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domingo, 8 de novembro de 2015

A saideira - Stephen king's Night Shift - Sombras da noite


Passavam quinze minutos das dez horas e Herb Tooklander estava pensando em fechar a casa quando o homem de sobretudo elegante e rosto branco de olhos esbugalhados entrou de repente no Tookey's Bar, que fica na parte norte de Falmouth. Era dez de janeiro, exatamente a época em que o pessoal está aprendendo a viver confortavelmente com todas as promessas de Ano-Novo que quebraram e lá fora soprava uma violenta tempestade do nordeste. Havia caído quinze centímetros de neve antes do anoitecer e a nevasca continuava feia e forte desde então. Por duas vezes Tookey vira Billy Larribee passar na elevada cabine do trator de limpar neve da prefeitura e, na segunda vez, correra até lá para levar-lhe uma cerveja ― um ato de caridade, como diria minha mãe, e meu Deus sabe que ela gastou um bocado de dinheiro com cerveja de Tookey no seu tempo. Billy informou que estavam conseguindo manter o trânsito livre na estrada principal, mas as secundárias estavam bloqueadas e deveriam continuar assim até a manhã seguinte. A rádio de Portland previa mais trinta centímetros de neve e um vento de sessenta e cinco quilômetros por hora para empilhá-la. Apenas Tookey e eu estávamos no bar, escutando o vento uivar nos beirais e observando-o fazer o fogo dançar na lareira. ― Tome uma saideira, Booth ― diz Tookey. ― Vou fechar. Serviu uma para mim e outra para ele. Foi então que a porta se abriu e o tal desconhecido cambaleou para dentro do bar com neve até nos ombros e no cabelo, como se tivesse rolado em açúcar de confeiteiro. O vento soprava atrás dele uma cortina de neve fina como poeira. ― Feche a porta! ― berrou Tookey para ele. ― Será que nasceu num celeiro? Nunca vi um homem parecer tão apavorado. Era como um cavalo que tivesse passado a tarde inteira comendo urtigas. Seus olhos rolaram na direção de Tookey e ele disse: ― Minha mulher... minha filha... Então, caiu ao chão, completamente sem sentidos. ― Nossa Mãe! ― exclamou Tookey. ― Quer fechar a porta, Booth, por favor? Obedeci e foi uma dificuldade empurrar a porta contra o vento. Tookey estava apoiado num joelho, erguendo a cabeça do sujeito e dando-lhe palmadinhas nas bochechas. Aproximei-me e constatei de imediato que era um caso grave. A cara do sujeito estava muito vermelha, mas tinha manchas cinzentas aqui e acolá; quando a gente passou os invernos no Maine desde que Woodrow Wilson era Presidente, como é o meu caso, sabe que aquelas manchas cinzentas são queimaduras produzidas pelo enregelamento. ― Desmaiou ― disse Tookey. ― Apanhe conhaque atrás do bar, está bem? Fui buscar o conhaque e voltei. Tookey abrira o sobretudo do homem. Este recobrara ligeiramente os sentidos: tinha os olhos meio abertos e murmurava algo baixo demais para que conseguíssemos entender. ― Encha a tampa da garrafa ― disse Tookey. ― Só isso? ― perguntei. ― Esse troço é dinamite ― replicou Tookey. ― Não faz sentido sobrecarregarmos o carburador do cara. Enchi a tampa com conhaque e olhei para Tookey. Ele meneou a cabeça, confirmando: ― Direto na goela. Derramei a bebida na boca do sujeito. Foi algo digno de ser visto. Ele estremeceu da cabeça aos pés e começou a tossir. O rosto ficou ainda mais vermelho. As pálpebras, que estavam a meio-pau, abriram-se como persianas de janela. Fiquei um tanto alarmado, mas Tookey limitou-se a sentá-lo como um enorme bebê e dar-lhe palmadas nas costas. O homem começou a ter vômitos secos e Tookey deu-lhe uma palmada mais forte. ― Agüente firme ― disse ele ao desconhecido. ― O conhaque está caro. O sujeito tossiu um pouco mais, mas a tosse diminuiu aos poucos. Examinei-o bem pela primeira vez. Homem da cidade, no duro, e de algum lugar ao sul de Boston, pelo meu palpite. Usava luvas de pelica, caras mas finas. Era provável que existissem outras daquelas manchas cinzentas em suas mãos e ele teria sorte se não perdesse um ou dois dedos. Usava um sobretudo realmente elegante; um casaco de trezentos dólares, no mínimo. Suas botas eram pequenas e finas, mal-chegando aos