. Nossos olhos a acompanharam até o púlpito ― a única coisa intacta à vista. Sobre ele, deitado de través sobre o Livro blasfemo, os olhos vidrados voltados em nossa direção, estava o corpo de um cordeiro abatido. ― Meu Deus ― sussurrou Cal. Aproximamo-nos, evitando pisar na gosma que sujava o chão. As paredes ecoavam nossos passos e pareciam transformá-los no som de uma gigantesca gargalhada. Subimos juntos ao nártex. O cordeiro não fora esquartejado nem comido; dava mais a impressão de ter sido espremido até que seus vasos sangüíneos estourassem sob a pressão. O sangue se espalhava sobre o púlpito em poças espessas e nauseabundas, escorrendo até a base... não obstante, sobre o livro ele era transparente e através dele era possível ver os caracteres rúnicos, como por um vidro colorido! ― Temos que tocar nele? ― indagou Cal, sem fraquejar. ― Sim. Precisamos levá-lo. ― Que fará o senhor? ― O que deveria ter sido feito há sessenta anos: vou destruí-lo. Afastamos o corpo do cordeiro de cima do livro; chocou-se no chão com um ruído hediondo. Agora, as páginas manchadas de sangue pareciam vivas, com um brilho próprio de cor escarlate. Meus ouvidos começaram a retinir e zumbir; um cântico grave dava a impressão de emanar das paredes. Pela expressão contorcida no rosto de Cal, percebi que ele também ouvia. O chão sob nós estremeceu, como se o espectro familiar que assombrava a igreja descesse sobre nós, a fim de proteger seus parentes. A tessitura de sanidade do espaço e do tempo pareceu torcer-se e estalar; a igreja dava a impressão de estar cheia de espectros e iluminada com o brilho infernal do eterno fogo frio. Tive a sensação de ver James Boon, hediondo e monstruoso, dançando ao redor do corpo estendido de uma mulher; e meu tioavô Philip atrás dele, um acólito trajando um manto negro com capuz, segurando uma faca e uma tigela. "Deum vobiscum magna vermis... ".. As palavras tremiam e se contorciam na página ante meus olhos, encharcadas no sangue do sacrifício, oferenda a uma criatura que vagava além das estrelas... Uma congregação cega, de cruzamentos consangüíneos, balançandose em louvores dementes e demoníacos; caras deformadas por uma expectativa voraz e inominável... E o latim foi substituído por uma língua mais antiga, velha quando o Egito era jovem e as pirâmides ainda não existiam, velha quando a Terra ainda flutuava num firmamento disforme e fervente de gás: "Gyyagin vardar Yogsoggoth! Yerminis! Gyyagin! Gyyagin! " O púlpito começou a rachar-se e partir-se, sendo empurrado para cima... Calvin gritou e ergueu um braço para proteger o rosto. O nártex estremeceu num movimento enorme e tenebroso como 'o de um navio sacudido pela tempestade. Peguei o livro e o segurei afastado de mim; parecia cheio do calor do sol e pressenti que me transformaria em cinzas, cegando-me. ― Fuja! ― berrou Calvin. ― Fuja! Mas fiquei petrificado e a estranha presença encheu-me como a um vaso antigo que esperara durante anos ― durante gerações! ― Gyyagin vardar! ― gritei. ― Servo de Yogsoggoth, o Inominável! O Verme de além do Espaço! Devorador de Estrelas! Aquele que cega o Tempo! Verminis! Agora chegou a Hora de Encher, a Hora da Entrega! Verminis! Alyah! Alyah! Gyyagín! Calvin empurrou-me e tropecei, a igreja girando diante de mim. Caí ao chão. Minha cabeça bateu na quina de um banco tombado e encheu-se de fogo vermelho ― que, apesar de tudo, deu a impressão de limpá-la. Tateei em busca dos fósforos que trouxera comigo. Um trovão subterrâneo encheu o ambiente. Reboco caía das paredes e do teto. O enferrujado sino na torre badalou um carrilhão asfixiado e demoníaco, em ritmo com as vibrações. Acendi um fósforo. Levei a chama ao livro no instante em que o púlpito foi lançado pelos ares numa explosão de lascas de madeira. Um enorme buraco negro surgiu no local; Cal cambaleou à beira do buraco, as mãos estendidas para a frente, o rosto contraído num grito que escutarei para sempre. Então, ocorreu uma imensa onda de carne cinzenta e vibrante. O fedor transformouse numa maré de pesadelo. Um enorme derramar de uma geléia viscosa e purulenta, uma tremenda e horrível forma que pareceu emergir como um foguete das entranhas da terra. Apesar disso, com uma terrível e repentina compreensão que homem nenhum pode ter conhecido, percebi que era apenas um anel, um segmento, de um verme monstruoso que existira, sem olhos, durante muitos anos, na escuridão oculta sob a abominável igreja! O livro incendiou-se em minhas mãos e a Coisa pareceu emitir um grito mudo acima de mim. Calvin foi atingido de raspão e atirado através da igreja como uma boneca com o pescoço quebrado. Amainou ― a coisa sumiu, deixando apenas um enorme buraco de bordas irregulares, rodeado de lama negra, e um pavoroso som gritado e lamentoso que deu a impressão de diminuir através de distâncias colossais até desaparecer. Baixei os olhos. O livro estava transformado em cinzas. Comecei a rir e, depois, a uivar como um animal ferido. Toda a sanidade mental me abandonou e sentei-me no chão, com o sangue escorrendo da testa, gritando e balbuciando naquelas trevas profanadas, enquanto Cal, atirado no canto oposto, fitava-me com olhos vidrados e cheios de pavor. Não faço idéia de quanto tempo passei naquele estado. É impossível saber. Todavia, quando recobrei as faculdades mentais, as sombras marcavam compridas riscas ao meu redor e eu estava sentado à luz do crepúsculo. Pelo canto do olho, percebi um movimento no buraco do chão do nártex. Uma mão tateou sobre as tábuas rachadas do assoalho. Meu riso louco engasgou-se. Toda a histeria fundiu-se em uma dormência insensível. Com uma lentidão terrível e vingativa, uma figura devastada içou-se da escuridão e uma caveira carcomida pela metade olhou para mim. Besouros rastejavam na testa descarnada. Uma sotaina apodrecida pendia das clavículas tortas e putrefactas. Só os olhos viviam ― vermelhos e insanos, fitavam-me com algo mais que loucura; brilhavam com a vida vazia das regiões desoladas situadas além da orla do Universo. Avançou a fim de me arrastar para a escuridão. Foi então que fugi, gritando desesperadamente, abandonando o cadáver de meu amigo de toda a vida naquele lugar de morte. Corri até que o ar deu a impressão de queimar como magma nos pulmões e no cérebro. Corri até chegar de volta a esta casa possessa e marcada, até entrar no meu quarto, onde caí e tenho permanecido como um morto até hoje. Corri porque, mesmo naquele estado de loucura, mesmo na forma daquela ruína humana morta mas animada, vi a semelhança de família. Ainda assim, não era Robert nem Philip, cujos retratos estão na galeria superior. Aquele rosto putrefacto pertencia a James Boon, Guardião do Verme! Ele ainda vive em algum lugar nos tortuosos e negros caminhos que ligam Jerusalem's Lot a Chapelwaite ― e a Coisa ainda vive. A queima do livro mutilou-a, mas existem outros exemplares. Contudo, estou no umbral e sou o último da linhagem dos Boone. Devo morrer para o bem de toda a humanidade... quebrando para sempre a corrente. Agora, vou ao mar, Bones. Minha jornada, como minha narrativa, está chegando ao fim. Que Deus lhe dê descanso e paz. CHARLES. Esta estranha coleção de documentos foi eventualmente recebida pelo Sr. Everett Granson, a quem tinham sido endereçadas as cartas. Presume-se que uma desafortunada recaída da febre cerebral que o acometeu pela primeira vez após a morte da esposa em 1848 tenha causado a insanidade mental de Charles Boone, levando a assassinar o companheiro e amigo de muitos anos, Sr. Calvin McCann. Os registros no diário de bolso do Sr. McCann constituem um fascinante exemplo de falsificação, indubitavelmente perpetrado por Charles Boone no intento de reforçar suas ilusões paranóicas. Em pelo menos dois detalhes, porém, provou-se que Charles Boone estava enganado. Primeiro, quando o povoado de Jerusalem's Lot foi "redescoberto" (no sentido histórico do termo, é claro), o chão do nártex, embora apodrecido, não mostrava sinais de explosão ou de grandes danos. Apesar de os velhos bancos estarem tombados e haver várias vidraças quebradas, pode-se presumir que isto foi obra de vândalos das povoações vizinhas no decorrer dos anos. Entre os habitantes mais idosos de Preacher's Correr e Tandrill ainda correm boatos a respeito de Jerusalem's Lot (talvez, naquela época, tenha sido esse tipo inofensivo de folclore local que levou a mente de Charles Boone ao rumo fatal), mas isto parece pouco relevante. Segundo, Charles Boone não era o último de sua linhagem. Seu avô, Robert Boone, gerou ao menos dois filhos bastardos. Um morreu na infância. O segundo adotou o sobrenome Boone e radicou-se na cidade de Central Falls, em Rhode Island. Sou o último descendente desse ramo da linhagem Boone; primo em terceiro grau de Charles Boone, separado dele por três gerações. Os documentos estão em meu poder há dez anos. Ofereçoos à publicação por ocasião de minha mudança para o lar dos ancestrais dos Boone, Chapelwaite, na esperança de que o leitor encontrará no coração piedade pela pobre alma desorientada de Charles Boone. Até onde posso perceber, ele estava correto em apenas uma coisa: esta casa necessita urgentemente dos serviços de um exterminador de ratos. Pelo barulho, existem ratos enormes nas paredes. Assinado, James Robert Boone 2 de outubro de 1971