tornozelos, e comecei a imaginar em que estado se achariam seus pés. ― Melhor ― disse ele. ― Muito bem ― replicou Tookey. ― Pode vir até o fogo? ― Minha mulher e minha filha ― disse o homem. ― Estão lá fora... na tempestade. ― Pela maneira como você entrou aqui, não pensei que estivessem em casa assistindo à televisão ― comentou Tookey. ― Pode nos contar tão bem perto do fogo quanto sentado aí no chão. Ajude aqui, Booth. O cara ficou em pé mas soltou um pequeno gemido e seus lábios se contorceram de dor. Tornei a pensar nos pés dele e tentei imaginar por que motivo Deus tinha que fazer idiotas da cidade de Nova York tentarem dirigir automóvel no sul do Maine durante o auge de uma tempestade do nordeste. E perguntei com meus botões se a mulher e a filha estariam melhor agasalhadas que ele. Levamos o homem para perto da lareira e o sentamos numa cadeira de balanço que fora o lugar favorito da Sra. Tookey até morrer, em '74. A Sra. Tookey era responsável pela maior parte da fama do bar, que fora objeto de reportagens na Down East e no Sunday Telegram, tendo sido citado até mesmo no suplemento dominical do Globe de Boston. Na verdade, era mais uma taverna que um bar, com seu amplo assoalho de tábuas corridas, presas com cavilhas em vez de pregos, o bar feito com madeira de bordo, o velho teto de vigas aparentes como as de um celeiro e a enorme lareira de pedra. Depois da publicação do artigo na Down East, a Sra. Tookey começou a meter certas idéias na cabeça, querendo mudar o nome do local para Estalagem do Tookey ou Pousada do Tookey, e confesso que seria um toque mais colonial, mas prefiro simplesmente o velho nome de Bar do Tookey ― Tookey's Bar. Uma coisa é ser pedante no verão, quando o estado fica cheio de turistas; mas é completamente diferente no inverno, quando a gente tem que negociar com os vizinhos. E houvera muitas noites de inverno, como esta, que Tookey e eu tínhamos passados juntos, sozinhos, bebendo uísque escocês e água ou apenas algumas cervejas. A minha Victoria faleceu em 73 e o bar do Tookey era um bom lugar para se ir, onde existiam vozes suficientes para abafar o tique-taque do relógio da morte que se aproximava da hora marcada mesmo que fôssemos apenas Tookey e eu, já bastava. E eu não me sentiria da mesma maneira se o local se chamasse Pousada do Tookey. Pode parecer loucura, mas é verdade. Colocamos o tal sujeito diante da lareira e ele começou a tremer ainda mais que antes. Abraçou os joelhos e seus dentes chocalhavam. Algumas gotas de muco transparente lhe pingavam do nariz. Creio que ele estava começando a compreender que mais quinze minutos lá fora seriam o bastante para matá-lo. Não é a neve, é o fator de frio resultante do vento. Rouba todo o calor da gente. ― Onde saiu da estrada? ― perguntou Tookey. ― D-d-dez qu-qu-quilômetros ao s-s-sul d-d-daqui ― respondeu o desconhecido. Tookey e eu nos entreolhamos e, de repente, fiquei frio. Dos pés à cabeça. ― Tem certeza ― quis saber Tookey. ― Andou dez quilômetros pela neve? O cara assentiu com a cabeça. ― Verifiquei o odômetro quando atravessamos a cidade. Eu estava seguindo instruções... indo visitar minha cunhada... em Cumberland... nunca estive por aqui antes... somos de Nova Jersey... Nova Jersey. Se existe alguém mais puramente idiota que um novaiorquino, é um sujeito de Nova Jersey. ― Dez quilômetros ― insistiu Tookey. ― Tem certeza? ― Sim, bastante certeza. Encontrei a rampa de saída, mas estava bloqueada pela neve... estava... Tookey o agarrou pelas lapelas. Ao brilho trêmulo do fogo, seu rosto parecia pálido e tenso, dez anos mais velhos que os seus sessenta anos. ― Dobrou à direita? ― Sim, dobrei à direita. Minha mulher... ― Viu uma placa? ― Placa? ― repetiu o cara, olhando inexpressivamente para Tookey e limpando a ponta do nariz. ― Claro que vi. Estava nas minhas instruções: tome a Avenida Jointner através de Jerusalem's Lot até a rampa de acesso 295. Olhou de mim para Tookey e vice-versa. Lá fora, o vento assoviava e uivava e gemia nos beirais. ― Não era isso, moço? ― Lot ― disse Tookey tão baixo que mal o escutei. ― Oh, meu Deus... ― O que está errado? ― quis saber o