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

A mulher no quarto




A questão é:
Será ele capaz de fazer aquilo? Ele não sabe. Ele sabe que ela as mastiga de vez em quando, fazendo caretas por causa do horrível gosto de laranja, emitindo um som de palitos de picolé sendo partidos. Mas estas são pílulas diferentes... cápsulas de gelatina. O rótulo da caixa diz: COMPLEXO DARVON. Ele as encontrou no armário remédios dela e rolou-as na mão, pensando. Era um remédio que o médico receitara antes de ela voltar a ser internada no hospital. Algo para passar a noite. O armário está cheio de remédios, cuidadosamente arrumados em fileiras como frascos de drogas de curandeiro. Sinais do mundo ocidental. SUPOSITÓRIOS FLEET. Ele jamais utilizou um supositório na vida e a idéia de enfiar no reto algo gorduroso que se derrete com o calor do corpo causa-lhe repulsa. Não existe dignidade em enfiar coisas na bunda. LEITE DE MAGNÉSIA DE PHILLIPS. FÓRMULA ANACIN PARA ARTRITE. PEPSO-BISMOL. E assim por diante. É possível reconstituir o progresso da moléstia dela por meio dos remédios. Mas estas pílulas são diferentes. Parecem com o Complexo Darvon normal apenas por serem cápsulas gelatinosas. Mas são maiores, o que seu falecido pai costumava chamar de pílulas "pica de cavalo". O rótulo diz: Aspirina 350g ― Darvon 100g. Seria ela capaz de mastigá-las, mesmo se ele lhe desse em mãos? Seria? A casa ainda continua a funcionar. A geladeira liga e desliga automaticamente, a caldeira também dá partida e, depois, pára, a intervalos regulares o cuco rabujento sai do relógio para anunciar as horas e meias-horas. Ele presume que depois que ela morrer caberá a Kevin e ele desmontar a casa. Ela se foi, mesmo. A casa inteira o diz. Ela. está no Hospital Central de Maine, em Lewiston. Quarto 312. Foi internada quando a dor se tornou tão forte que ela nem mais conseguia ir à cozinha fazer café. Às vezes, quando ele a visitava, ela chorava sem perceber. O elevador sobe barulhentamente e ele se vê examinando o certificado azul da companhia de manutenção de elevadores. O certificado deixa bem claro que, com barulho ou sem ele, o elevador é seguro. Ela já está no hospital há três semanas e hoje fizeram-lhe uma operação chamada "cortotomia". Ele não sabe como se escreve, mas é assim que se pronuncia. O médico disse a ela que "cortotomia" consiste em enfiar uma agulha no pescoço e fazer que penetre até o cérebro. O médico explicou que é algo semelhante a enfiar um alfinete comprido numa laranja e espetar um caroço. Quando a agulha atingir o centro da dor, enviarão um sinal de rádio ao longo da agulha e, quando o sinal atingir a ponta, o centro da dor será eliminado. Como desligar um aparelho de TV. Então, o câncer na barriga deixará de incomodá-la tanto. A idéia de tal operação deixa-o ainda mais inquieto que a idéia de supositórios derretendo-se calidamente em seu reto. Lembra-lhe um livro de Michael Crichton, chamado The Terminal Man, que trata da colocação de fios no cérebro das pessoas. Segundo Crichton, pode ser uma cena muito desagradável. É melhor acreditar. A porta do elevador se abre no terceiro andar e ele sai. Esta é a ala antiga do hospital e tem o cheiro adocicado da serragem que costumam espalhar sobre o vômito nas feiras do interior. Ele deixou as pílulas no porta-luvas do carro. E não bebeu nada antes desta visita. As paredes são pintadas em dois tons: marrom em baixo, branco em cima. Ele reflete que a única combinação de duas cores no mundo que poderia ser mais deprimente que marrom e branco é cor-de-rosa ,e preto. Corredores de hospital pintados assim... A idéia o faz sorrir e sentir náuseas ao mesmo tempo. Dois corredores se cruzam em T em frente ao elevador e existe um bebedouro no qual ele sempre pára a fim de adiar um pouco as coisas. Peças de equipamento hospitalar aqui e acolá, como estranhos brinquedos num playground. Uma maca com lados cromados e rodas de borracha, o tipo de coisa em que o doente é levado à sala de cirurgia quando estão prontos para efetuar a "cortotomia". Também existe um grande objeto circular cuja função ele desconhece. Uma bandeja rolante com uma haste vertical na qual estão pendurados dois vidros, como uma pintura de seios feita por Salvador Dali. Num dos corredores fica a sala das enfermeiras e risos lubrificados a café chegam até ele. Ele bebe água e depois se encaminha para o quarto dela. Tem medo do que possa encontrar e reza para que ela esteja dormindo. Se estiver, ele não a despertará. Acima da porta de cada quarto existe uma pequena luz quadrada. Quando um paciente toca a campainha, a luz se acende, com um brilho vermelho. Em ambos os sentidos do corredor, pacientes andam devagar, usando roupões baratos de hospital sobre pijamas também fornecidos pelo hospital. Os roupões têm finas listras azuis e brancas, bem como golas redondas. Os pijamas de hospital, uma espécie de roupa de baixo, são chamados "johnnies". Os "johnnies" ficam bem nas mulheres, mas parecem esquisitos nos homens porque parecem combinações ou camisolas que chegam à altura dos joelhos. Os homens sempre parecem usar chinelos marrons de couro de imitação. As mulheres preferem chinelas tricotadas, com uma borla de lã. A mãe dele possui um par e as chama de "mulas". Os pacientes lembram-lhe um. filme de terror chamado "A Noite dos MortosVivos". Todos andam devagar, como se alguém lhes destampasse os órgãos como vidros de maionese e os líquidos ficassem balançando lá dentro, prestes a se entornarem. Alguns usam bengalas. Seu andar vagaroso ao passearem pelos corredores é assustador, mas também possui dignidade. É o andar de pessoas que se dirigem lentamente para lugar nenhum, o andar de universitários de becas e barretes acadêmicos dirigindo-se ao auditório para uma reunião. Música ectoplásmica soa por toda parte, emitida por rádios transistorizados. Vozes tagarelam. Ele pode ouvir Black Oak Arkansas cantando "Jim Dandy" (uma voz de falsete grita alegremente "Vai, Jim Dandy ! Vai Jim Dandy!" para os lentos caminhantes no corredor). Pode ouvir o mediador de um programa de debates discutindo Nixon num tom que foi mergulhado em ácido, como uma pena fumegante de caneta. Pode ouvir uma polca cantada em francês ― Lewiston ainda é uma cidade na qual se fala francês e as pessoas gostam quase tanto de dançar quanto de se apunhalarem nos bares da parte mais baixa de Lisbon Street. Ele pára diante da porta do quarto da mãe e durante algum tempo, esteve bastante desorientado a ponto de vir embriagado. Envergonhava-se de estar bêbado diante da mãe, embora ela estivesse por demais dopada e cheia de Elavil para perceber. Elavil é um tranqüilizante que ministram aos pacientes de câncer a fim de não se aborrecerem tanto por estarem morrendo. A rotina que ele seguia era comprar uma dúzia de cervejas Black Label no Mercado de Sonny, à tarde. Sentava com as crianças para assistir aos programas que elas gostavam de ver à tarde na televisão. Três cervejas durante "Rua Sésamo", duas durante "Mister Rogers", uma durante "Companhia Elétrica". Depois, uma com o jantar. Levava as outras cinco cervejas no carro. Era um trajeto de trinta e cinco quilômetros entre Raymond e Lewiston, pelas Rodovias 302 e 202, de modo que era possível estar bastante de porre quando chegava ao hospital, restando ainda uma ou duas cervejas. Trazia coisas para a mãe e as deixava no carro, a fim de ter uma desculpa para voltar e apanhá-las ― e também beber mais meia cerveja, continuando alto. Dava-lhe também uma desculpa para urinar ao ar livre e, de algum modo, isto era o melhor de toda aquela miserável estória. Sempre estacionava o carro no parqueamento lateral, que era de terra batida, esburacada e congelada em novembro, de modo que o ar frio da noite assegurava total contração da bexiga. Urinar num dos banheiros do hospital assemelhava-se demais a uma apoteose de toda aquela experiência hospitalar: o botão da campainha para chamar a enfermeira ao lado da caixa de descarga do vaso sanitário, a alavanca cromada aparafusada num ângulo de 45 graus, o vidro de desinfetante cor-de-rosa acima da pia. Coisa ruim. É melhor acreditar. A vontade de beber no caminho de volta para casa era nenhuma. Portanto, o que sobrasse da cerveja era guardado na geladeira, em casa, e quando completava meia dúzia... ele jamais teria vindo se soubesse que seria tão ruim. A primeira idéia que lhe passa pela cabeça é Ela não é uma laranja e a segunda é Ela está realmente morrendo depressa, agora, como ela tivesse hora marcada para pegar um trem para o nada. Ela luta na cama, sem se mexer, exceto pelos olhos, mas lutando no interior do corpo, pois algo se mexe lá dentro. Tem o pescoço alaranjado por alguma coisa semelhante a mercúrio cromo e um curativo abaixo da orelha esquerda, onde algum médico cantarolante enfiou a agulha de rádio e explodiu 60% de seu controle motor juntamente com o centro de dor. Seu olhar o acompanha como os olhos de um Jesus Cristo estereotipado. ― Acho melhor você não me ver esta noite, Johnny. Não estou muito bem. Talvez esteja melhor amanhã. ― O que sente? ― Coceira. O corpo inteiro me coça. Minhas pernas estão fechadas? Ele não consegue verificar se as pernas dela estão fechadas. São apenas um V elevado sob o amarrotado lençol do hospital. Faz muito calor no quarto. No momento, não há paciente na outra cama. Ele pensa: Companheiros de quarto chegam e saem, mas minha mãe fica para sempre. Cristo! ― Estão, sim, Mamãe. ― Puxe-as para baixo, está bem, Johnny? Depois, é melhor você ir embora. Nunca antes estive numa situação como esta. Não consigo mexer nada. Meu nariz coça. Não é de causar pena, sentir coceira no nariz e não poder coçá-lo? Ele coça o nariz dela e depois segura-lhe as pernas através do lençol e puxa-as para baixo. Pode segurar ambas as pernas com apenas uma das mãos, sem maiores dificuldades, embora não tenha mãos particularmente grandes. Ela geme. As lágrimas lhe escorrem dos olhos para as orelhas. ― Mamãe? ― Pode puxar minhas pernas para baixo? ― Acabo de fazer isso. ― Oh. Está bem, então. Creio que estou chorando. Não queria chorar na sua frente. Gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto. ― Quer um cigarro? ― Pode me dar um gole d'água primeiro, Johnny? Estou seca corno madeira velha. ― Claro. Ele pega o copo com o canudinho flexível e sai do quarto, indo até o bebedouro. Um homem gordo com uma atadura elástica na perna caminha lentamente pelo corredor. Não está usando um dos roupões listrados e segura o "johnny", fechando-o atrás de si. Ele enche o copo no bebedouro e volta ao Quarto 312. Ela parou de chorar. Seus lábios se fecham sobre o canudinho de um modo que lembra a ele um camelo que viu num filme de viagens. O rosto está magro, descarnado. A lembrança mais vívida que ele tem dela na vida que levou como seu filho é de uma época em que tinha doze anos. Ele, seu irmão Kevin e aquela mulher tinham-se mudado para o Maine a fim de que ela pudesse cuidar dos pais. A mãe era velha e inválida. Pressão alta tornara a avó dele senil e, para somar insulto ao mal físico, deixara-a cega. Feliz 68° aniversário. Boa piada. E ela ficava deitada na cama o dia inteiro, cega e senil, usando enormes fraldas e calças de borracha, incapaz de se lembrar do que fora servido no café da manhã, mas capaz de recitar os nomes de todos os Presidentes dos Estados Unidos, até Ike Eisenhower. E assim, três gerações da família tinham vivido juntas naquela casa onde ele tão recentemente encontrara as pílulas (embora ambos os avós já tivessem morrido há muito tempo) e, aos doze anos, ele reclamava de algo durante o café da manhã. Não se recorda de que, mas reclamava de alguma coisa. Sua mãe estivera lavando as fraldas mijadas da avó e passando-as pelos rolos secadores da antiga máquina de lavar roupa. Voltando-se para ele, batera-lhe com uma das fraldas e a primeira pancada da fralda molhada e pesada virara o prato de mingau que ele estava tomando, atirando-o através da mesa. A segunda pancada o atingira nas costas, sem machucar, mas fazendo-o calar-se de susto e parar de reclamar. E aquela velha encarquilhada que agora jazia sobre a cama naquele quarto de hospital tornara a bater-lhe repetidamente com a fralda molhada, dizendo: Cale essa boca tagarela, a única coisa que você tem de grande é a língua e trate de mantê-la quieta até que o resto de você fique do mesmo tamanho ― e cada palavra grifada era acompanhada de uma pancada com a fralda da avó. Quaisquer outras reclamações que ele tivesse a fazer simplesmente se evaporaram. Não havia no mundo oportunidade para conversa fiada. Naquele dia e para sempre, ele descobriu que não existe no mundo algo tão perfeito para fixar a impressão de um menino de doze anos quanto ao seu lugar no esquema, de acordo com a devida perspectiva, que levar nas costas uma pancada com uma fralda molhada da avó. Depois disso, ele levara quatro anos para reaprender a arte de bancar o espertinho. Ela se engasga um pouco com a água e o assusta, apesar de estar pensando em dar as pílulas a ela. Torna a perguntar se ela quer um cigarro. ― Se não for incômodo para você ― responde ela. ― Depois, é melhor você ir. Talvez eu esteja melhor amanhã. Ele tira um Kool de um dos maços espalhados sobre a mesinha de cabeceira e o acende. Segurando-o entre o polegar e o indicador da mão direita, leva-o aos lábios dela, que tira uma tragada, fazendo um bico com os lábios para sugar o filtro. A tragada é fraca; a fumaça lhe escapa pelos lábios. ― Tive que viver sessenta anos para que meu filho segurasse um cigarro para mim. ― Não me incomodo. Ela tira outra tragada e prende o filtro com os lábios durante tanto tempo que ele ergue o olhar para fitar os olhos dela e percebe que estão fechados. ― Mamãe? Ela entreabre vagamente os olhos. ― Johnny? ― Exato. ― Há quanto tempo está aqui? ― Não muito. Acho melhor eu ir embora e deixar você dormir. ― Hmrnmm. Ele apaga o cigarro no cinzeiro e sai furtivamente do quarto, pensando: Quero falar com aquele médico. Diabo, quero falar com o médico que fez aquilo. Ao entrar no elevador, reflete que a palavra "doutor" se transforma em sinônimo de "homem" depois que um certo grau de proficiência na profissão é atingido, como se fosse previsto e esperado que os médicos devam ser cruéis para, assim, chegarem a um grau especial de humanidade. Mas. ― Não creio que ela dure muito mais ― diz ele ao irmão mais tarde, naquela mesma noite. O irmão mora em Andover, cento e dez quilômetros a oeste. Só vai ao hospital uma ou duas vezes por semana. ― Mas a dor melhorou? ― indaga Kev. ― Ela diz que sente coceiras. Tem as pílulas no bolso do paletó. Sua esposa já foi dormir. Tira as pílulas do bolso, roubadas da casa vazia da mãe, onde outrora todos eles moraram com os avós. Enquanto fala, gira a caixa entre os dedos, como um pé de coelho. ― Bem, então ela está melhor. Para Kev tudo está melhor, sempre, como se a vida caminhasse para um clímax sublime. É uma opinião da qual o irmão mais moço não compartilha. ― Ela está paralisada. ― Interessa, a esta altura? ― Claro que interessa! ― explode ele, pensando nas pernas dela sob o lençol branco amarrotado. ― Ela está morrendo, John. ― Ainda não morreu. Na realidade, é isso que o horroriza. Daqui em diante, a conversa prosseguirá em círculos, com os lucros indo para a companhia telefônica. Mas este é o ponto crucial: ela está morrendo, mas ainda não morreu. Simplesmente jaz naquele leito de hospital com uma etiqueta presa ao pulso, escutando rádios fantasmas passearem pelo corredor. E ela terá que lutar contra o tempo, diz o médico. É um sujeito grandalhão, com uma barba ruiva alourada. Tem mais de um metro e noventa de altura, ombros heróicos. O médico o conduziu delicadamente para o corredor quando ela começou a cochilar. E prossegue: ― Entenda: numa operação como a "cortotomia", algum dano motor e quase inevitável. Agora, sua mãe já tem algum movimento na mão esquerda. Podemos esperar, razoavelmente, que ela recupere a mão direita dentro de duas a quatro semanas. ― Ela voltará a andar? O médico fita judiciosamente o teto de cortiça furada do corredor. Sua barba nasce desde o colarinho da camisa quadriculada e, por algum motivo ridículo, Johnny se lembra de Algerson Swinbume; ora, não podia dizer. O homem à sua frente é o oposto de Swinbume, sob todos os aspectos. ― Eu diria que não. Ela perdeu muito terreno. ― Vai ficar inválida pelo resto da vida? ― Sim, creio que é uma suposição razoável. Ele começa a sentir alguma admiração por aquele homem, que esperava que fosse seguramente detestável. É uma sensação seguida de desgosto: precisa sentir admiração pela mera verdade? ― Por quanto tempo ela pode viver assim? ― É difícil dizer. (Estava ficando melhor, pensou ele.) Agora, o tumor