forasteiro, erguendo a voz. Não acertei? Quero dizer, a estrada estava coberta de neve, mas pensei .. se existe uma cidade por aqui, os tratores estarão trabalhando e... então, eu... Simplesmente deixou a frase morrer. ― Booth ― disse-me Tookey em voz baixa. Vá telefonar. Chame o xerife. ― Claro, isso mesmo ― disse aquele idiota de Nova Jersey. ― O que há de errado com vocês, afinal? Parece que viram um fantasma. Tookey replicou: ― Não existem fastasmas em Lot, moço. Disse a elas para permanecerem no carro? ― Claro ― respondeu o sujeito, mostrando-se ofendido. ― Não sou maluco. Bem, ninguém poderia provar, pelo menos para mim. ― Como se chama? ― indaguei. ― Tenho que dizer ao xerife. ― Lumley. Gerard Lumley. Ele continuou a conversar com Lumley e eu atravessei o salão até o telefone. Levei o fone ao ouvido e não escutei nada. Um silêncio mortal. Bati no gancho duas vezes. Ainda assim, nada. Voltei para perto da lareira. Tookey servira outra dose de conhaque para Gerard Lumley e esta desceu pela garganta dele muito melhor. ― Ele não estava? ― indagou Tookey. ― O telefone está mudo. ― Diabo! ― exclamou Tookey. Trocamos um olhar. Lá fora, o vento soprava neve contra as vidraças. Lumley olhou de Tookey para mim e vice-versa. ― Bem, nenhum de vocês dois tem carro? ― perguntou ele, com a voz novamente cheia de ansiedade. ― Elas precisam deixar o motor ligado para que a calefação funcione. Eu tinha apenas um quarto de tanque de gasolina e levei duas horas e meia para... Ouçam: querem fazer o favor de responder? Levantou-se e agarrou o peito da camisa de Tookey. ― Moço ― disse Tookey ―, creio que suas mãos perderam o juízo. Lumley olhou para a mão, encarou Tookey e largou a camisa. ― Maine ― sibilou ele entredentes, fazendo a palavra soar como um insulto à mãe de alguém. ― Muito bem ― acrescentou ―, onde fica o posto de gasolina mais próximo? Devem ter um reboque... ― O posto de gasolina mais próximo fica em Falmouth Center, a cinco quilômetros daqui, seguindo pela estrada. ― Obrigado ― disse o forasteiro, levemente sarcástico, encaminhando-se para a porta e abotoando o sobretudo. ― Mas não estará aberto ― aduzi. Ele se voltou vagarosamente e nos encarou. ― De que está falando, velho? ― Está querendo lhe dizer que o posto de gasolina em Falmouth Center pertence a Billy Larribee e Billy saiu para dirigir o trator de limpar a neve, seu maldito idiota ― explicou Tookey, paciente. ― Agora, por que não volta para cá antes de estourar uma veia do pescoço? Ele voltou, parecendo aturdido e amedrontado. ― Está me dizendo que não podem... que não existe...? ― Não estou lhe dizendo nada ― replicou Tookey. ― Você é quem está falando o tempo todo. Se parar de falar por um minuto, poderemos pensar no problema. ― O que há nessa cidade, Jerusalem's Lot? ― quis saber Lumley. Por que a estrada estava interrompida? Por que não havia luzes? Eu disse: ― Jerusalem's Lot foi incendiada há dois anos. ― E nunca a reconstruíram? ― perguntou ele. ― Por que a estrada estava interrompida? Por que não havia luzes? ― Parece que não ― disse eu, olhando em seguida para Tookey. Que vamos fazer a respeito disso? ― Não podemos deixar as mulheres lá ― declarou ele. Aproximei-me de Tookey. Lumley se afastara para olhar pela janela a noite tempestuosa. ― E se as apanharam? ― perguntei. ― Pode ser ― disse Tookey. ― Mas não temos certeza. Minha Bíblia está na prateleira. Você tem aí sua medalha do Papa? Tirei o crucifixo da camisa e mostrei a ele. Nasci e fui criado protestante, mas a maioria dos moradores das redondezas de Jerusalem's Lot usa algum objeto católico ― um crucifixo, uma medalha de São Cristóvão, um rosário ou algo semelhante. Porque há dois anos, durante um sombrio mês de outubro, Jerusalem's Lot enveredou pelo mau caminho. As vezes, tarde da noite, quando havia apenas alguns fregueses assíduos reunidos em torno da lareira de Tookey, a conversa girava sobre o assunto. E a maior parte do que se diz a respeito é verdade. As pessoas de Jerusalem's Lot começaram a desaparecer. Primeiro, apenas algumas; depois, outras mais; depois, um grupo inteiro. As escolas fecharam. A cidade ficou deserta