está bloqueando um dos rins. O outro funciona normalmente. Quando o tumor bloquear o segundo, ela dormirá. ― Coma urêmico? ― Sim ― diz o médico, mas com um pouco mais de cautela. "Uremia" é um termo técnico-patológico, geralmente de uso exclusivo dos médicos e legistas. Mas Johnny o conhece porque sua avó morreu da mesma causa, embora não tivesse câncer. Seus rins deixaram de funcionar e ela morreu flutuando em urina interna até a caixa torácica. Morreu na cama, em casa, à hora do jantar. Johnny foi o primeiro a suspeitar de que ela estivesse realmente morta e não dormindo da maneira comatosa, de boca aberta, que é costume dos velhos. Sua velha boca desdentada estava repuxada para dentro, lembrando um tomate cujo miolo foi extraído e depois ficou esquecido na prateleira da cozinha durante vários dias. Duas lágrimas tinham escorrido dos olhos. Ele colocou um espelhinho redondo de maquilagem junto dos lábios durante um minuto e, quando o espelho não se embaçou e escondeu a imagem daquela boca de tomate murcho, chamou a mãe. Tudo aquilo pareceu certo como isto agora parecia errado. ― Ela ainda se queixa de dor. E de coceiras. O médico bate solenemente com o dedo na cabeça, como Victor de Groot nas velhas caricaturas de psiquiatras. ― Ela imagina a dor. Nem por isso é menos real. Real para ela. Eis porque o tempo é tão importante. Sua mãe não pode mais contar o tempo em termos de segundos, minutos e horas. Deve reestruturar essas unidades em dias, semanas, meses. Ele compreende o que o homem corpulento está dizendo e sente-se impotente. É como o leve tinir de uma campainha. Ele não pode conversar mais com o médico. É um técnico. Fala com palavras suaves a respeito do tempo, como se pudesse agarrar o conceito de tempo com a mesma facilidade que um caniço de pesca. E talvez possa. ― O senhor pode fazer mais alguma coisa por ela? ― Muito pouco. Mas ele se porta com serenidade, como se aquilo estivesse certo. Afinal, não está alimentando "falsas esperanças". ― Pode ser pior que um coma? ― Claro que pode. Não podemos prever essas coisas com um alto grau de precisão. É como se existisse um tubarão solto no interior do corpo do doente. Ela pode inchar. ― Inchar? ― Seu abdome pode aumentar, diminuir e depois tornar a aumentar. Mas por que falar nisso agora? Creio que, com certa segurança, podemos dizer que que eles fariam o serviço. Mas se não fizerem? Ou suponhamos que me apanhem? Não quero ser processado sob acusação de praticar eutanásia. Mesmo que seja absolvido. Não tenho causas a defender. Ele pensa nas manchetes dos jornais berrando MATRICÍDIO e faz uma careta. Sentado no carro, no estacionamento, revira interminavelmente a caixa de pílulas com os dedos. COMPLEXO DARVON. A questão continua a ser: Será ele capaz? Deve fazê-lo? Ela disse: Eu gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto. Kevin anda falando em arrumar um quarto em sua casa, para que ela não morra no hospital. O hospital quer que ela vá embora. Deram-lhe uma nova pílula e ela entrou em delírio. Isso ocorreu quatro dias depois da "cortotomia". Eles gostariam que ela fosse para outro lugar, porque até hoje ninguém aperfeiçoou uma "cancerotomia" infalível. E, a esta altura, se tirassem todo o câncer, nada restaria a ela exceto as pernas e a cabeça. Ele imagina como o tempo deve ser para ela: como algo que escapou ao controle, como uma caixa de costura cheia de novelos espalhados pelo chão para um gato brincar. Os dias no Quarto 312. As noites no Quarto 312. Eles amarram um barbante no interruptor da campainha e no dedo indicador da mão esquerda, porque ela já não pode movimentar suficientemente a mão quando acha que vai precisar da "comadre". De qualquer maneira, não faz muita diferença, porque ela não pode sentir a pressão lá embaixo; no interior de sua barriga bem poderia existir um monte de serragem. Ela evacua na cama e urina na cama ― e só percebe que o fez quando sente o cheiro. Dos setenta e cinco quilos que pesava, diminuiu para quarenta e dois e os músculos do corpo estão tão flácidos que ela é apenas um saco vazio ligado ao cérebro, como um boneco de criança. Haveria alguma diferença na casa de Kevin? Seria capaz de cometer homicídio? Ele sabe que é homicídio. O pior tipo de homicídio ― o matricídio ―, como se ele fosse um feto consciente num dos primeiros livros de terror de ficção científica escritos por Ray Bradbury, decidido a virar a mesa e abortar o animal que o gerou. De qualquer modo, talvez a culpa seja dele. Foi o Único filho nutrido dentro dela, um bebê temporão, quase na época da menopausa. Seu irmão Kevin foi adotado quando um médico sorridente disse a ela que jamais poderia conceber um filho. E, naturalmente, o câncer que agora lhe destruía as entranhas começara no útero, como um segundo filho, sombrio irmão gêmeo dele. A vida dele e a morte dela tinham começado no mesmo lugar. Deveria ele não fazer o que já estava fazendo agora de forma tão lenta e desajeitada? Vem dando a ela aspirina, às escondidas, para a dor que ela imagina sentir. Ela guarda os comprimidos numa caixinha de balas, na gaveta da mesa de cabeceira do hospital, juntamente com os cartões desejando pronto restabelecimento e os óculos que já não têm serventia. Tiraram-lhe as dentaduras por medo que ela as enfiasse pela garganta abaixo e morresse asfixiada, de modo que agora ela simplesmente chupa os comprimidos de aspirina até ficar com a língua ligeiramente esbranquiçada. Claro que ele poderia dar-lhe as pílulas; três ou quatro seriam suficientes. Cem gramas de aspirina e trinta gramas de Darvon administrados numa mulher cujo peso diminuiu trinta e três por cento em cinco meses. Ninguém sabe que ele tem as cápsulas, nem Kev, nem a esposa. Ele pensa que talvez tenham colocado um paciente na outra cama do Quarto 312, de modo que não haverá motivo para preocupações. Pode escapar em segurança. Pensou que talvez isso fosse realmente melhor. Se houver outra mulher no quarto, suas opções estarão eliminadas e ele poderá considerar o fato como um sinal de anuência da Providência. Ele acha que... ― Você está com melhor aspecto esta noite. ― Estou mesmo? ― Claro. Como se sente? ― Oh, não muito bem. Não muito bem, esta noite. ― Vamos ver você mexer a mão direita. Ela ergue a mão do lençol. Ela flutua um momento, de dedos abertos, diante de seus olhos e toma a cair. Ele sorri e ela retribui o sorriso. Ele pergunta: ― Viu o doutor hoje? ― Sim, ele esteve aqui. É bondade dele vir todos os dias. Quer me dar um pouco d'água, Johnny? Ele lhe dá água por meio do canudinho flexível. ― É bondade sua vir aqui com tanta freqüência, Johnny. Você é um bom filho. Ela está chorando outra vez. A outra cama está vazia, parecendo acusá-lo. De vez em quando, um dos roupões listrados de azul e branco passa diante da porta, caminhando pelo corredor. A porta do quarto está entreaberta. Ele tira delicadamente o copo da mão dela, pensando como um idiota: Este copo está meio cheio ou meio vazio? ― Como vai sua mão esquerda? ― Oh, está ótima. ― Vamos ver. Ela levanta a mão. Sempre foi canhota e talvez seja por isso que aquela mão se recuperou tão bem dos devastadores efeitos da "cortotomia". Ela fecha o punho. Flexiona os dedos. Estala levemente os nós dos dedos. Então, a mão torna a cair sobre o lençol. Ela reclama: ― Mas não tenho sensação nenhuma na mão. ― Deixe-me ver uma coisa. Vai ao guarda-roupa, abre-o e enfia a mão por detrás do casaco que ela usava ao chegar ao hospital, a fim de pegar a bolsa. Ela mantém a bolsa no armário porque é paranóica com relação a ladrões; ouviu dizer que alguns dos atendentes são verdadeiros artistas no furto, capazes de levar tudo que conseguem ter ao alcance das mãos. Ela soube através de uma das companheiras de quarto, que já recebeu alta há muito tempo, que uma mulher internada na ala nova foi roubada em quinhentos dólares que escondia num sapato. Ultimamente, a mãe dele tem sido paranóica a respeito de muitas coisas e, certa vez, lhe disse que um homem se esconde sob sua cama na calada da noite. A culpa cabe em parte à combinação de drogas que estão experimentando nela. Drogas que fazem a benzedrina que ele tomava ocasionalmente na universidade parecer uma substância inócua. Pode-se escolher à vontade nos armários trancados que ficam nas extremidades dos corredores, perto das salas das enfermeiras: excitantes, sedativos, analgésicos e soporíferos. E a morte, talvez ― a morte misericordiosa como um doce cobertor negro. As maravilhas da ciência moderna. Ele leva a bolsa de volta à cama. Abre-a. ― Pode pegar alguma das coisas que estão aqui? ― Oh, Johnny, não sei... Ele diz em tom persuasivo: ― Experimente. Por mim. A mão esquerda dela se ergue