durante quase um ano. Oh, algumas poucas pessoas se mudaram para lá, a maior parte delas idiotas de outros estados, como aquele belo espécime que agora tínhamos nas mãos ― atraídas pelo baixo preço das propriedades, suponho. Mas não duraram muito. Muitas delas se mudaram um ou dois meses depois de terem chegado. As outras... bem, elas desapareceram. Então, a cidade se incendiou, queimando-se até os alicerces. Foi no final de um longo outono de seca. Dizem que o fogo começou perto da Marsten House, na colina que dominava a Avenida Jointner, mas ninguém sabe o que provocou o incêndio. Até hoje ninguém sabe. Depois disso, as coisas melhoraram por algum tempo. Depois, recomeçaram. Apenas uma vez escutei mencionarem a palavra "vampiros". Um maluco motorista de caminhão de transporte de madeira, chamado Richie Messina, de Freeport, estava no Tookey naquela noite, já tendo tomado umas e outras. ― Jesus Cristo! ― gritou o brutamontes, que tinha pelo menos dois metros e setenta de altura em suas calças de lã, camisa quadriculada e botas de couro. ― Por que vocês têm tanto medo de falar. Vampiros! É isso que todos estão pensando, não é mesmo? Jesus Cristo num carrinho puxado a cavalo! Sabem o que existe lá em Salem's Lot? Querem que eu lhes diga? Querem? ― Diga logo, Richie ― disse Tookey. Fez-se um profundo silêncio no bar. Podia-se ouvir o fogo crepitar na lareira e, lá fora, a leve chuva de novembro batendo nas vidraças. ― A palavra é sua ― acrescentou Tookey. ― O que existe lá é o básico bando de cães selvagens ― declarou Richie Messina. É isso aí. Isso e um bando de velhas que gostam de uma boa estória de fantasmas. Ora, por oitenta dólares eu sou capaz de ir lá e passara noite naquela casa mal-assombrada, ou no que resta dela e que tanto preocupa vocês. Bem que tal? Alguém quer apostar? Mas ninguém queria. Richie era um fanfarrão e ficava violento quando bebia demais. Ninguém derramaria lágrimas em seu velório, mas nenhum de nós desejava que ele fosse a Salem's Lot depois do escurecer. ― Vocês todos que se fodam! ― vociferou Richie. ― Tenho uma espingarda quatorze no meu Chevrolet e ela é capaz de deter qualquer coisa em Falmouth, Cumberland ou Jerusalem's Lot! E é para lá que eu vou agora. Saiu do bar como um furacão, antes que alguém pudesse dizer uma palavra. Ninguém falou durante algum tempo. Então, Lamont Henry disse em voz muito baixa: ― Santo Deus! Esta é a última vez que alguém terá visto Richie Messina. E Lamont, metodista convicto desde o colo da mãe, fez o Sinal da Cruz. ― Ele curará o pileque e mudará de idéia ― disse Tookey, embora parecesse inquieto. ― Voltará na hora de fecharmos, dizendo que tudo não passou de brincadeira. Mas Lamont estava certo, daquela vez, pois ninguém tornou a ver Richie. Sua mulher disse à polícia que ele fora para a Flórida, a fim de fugir dos credores, mas podíamos ler a verdade em seus olhos ― apavorados e doentes de medo. Pouco depois disso, mudouse para Long Island. Talvez temesse que Richie voltasse para buscá-la numa noite escura. E não sou eu quem dirá que isso era impossível. Agora, Tookey olhava para mim e eu olhava para ele enquanto tornava a guardar o crucifixo na camisa. Nunca me senti tão velho ou tão assustado em minha vida. Tookey tornou a dizer: ― Não podemos deixar as mulheres lá, Booth. ― Sim, eu sei. Encaramo-nos por mais alguns instantes. Depois, ele estendeu a mão e me apertou o ombro. ― Você é um bom sujeito, Booth. Aquilo foi o bastante para animar-me um pouco. Parece que quando a gente ultrapassa os setenta as pessoas esquecem de que somos um homem, ou de que algum dia o fomos. Tookey foi até Lumley e disse: ― Tenho um Scout com tração nas quatro rodas. Vou buscá-lo. ― Pelo amor de Deus, homem, por que não me disse antes? Lumley voltou-se bruscamente da janela e olhou raivosamente para Tookey. ― Por que teve que passar quinze minutos fazendo rodeios? Tookey respondeu muito mansamente: ― Moço, cale a boca. E se tiver vontade de abri-la, lembre-se de quem entrou naquela estrada interrompida durante uma tempestade de neve. O forasteiro começou a dizer alguma coisa, mas tornou a fechar a boca. Seu