do lençol como um helicóptero aleijado. Voa. Mergulha. Sai da bolsa com uma folha amarrotada de papel absorvente. Ele aplaude: ― Ótimo! Muito bem! Mas ela vira o rosto para o outro lado. ― O ano passado, eu era capaz de puxar dois carrinhos carregados de pratos de comida com estas mãos. Se tem que existir uma ocasião, é agora. Faz muito calor no quarto, mas o suor na testa dele é frio. Ele pensa: Se ela não pedir aspirina, eu não o farei. Não esta noite. E sabe que se não for esta noite, nunca mais. Muito bem. ― Pode me dar duas das minhas pílulas, Johnny? É como ela sempre pede. Ela está proibida de tomar qualquer remédio além da medicação prescrita pelo médico, porque perdeu tanto peso que desenvolveu o que seus amigos universitários que usavam tóxicos costumavam chamar de "uma pesada": a imunidade do corpo fica a uma margem ínfima da dose letal. Mais uma pílula e a pessoa morre. Dizem que foi isso que ocorreu com Marilyn Monroe. ― Trouxe algumas pílulas de casa. ― É mesmo. ― São ótimas para dor. Estende a caixa para ela, que só consegue ler de muito perto. Ela franze a testa para as letras grandes no rótulo. ― Já tomei antes esse tal Darvon. Não adiantou. ― Este é mais forte. Ela ergue os olhos da caixa e o encara. Pergunta distraidamente: ― É mesmo? Ele só consegue sorrir como um tolo. É incapaz de falar. E como a primeira vez em que esteve com uma mulher: aconteceu no banco traseiro do carro de um amigo e quando ele voltou para casa a mãe perguntou se ele se divertira ― e ele só conseguiu exibir aquele sorriso tolo. ― Posso mastigá-las? ― Não sei. Pode experimentar uma. ― Está bem. Não permita que percebam. Ele abre a caixa e retira a tampa de plástico do vidro. Puxa o algodão do gargalo. Será ela capaz de fazer tudo isso com aquela mão esquerda aleijada? Eles acreditariam? Ele não sabe. Eles talvez também não saibam. Talvez nem mesmo se importem. Ele sacode o vidro, deixando cair meia dúzia de pílulas na palma da mão. Percebe que ela o está observando. Meia dúzia é demais; até ela deve saber. Se ela disser algo a respeito, ele guardará todas as pílulas de volta no vidro e lhe oferecerá uma contra dor de artrite. Uma enfermeira passa silenciosamente pelo corredor e a mão dele treme, chacalhando as pílulas cinzentas, mas a enfermeira não olha para dentro do quarto a fim de verificar como está passando a "garota da cortotomia". A mãe dele não diz nada, limitando-se a olhar para as pílulas como se fossem perfeitamente normais (se é que isto existe). Mas, por outro lado, ela jamais gostou de celebrações; seria incapaz de quebrar uma garrafa de champanha em seu próprio barco para batizá-lo. ― Lá vamos nós ― diz ele em voz perfeitamente natural. E coloca a primeira pílula na boca da mãe. Ela mastiga pensativamente a pílula com as gengivas até dissolver a cápsula de gelatina. Então, faz uma careta. ― Tem gosto ruim. Então, eu não... ― Não. Não é tão ruim. Ele lhe dá outra. E mais outra. El á as mastiga com aquela mesma expressão pensativa. Ele lhe dá a quarta. Ela sorri e ele percebe, horrorizado, que a língua dela ficou amarela. Talvez se ele lhe der uma pancada na barriga ela vomite tudo. Mas não pode. Seria incapaz de bater na mãe. ― Quer ver se minhas pernas estão juntas? ― Primeiro mastigue estas. Dá-lhe a quinta pílula. E a sexta. Então verifica se as pernas dela estão juntas. Estão. Ela diz: ― Acho que vou dormir um pouco, agora. ― Muito bem. Vou beber água. ― Você sempre foi um bom filho, Johnny. Ele coloca o vidro na caixa e enfia a caixa na bolsa, deixando a tampa de plástico em cima do lençol. Deixa a bolsa aberta ao lado da mãe e pensa: Ela pediu a bolsa. Eu a trouxe e abri para ela, logo antes de ir embora Ela disse que podia tirar da bolsa o que desejava. Disse que chamaria a enfermeira para tornar a guardar a bolsa no armário. Ele sai e bebe água. Há um espelho acima do bebedouro e ele põe a língua para fora, examinando-a. Quando volta ao quarto, ela está dormindo com as mãos juntas. As veias das mãos são grossas e saltadas. Ele a beija na testa e os olhos dela se mexem sob as pálpebras, mas não se abrem. Sim. Ele não sente diferença alguma, nem para melhor nem para pior. Encaminha-se para a porta do quarto e se lembra de mais uma coisa. Volta para perto da mãe, retira a caixa da bolsa, tira o vidro da caixa e o limpa cuidadosamente na camisa. Então, aperta as pontas dos dedos da inerte mão esquerda da mãe de encontro ao vidro. Então, coloca-o de volta no lugar e sai rapidamente do quarto, sem olhar para trás. Volta para casa e espera o telefone tocar, desejando ter dado outro beijo nela. Enquanto espera, assiste à televisão e bebe muita água.A MULHER NO QUARTO A questão é: Será ele capaz de fazer aquilo? Ele não sabe. Ele sabe que ela as mastiga de vez em quando, fazendo caretas por causa do horrível gosto de laranja, emitindo um som de palitos de picolé sendo partidos. Mas estas são pílulas diferentes... cápsulas de gelatina. O rótulo da caixa diz: COMPLEXO DARVON. Ele as encontrou no armário remédios dela e rolou-as na mão, pensando. Era um remédio que o médico receitara antes de ela voltar a ser internada no hospital. Algo para passar a noite. O armário está cheio de remédios, cuidadosamente arrumados em fileiras como frascos de drogas de curandeiro. Sinais do mundo ocidental. SUPOSITÓRIOS FLEET. Ele jamais utilizou um supositório na vida e a idéia de enfiar no reto algo gorduroso que se derrete com o calor do corpo causa-lhe repulsa. Não existe dignidade em enfiar coisas na bunda. LEITE DE MAGNÉSIA DE PHILLIPS. FÓRMULA ANACIN PARA ARTRITE. PEPSO-BISMOL. E assim por diante. É possível reconstituir o progresso da moléstia dela por meio dos remédios. Mas estas pílulas são diferentes. Parecem com o Complexo Darvon normal apenas por serem cápsulas gelatinosas. Mas são maiores, o que seu falecido pai costumava chamar de pílulas "pica de cavalo". O rótulo diz: Aspirina 350g ― Darvon 100g. Seria ela capaz de mastigá-las, mesmo se ele lhe desse em mãos? Seria? A casa ainda continua a funcionar. A geladeira liga e desliga automaticamente, a caldeira também dá partida e, depois, pára, a intervalos regulares o cuco rabujento sai do relógio para anunciar as horas e meias-horas. Ele presume que depois que ela morrer caberá a Kevin e ele desmontar a casa. Ela se foi, mesmo. A casa inteira o diz. Ela. está no Hospital Central de Maine, em Lewiston. Quarto 312. Foi internada quando a dor se tornou tão forte que ela nem mais conseguia ir à cozinha fazer café. Às vezes, quando ele a visitava, ela chorava sem perceber. O elevador sobe barulhentamente e ele se vê examinando o certificado azul da companhia de manutenção de elevadores. O certificado deixa bem claro que, com barulho ou sem ele, o elevador é seguro. Ela já está no hospital há três semanas e hoje fizeram-lhe uma operação chamada "cortotomia". Ele não sabe como se escreve, mas é assim que se pronuncia. O médico disse a ela que "cortotomia" consiste em enfiar uma agulha no pescoço e fazer que penetre até o cérebro. O médico explicou que é algo semelhante a enfiar um alfinete comprido numa laranja e espetar um caroço. Quando a agulha atingir o centro da dor, enviarão um sinal de rádio ao longo da agulha e, quando o sinal atingir a ponta, o centro da dor será eliminado. Como desligar um aparelho de TV. Então, o câncer na barriga deixará de incomodá-la tanto. A idéia de tal operação deixa-o ainda mais inquieto que a idéia de supositórios derretendo-se calidamente em seu reto. Lembra-lhe um livro de Michael Crichton, chamado The Terminal Man, que trata da colocação de fios no cérebro das pessoas. Segundo Crichton, pode ser uma cena muito desagradável. É melhor acreditar. A porta do elevador se abre no terceiro andar e ele sai. Esta é a ala antiga do hospital e tem o cheiro adocicado da serragem que costumam espalhar sobre o vômito nas feiras do interior. Ele deixou as pílulas no porta-luvas do carro. E não bebeu nada antes desta visita. As paredes são pintadas em dois tons: marrom em baixo, branco em cima. Ele reflete que a única combinação de duas cores no mundo que poderia ser mais deprimente que marrom e branco é cor-de-rosa ,e preto. Corredores de hospital pintados assim... A idéia o faz sorrir e sentir náuseas ao mesmo tempo. Dois corredores se cruzam em T em frente ao elevador e existe um bebedouro no qual ele sempre pára a fim de adiar um pouco as coisas. Peças de equipamento hospitalar aqui e acolá, como estranhos brinquedos num playground. Uma maca com lados cromados e rodas de borracha, o tipo de coisa em que o doente é levado à sala de cirurgia quando estão prontos para efetuar a "cortotomia". Também existe um grande objeto circular cuja função ele desconhece. Uma bandeja rolante com uma haste vertical na qual estão pendurados dois vidros, como uma pintura de seios feita por Salvador Dali. Num dos corredores fica a sala das enfermeiras e risos lubrificados a café chegam até ele. Ele bebe água e depois se encaminha para o quarto dela. Tem medo do que possa encontrar e reza para que ela esteja dormindo. Se estiver, ele não a despertará. Acima da porta de cada quarto existe uma pequena luz quadrada. Quando um paciente toca a campainha, a luz se acende, com um brilho vermelho. Em ambos os sentidos do corredor, pacientes andam devagar, usando roupões baratos de hospital sobre pijamas também fornecidos pelo hospital. Os roupões têm finas listras azuis e brancas, bem como golas redondas. Os pijamas de hospital, uma espécie de roupa de baixo, são chamados "johnnies". Os "johnnies" ficam bem nas mulheres, mas parecem esquisitos nos homens porque parecem combinações ou camisolas que chegam à altura dos joelhos. Os homens sempre parecem usar chinelos marrons de couro de imitação. As mulheres preferem chinelas tricotadas, com uma borla de lã. A mãe dele possui um par e as chama de "mulas". Os pacientes lembram-lhe um. filme de terror chamado "A Noite dos MortosVivos". Todos andam devagar, como se alguém lhes destampasse os órgãos como vidros de maionese e os líquidos ficassem balançando lá dentro, prestes a se entornarem. Alguns usam bengalas. Seu andar vagaroso ao passearem pelos corredores é assustador, mas também possui dignidade. É o andar de pessoas que se dirigem lentamente para lugar nenhum, o andar de universitários de becas e barretes acadêmicos dirigindo-se ao auditório para uma reunião. Música ectoplásmica soa por toda parte, emitida por rádios transistorizados. Vozes tagarelam. Ele pode ouvir Black Oak Arkansas cantando "Jim Dandy" (uma voz de falsete grita alegremente "Vai, Jim Dandy ! Vai Jim Dandy!" para os lentos caminhantes no corredor). Pode ouvir o mediador de um programa de debates discutindo Nixon num tom que foi mergulhado em ácido, como uma pena fumegante de caneta. Pode ouvir uma polca cantada em francês ― Lewiston ainda é uma cidade na qual se fala francês e as pessoas gostam quase tanto de dançar quanto de se apunhalarem nos bares da parte mais baixa de Lisbon Street. Ele pára diante da porta do quarto da mãe e durante algum tempo, esteve bastante desorientado a ponto de vir embriagado. Envergonhava-se de estar bêbado diante da mãe, embora ela estivesse por demais dopada e cheia de Elavil para perceber. Elavil é um tranqüilizante que ministram aos pacientes de câncer a fim de não se aborrecerem tanto por estarem morrendo. A rotina que ele seguia era comprar uma dúzia de cervejas Black Label no Mercado de Sonny, à tarde. Sentava com as crianças para assistir aos programas que elas gostavam de ver à tarde na televisão. Três cervejas durante "Rua Sésamo", duas durante "Mister Rogers", uma durante "Companhia Elétrica". Depois, uma com o jantar. Levava as outras cinco cervejas no carro. Era um trajeto de trinta e cinco quilômetros entre Raymond e Lewiston, pelas Rodovias 302 e 202, de modo que era possível estar bastante de porre quando chegava ao hospital, restando ainda uma ou duas cervejas. Trazia coisas para a mãe e as deixava no carro, a fim de ter uma desculpa para voltar e apanhá-las ― e também beber mais meia cerveja, continuando alto. Dava-lhe também uma desculpa para urinar ao ar livre e, de algum modo, isto era o melhor de toda aquela miserável estória. Sempre estacionava o carro no parqueamento lateral, que era de terra batida, esburacada e congelada em novembro, de modo que o ar frio da noite assegurava total contração da bexiga. Urinar num dos banheiros do hospital assemelhava-se demais a uma apoteose de toda aquela experiência hospitalar: o botão da campainha para chamar a enfermeira ao lado da caixa de descarga do vaso sanitário, a alavanca cromada aparafusada num ângulo de 45 graus, o vidro de desinfetante cor-de-rosa acima da pia. Coisa ruim. É melhor acreditar. A vontade de beber no caminho de volta para casa era nenhuma. Portanto, o que sobrasse da cerveja era guardado na geladeira, em casa, e quando completava meia dúzia... ele jamais teria vindo se soubesse que seria tão ruim. A primeira idéia que lhe passa pela cabeça é Ela não é uma laranja e a segunda é Ela está realmente morrendo depressa, agora, como ela tivesse hora marcada para pegar um trem para o nada. Ela luta na cama, sem se mexer, exceto pelos olhos, mas lutando no interior do corpo, pois algo se mexe lá dentro. Tem o pescoço alaranjado por alguma coisa semelhante a mercúrio cromo e um curativo abaixo da orelha esquerda, onde algum médico cantarolante enfiou a agulha de rádio e explodiu 60% de seu controle motor juntamente com o centro de dor. Seu olhar o acompanha como os olhos de um Jesus Cristo estereotipado. ― Acho melhor você não me ver esta noite, Johnny. Não estou muito bem. Talvez esteja melhor amanhã. ― O que sente? ― Coceira. O corpo inteiro me coça. Minhas pernas estão fechadas? Ele não consegue verificar se as pernas dela estão fechadas. São apenas um V elevado sob o amarrotado lençol do hospital. Faz muito calor no quarto. No momento, não há paciente na outra cama. Ele pensa: Companheiros de quarto chegam e saem, mas minha mãe fica para sempre. Cristo! ― Estão, sim, Mamãe. ― Puxe-as para baixo, está bem, Johnny? Depois, é melhor você ir embora. Nunca antes estive numa situação como esta. Não consigo mexer nada. Meu nariz coça. Não é de causar pena, sentir coceira no nariz e não poder coçá-lo? Ele coça o nariz dela e depois segura-lhe as pernas através do lençol e puxa-as para baixo. Pode segurar ambas as pernas com apenas uma das mãos, sem maiores dificuldades, embora não tenha mãos particularmente grandes. Ela geme. As lágrimas lhe escorrem dos olhos para as orelhas. ― Mamãe? ― Pode puxar minhas pernas para baixo? ― Acabo de fazer isso. ― Oh. Está bem, então. Creio que estou chorando. Não queria chorar na sua frente. Gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto. ― Quer um cigarro? ― Pode me dar um gole d'água primeiro, Johnny? Estou seca corno madeira velha. ― Claro. Ele pega o copo com o canudinho flexível e sai do quarto, indo até o bebedouro. Um homem gordo com uma atadura elástica na perna caminha lentamente pelo corredor. Não está usando um dos roupões listrados e segura o "johnny", fechando-o atrás de si. Ele enche o copo no bebedouro e volta ao Quarto 312. Ela parou de chorar. Seus lábios se fecham sobre o canudinho de um modo que lembra a ele um camelo que viu num filme de viagens. O rosto está magro, descarnado. A lembrança mais vívida que ele tem dela na vida que levou como seu filho é de uma época em que tinha doze anos. Ele, seu irmão Kevin e aquela mulher tinham-se mudado para o Maine a fim de que ela pudesse cuidar dos pais. A mãe era velha e inválida. Pressão alta tornara a avó dele senil e, para somar insulto ao mal físico, deixara-a cega. Feliz 68° aniversário. Boa piada. E ela ficava deitada na cama o dia inteiro, cega e senil, usando enormes fraldas e calças de borracha, incapaz de se lembrar do que fora servido no café da manhã, mas capaz de recitar os nomes de todos os Presidentes dos Estados Unidos, até Ike Eisenhower. E assim, três gerações da família tinham vivido juntas naquela casa onde ele tão recentemente encontrara as pílulas (embora ambos os avós já tivessem morrido há muito tempo) e, aos doze anos, ele reclamava de algo durante o café da manhã. Não se recorda de que, mas reclamava de alguma coisa. Sua mãe estivera lavando as fraldas mijadas da avó e passando-as pelos rolos secadores da antiga máquina de lavar roupa. Voltando-se para ele, batera-lhe com uma das fraldas e a primeira pancada da fralda molhada e pesada virara o prato de mingau que ele estava tomando, atirando-o através da mesa. A segunda pancada o atingira nas costas, sem machucar, mas fazendo-o calar-se de susto e parar de reclamar. E aquela velha encarquilhada que agora jazia sobre a cama naquele quarto de hospital tornara a bater-lhe repetidamente com a fralda molhada, dizendo: Cale essa boca tagarela, a única coisa que você tem de grande é a língua e trate de mantê-la quieta até que o resto de você fique do mesmo tamanho ― e cada palavra grifada era acompanhada de uma pancada com a fralda da avó. Quaisquer outras reclamações que ele tivesse a fazer simplesmente se evaporaram. Não havia no mundo oportunidade para conversa fiada. Naquele dia e para sempre, ele descobriu que não existe no mundo algo tão perfeito para fixar a impressão de um menino de doze anos quanto ao seu lugar no esquema, de acordo com a devida perspectiva, que levar nas costas uma pancada com uma fralda molhada da avó. Depois disso, ele levara quatro anos para reaprender a arte de bancar o espertinho. Ela se engasga um pouco com a água e o assusta, apesar de estar pensando em dar as pílulas a ela. Torna a perguntar se ela quer um cigarro. ― Se não for incômodo para você ― responde ela. ― Depois, é melhor você ir. Talvez eu esteja melhor amanhã. Ele tira um Kool de um dos maços espalhados sobre a mesinha de cabeceira e o acende. Segurando-o entre o polegar e o indicador da mão direita, leva-o aos lábios dela, que tira uma tragada, fazendo um bico com os lábios para sugar o filtro. A tragada é fraca; a fumaça lhe escapa pelos lábios. ― Tive que viver sessenta anos para que meu filho segurasse um cigarro para mim. ― Não me incomodo. Ela tira outra tragada e prende o filtro com os lábios durante tanto tempo que ele ergue o olhar para fitar os olhos dela e percebe que estão fechados. ― Mamãe? Ela entreabre vagamente os olhos. ― Johnny? ― Exato. ― Há quanto tempo está aqui? ― Não muito. Acho melhor eu ir embora e deixar você dormir. ― Hmrnmm. Ele apaga o cigarro no cinzeiro e sai furtivamente do quarto, pensando: Quero falar com aquele médico. Diabo, quero falar com o médico que fez aquilo. Ao entrar no elevador, reflete que a palavra "doutor" se transforma em sinônimo de "homem" depois que um certo grau de proficiência na profissão é atingido, como se fosse previsto e esperado que os médicos devam ser cruéis para, assim, chegarem a um grau especial de humanidade. Mas. ― Não creio que ela dure muito mais ― diz ele ao irmão mais tarde, naquela mesma noite. O irmão mora em Andover, cento e dez quilômetros a oeste. Só vai ao hospital uma ou duas vezes por semana. ― Mas a dor melhorou? ― indaga Kev. ― Ela diz que sente coceiras. Tem as pílulas no bolso do paletó. Sua esposa já foi dormir. Tira as pílulas do bolso, roubadas da casa vazia da mãe, onde outrora todos eles moraram com os avós. Enquanto fala, gira a caixa entre os dedos, como um pé de coelho. ― Bem, então ela está melhor. Para Kev tudo está melhor, sempre, como se a vida caminhasse para um clímax sublime. É uma opinião da qual o irmão mais moço não compartilha. ― Ela está paralisada. ― Interessa, a esta altura? ― Claro que interessa! ― explode ele, pensando nas pernas dela sob o lençol branco amarrotado. ― Ela está morrendo, John. ― Ainda não morreu. Na realidade, é isso que o horroriza. Daqui em diante, a conversa prosseguirá em círculos, com os lucros indo para a companhia telefônica. Mas este é o ponto crucial: ela está morrendo, mas ainda não morreu. Simplesmente jaz naquele leito de hospital com uma etiqueta presa ao pulso, escutando rádios fantasmas passearem pelo corredor. E ela terá que lutar contra o tempo, diz o médico. É um sujeito grandalhão, com uma barba ruiva alourada. Tem mais de um metro e noventa de altura, ombros heróicos. O médico o conduziu delicadamente para o corredor quando ela começou a cochilar. E prossegue: ― Entenda: numa operação como a "cortotomia", algum dano motor e quase inevitável. Agora, sua mãe já tem algum movimento na mão esquerda. Podemos esperar, razoavelmente, que ela recupere a mão direita dentro de duas a quatro semanas. ― Ela voltará a andar? O médico fita judiciosamente o teto de cortiça furada do corredor. Sua barba nasce desde o colarinho da camisa quadriculada e, por algum motivo ridículo, Johnny se lembra de Algerson Swinbume; ora, não podia dizer. O homem à sua frente é o oposto de Swinbume, sob todos os aspectos. ― Eu diria que não. Ela perdeu muito terreno. ― Vai ficar inválida pelo resto da vida? ― Sim, creio que é uma suposição razoável. Ele começa a sentir alguma admiração por aquele homem, que esperava que fosse seguramente detestável. É uma sensação seguida de desgosto: precisa sentir admiração pela mera verdade? ― Por quanto tempo ela pode viver assim? ― É difícil dizer. (Estava ficando melhor, pensou ele.) Agora, o tumor está bloqueando um dos rins. O outro funciona normalmente. Quando o tumor bloquear o segundo, ela dormirá. ― Coma urêmico? ― Sim ― diz o médico, mas com um pouco mais de cautela. "Uremia" é um termo técnico-patológico, geralmente de uso exclusivo dos médicos e legistas. Mas Johnny o conhece porque sua avó morreu da mesma causa, embora não tivesse câncer. Seus rins deixaram de funcionar e ela morreu flutuando em urina interna até a caixa torácica. Morreu na cama, em casa, à hora do jantar. Johnny foi o primeiro a suspeitar de que ela estivesse realmente morta e não dormindo da maneira comatosa, de boca aberta, que é costume dos velhos. Sua velha boca desdentada estava repuxada para dentro, lembrando um tomate cujo miolo foi extraído e depois ficou esquecido na prateleira da cozinha durante vários dias. Duas lágrimas tinham escorrido dos olhos. Ele colocou um espelhinho redondo de maquilagem junto dos lábios durante um minuto e, quando o espelho não se embaçou e escondeu a imagem daquela boca de tomate murcho, chamou a mãe. Tudo aquilo pareceu certo como isto agora parecia errado. ― Ela ainda se queixa de dor. E de coceiras. O médico bate solenemente com o dedo na cabeça, como Victor de Groot nas velhas caricaturas de psiquiatras. ― Ela imagina a dor. Nem por isso é menos real. Real para ela. Eis porque o tempo é tão importante. Sua mãe não pode mais contar o tempo em termos de segundos, minutos e horas. Deve reestruturar essas unidades em dias, semanas, meses. Ele compreende o que o homem corpulento está dizendo e sente-se impotente. É como o leve tinir de uma campainha. Ele não pode conversar mais com o médico. É um técnico. Fala com palavras suaves a respeito do tempo, como se pudesse agarrar o conceito de tempo com a mesma facilidade que um caniço de pesca. E talvez possa. ― O senhor pode fazer mais alguma coisa por ela? ― Muito pouco. Mas ele se porta com serenidade, como se aquilo estivesse certo. Afinal, não está alimentando "falsas esperanças". ― Pode ser pior que um coma? ― Claro que pode. Não podemos prever essas coisas com um alto grau de precisão. É como se existisse um tubarão solto no interior do corpo do doente. Ela pode inchar. ― Inchar? ― Seu abdome pode aumentar, diminuir e depois tornar a aumentar. Mas por que falar nisso agora? Creio que, com certa segurança, podemos dizer que que eles fariam o serviço. Mas se não fizerem? Ou suponhamos que me apanhem? Não quero ser processado sob acusação de praticar eutanásia. Mesmo que seja absolvido. Não tenho causas a defender. Ele pensa nas manchetes dos jornais berrando MATRICÍDIO e faz uma careta. Sentado no carro, no estacionamento, revira interminavelmente a caixa de pílulas com os dedos. COMPLEXO DARVON. A questão continua a ser: Será ele capaz? Deve fazê-lo? Ela disse: Eu gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto. Kevin anda falando em arrumar um quarto em sua casa, para que ela não morra no hospital. O hospital quer que ela vá embora. Deram-lhe uma nova pílula e ela entrou em delírio. Isso ocorreu quatro dias depois da "cortotomia". Eles gostariam que ela fosse para outro lugar, porque até hoje ninguém aperfeiçoou uma "cancerotomia" infalível. E, a esta altura, se tirassem todo o câncer, nada restaria a ela exceto as pernas e a cabeça. Ele imagina como o tempo deve ser para ela: como algo que escapou ao controle, como uma caixa de costura cheia de novelos espalhados pelo chão para um gato brincar. Os dias no Quarto 312. As noites no Quarto 312. Eles amarram um barbante no interruptor da campainha e no dedo indicador da mão esquerda, porque ela já não pode movimentar suficientemente a mão quando acha que vai precisar da "comadre". De qualquer maneira, não faz muita diferença, porque ela não pode sentir a pressão lá embaixo; no interior de sua barriga bem poderia existir um monte de serragem. Ela evacua na cama e urina na cama ― e só percebe que o fez quando sente o cheiro. Dos setenta e cinco quilos que pesava, diminuiu para quarenta e dois e os músculos do corpo estão tão flácidos que ela é apenas um saco vazio ligado ao cérebro, como um boneco de criança. Haveria alguma diferença na casa de Kevin? Seria capaz de cometer homicídio? Ele sabe que é homicídio. O pior tipo de homicídio ― o matricídio ―, como se ele fosse um feto consciente num dos primeiros livros de terror de ficção científica escritos por Ray Bradbury, decidido a virar a mesa e abortar o animal que o gerou. De qualquer modo, talvez a culpa seja dele. Foi o Único filho nutrido dentro dela, um bebê temporão, quase na época da menopausa. Seu irmão Kevin foi adotado quando um médico sorridente disse a ela que jamais poderia conceber um filho. E, naturalmente, o câncer que agora lhe destruía as entranhas começara no útero, como um segundo filho, sombrio irmão gêmeo dele. A vida dele e a morte dela tinham começado no mesmo lugar. Deveria ele não fazer o que já estava fazendo agora de forma tão lenta e desajeitada? Vem dando a ela aspirina, às escondidas, para a dor que ela imagina sentir. Ela guarda os comprimidos numa caixinha de balas, na gaveta da mesa de cabeceira do hospital, juntamente com os cartões desejando pronto restabelecimento e os óculos que já não têm serventia. Tiraram-lhe as dentaduras por medo que ela as enfiasse pela garganta abaixo e morresse asfixiada, de modo que agora ela simplesmente chupa os comprimidos de aspirina até ficar com a língua ligeiramente esbranquiçada. Claro que ele poderia dar-lhe as pílulas; três ou quatro seriam suficientes. Cem gramas de aspirina e trinta gramas de Darvon administrados numa mulher cujo peso diminuiu trinta e três por cento em cinco meses. Ninguém sabe que ele tem as cápsulas, nem Kev, nem a esposa. Ele pensa que talvez tenham colocado um paciente na outra cama do Quarto 312, de modo que não haverá motivo para preocupações. Pode escapar em segurança. Pensou que talvez isso fosse realmente melhor. Se houver outra mulher no quarto, suas opções estarão eliminadas e ele poderá considerar o fato como um sinal de anuência da Providência. Ele acha que... ― Você está com melhor aspecto esta noite. ― Estou mesmo? ― Claro. Como se sente? ― Oh, não muito bem. Não muito bem, esta noite. ― Vamos ver você mexer a mão direita. Ela ergue a mão do lençol. Ela flutua um momento, de dedos abertos, diante de seus olhos e toma a cair. Ele sorri e ela retribui o sorriso. Ele pergunta: ― Viu o doutor hoje? ― Sim, ele esteve aqui. É bondade dele vir todos os dias. Quer me dar um pouco d'água, Johnny? Ele lhe dá água por meio do canudinho flexível. ― É bondade sua vir aqui com tanta freqüência, Johnny. Você é um bom filho. Ela está chorando outra vez. A outra cama está vazia, parecendo acusá-lo. De vez em quando, um dos roupões listrados de azul e branco passa diante da porta, caminhando pelo corredor. A porta do quarto está entreaberta. Ele tira delicadamente o copo da mão dela, pensando como um idiota: Este copo está meio cheio ou meio vazio? ― Como vai sua mão esquerda? ― Oh, está ótima. ― Vamos ver. Ela levanta a mão. Sempre foi canhota e talvez seja por isso que aquela mão se recuperou tão bem dos devastadores efeitos da "cortotomia". Ela fecha o punho. Flexiona os dedos. Estala levemente os nós dos dedos. Então, a mão torna a cair sobre o lençol. Ela reclama: ― Mas não tenho sensação nenhuma na mão. ― Deixe-me ver uma coisa. Vai ao guarda-roupa, abre-o e enfia a mão por detrás do casaco que ela usava ao chegar ao hospital, a fim de pegar a bolsa. Ela mantém a bolsa no armário porque é paranóica com relação a ladrões; ouviu dizer que alguns dos atendentes são verdadeiros artistas no furto, capazes de levar tudo que conseguem ter ao alcance das mãos. Ela soube através de uma das companheiras de quarto, que já recebeu alta há muito tempo, que uma mulher internada na ala nova foi roubada em quinhentos dólares que escondia num sapato. Ultimamente, a mãe dele tem sido paranóica a respeito de muitas coisas e, certa vez, lhe disse que um homem se esconde sob sua cama na calada da noite. A culpa cabe em parte à combinação de drogas que estão experimentando nela. Drogas que fazem a benzedrina que ele tomava ocasionalmente na universidade parecer uma substância inócua. Pode-se escolher à vontade nos armários trancados que ficam nas extremidades dos corredores, perto das salas das enfermeiras: excitantes, sedativos, analgésicos e soporíferos. E a morte, talvez ― a morte misericordiosa como um doce cobertor negro. As maravilhas da ciência moderna. Ele leva a bolsa de volta à cama. Abre-a. ― Pode pegar alguma das coisas que estão aqui? ― Oh, Johnny, não sei... Ele diz em tom persuasivo: ― Experimente. Por mim. A mão esquerda dela se ergue do lençol como um helicóptero aleijado. Voa. Mergulha. Sai da bolsa com uma folha amarrotada de papel absorvente. Ele aplaude: ― Ótimo! Muito bem! Mas ela vira o rosto para o outro lado. ― O ano passado, eu era capaz de puxar dois carrinhos carregados de pratos de comida com estas mãos. Se tem que existir uma ocasião, é agora. Faz muito calor no quarto, mas o suor na testa dele é frio. Ele pensa: Se ela não pedir aspirina, eu não o farei. Não esta noite. E sabe que se não for esta noite, nunca mais. Muito bem. ― Pode me dar duas das minhas pílulas, Johnny? É como ela sempre pede. Ela está proibida de tomar qualquer remédio além da medicação prescrita pelo médico, porque perdeu tanto peso que desenvolveu o que seus amigos universitários que usavam tóxicos costumavam chamar de "uma pesada": a imunidade do corpo fica a uma margem ínfima da dose letal. Mais uma pílula e a pessoa morre. Dizem que foi isso que ocorreu com Marilyn Monroe. ― Trouxe algumas pílulas de casa. ― É mesmo. ― São ótimas para dor. Estende a caixa para ela, que só consegue ler de muito perto. Ela franze a testa para as letras grandes no rótulo. ― Já tomei antes esse tal Darvon. Não adiantou. ― Este é mais forte. Ela ergue os olhos da caixa e o encara. Pergunta distraidamente: ― É mesmo? Ele só consegue sorrir como um tolo. É incapaz de falar. E como a primeira vez em que esteve com uma mulher: aconteceu no banco traseiro do carro de um amigo e quando ele voltou para casa a mãe perguntou se ele se divertira ― e ele só conseguiu exibir aquele sorriso tolo. ― Posso mastigá-las? ― Não sei. Pode experimentar uma. ― Está bem. Não permita que percebam. Ele abre a caixa e retira a tampa de plástico do vidro. Puxa o algodão do gargalo. Será ela capaz de fazer tudo isso com aquela mão esquerda aleijada? Eles acreditariam? Ele não sabe. Eles talvez também não saibam. Talvez nem mesmo se importem. Ele sacode o vidro, deixando cair meia dúzia de pílulas na palma da mão. Percebe que ela o está observando. Meia dúzia é demais; até ela deve saber. Se ela disser algo a respeito, ele guardará todas as pílulas de volta no vidro e lhe oferecerá uma contra dor de artrite. Uma enfermeira passa silenciosamente pelo corredor e a mão dele treme, chacalhando as pílulas cinzentas, mas a enfermeira não olha para dentro do quarto a fim de verificar como está passando a "garota da cortotomia". A mãe dele não diz nada, limitando-se a olhar para as pílulas como se fossem perfeitamente normais (se é que isto existe). Mas, por outro lado, ela jamais gostou de celebrações; seria incapaz de quebrar uma garrafa de champanha em seu próprio barco para batizá-lo. ― Lá vamos nós ― diz ele em voz perfeitamente natural. E coloca a primeira pílula na boca da mãe. Ela mastiga pensativamente a pílula com as gengivas até dissolver a cápsula de gelatina. Então, faz uma careta. ― Tem gosto ruim. Então, eu não... ― Não. Não é tão ruim. Ele lhe dá outra. E mais outra. El á as mastiga com aquela mesma expressão pensativa. Ele lhe dá a quarta. Ela sorri e ele percebe, horrorizado, que a língua dela ficou amarela. Talvez se ele lhe der uma pancada na barriga ela vomite tudo. Mas não pode. Seria incapaz de bater na mãe. ― Quer ver se minhas pernas estão juntas? ― Primeiro mastigue estas. Dá-lhe a quinta pílula. E a sexta. Então verifica se as pernas dela estão juntas. Estão. Ela diz: ― Acho que vou dormir um pouco, agora. ― Muito bem. Vou beber água. ― Você sempre foi um bom filho, Johnny. Ele coloca o vidro na caixa e enfia a caixa na bolsa, deixando a tampa de plástico em cima do lençol. Deixa a bolsa aberta ao lado da mãe e pensa: Ela pediu a bolsa. Eu a trouxe e abri para ela, logo antes de ir embora Ela disse que podia tirar da bolsa o que desejava. Disse que chamaria a enfermeira para tornar a guardar a bolsa no armário. Ele sai e bebe água. Há um espelho acima do bebedouro e ele põe a língua para fora, examinando-a. Quando volta ao quarto, ela está dormindo com as mãos juntas. As veias das mãos são grossas e saltadas. Ele a beija na testa e os olhos dela se mexem sob as pálpebras, mas não se abrem. Sim. Ele não sente diferença alguma, nem para melhor nem para pior. Encaminha-se para a porta do quarto e se lembra de mais uma coisa. Volta para perto da mãe, retira a caixa da bolsa, tira o vidro da caixa e o limpa cuidadosamente na camisa. Então, aperta as pontas dos dedos da inerte mão esquerda da mãe de encontro ao vidro. Então, coloca-o de volta no lugar e sai rapidamente do quarto, sem olhar para trás. Volta para casa e espera o telefone tocar, desejando ter dado outro beijo nela. Enquanto espera, assiste à televisão e bebe muita água.
 

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