rosto ficara muito vermelho. Tookey saiu para tirar o Scout da garagem. Tateei embaixo do balcão à procura de seu frasco cromado e o enchi de conhaque. Talvez precisássemos daquilo antes que a noite terminasse. Nevasca do Maine... já estiveram numa? A neve vem voando, tão densa e fina que parece areia e tem o mesmo som ao bater na lataria dos veículos. Não usamos faróis altos porque refletem o brilho da neve e fica impossível enxergar a mais que três metros de distância. Com os faróis baixos, pode-se enxergar talvez quatro metros e meio. Mas sou capaz de viver com a neve. O que não me agrada é o vento, que sopra a neve em mil e uma estranhas formas voadoras e tem o som de todo o ódio, sofrimento e medo neste mundo. Existe morte na garganta de uma tempestade de neve, morte branca ― e, talvez, algo além da morte. Não é um som agradável de ouvir quando se está bem acomodado na cama, sob as cobertas, com os trincos passados nos postigos e as portas trancadas. Mas é muito pior quando se está dirigindo um veículo. E nós estávamos indo diretamente para Salem's Lot. ― Será que não podemos ir um pouco mais depressa? ― quis saber Lumley. Repliquei: ― Para quem chegou meio-enregelado, você está com uma pressa danada de sair outra vez. Ele me lançou um olhar ressentido e confuso, calando a boca. Seguíamos pela estrada a uma velocidade constante de quarenta quilômetros por hora. Era difícil acreditar que Billy Larribee acabara de passar o trator naquele trecho, havia mais ou menos uma hora; mais cinco centímetros de neve tinham-se acumulado na estrada e o vento começava a soprá-los para formar montículos. As rajadas nais fortes de vento sacudiam o Scout. Os faróis iluminavam um impenetrável turbilhão branco à nossa frente. Não encontramos um único carro. Cerca de dez minutos mais tarde, Lumley soltou uma exclamação de espanto: ― Ei! O que é aquilo? Apontava para meu lado do carro. Eu estivera olhando para a frente. Virei a cabeça, mas tarde demais. Tive a impressão de ainda ver de relance um vulto baixo se afastando do carro e sumindo na neve, mas poderia ser apenas imaginação. ― O que foi? Um veado? ― perguntei. ― Creio que sim ― disse Lumley com voz trêmula. ― Mas os olhos... pareciam vermelhos. Virou-se para mim: ― Como são os olhos de um veado à noite? O tom de sua voz era quase suplicante. ― Podem parecer qualquer coisa ― respondi, refletindo que talvez fosse verdade, mas eu vira muitos veados à noite, de dentro de muitos carros, e nunca deparei com um par de olhos que tivessem reflexos vermelhos. Tookey permaneceu calado. Cerca de quinze minutos depois chegamos a um local onde o monte de neve no lado direito da estrada não era tão alto, porque os tratores de limpar neve costumam erguer um pouco as lâminas quando passam por um cruzamento. ― Parece que foi aqui que fizemos a curva ― disse Lumley, parecendo não ter muita certeza. ― Não estou vendo a placa... ― É aqui mesmo ― afirmou Tookey,. com uma voz muito diferente do normal. ― Dá para ver apenas o topo do poste. ― Oh, claro ― disse Lumley, parecendo aliviado. ― Escuta, Sr. Tooklander, lamento ter sido tão brusco lá atrás. Estava com frio, preocupado e acusando-me de ser duzentos tipos de idiota. E desejo agradecer a ambos... ― Não nos agradeça até termos as mulheres dentro do carro atalhou Tookey. Engrenou a tração nas quatro rodas e abriu caminho à força pelo monte de neve acumulada, chegando à Avenida Jointner, que atravessa Jerusalem's Lot e segue até a Rodovia 295. A neve jorrava contra os guarda-lamas. A traseira mostrou tendência para derrapar um pouco, mas Tookey estava habituado a dirigir na neve desde o tempo do onça. Controlou a derrapagem, falando com o carro, e prosseguimos. Os faróis iluminavam as marcas deixadas a intervalos por outro veículo, que logo desapareciam. O cano de Lumley. Este se debruçava para diante, procurando avistá-lo. De repente, Tookey disse: ― Sr. Lumley. ― O que é? ― indagou ele, olhando para Tookey. ― O pessoal destas bandas é um tanto supersticioso a respeito de Jerusalem's Lot ― disse Tookey, soando bastante calmo ― embora eu pudesse ver-lhe os vincos de tensão ao redor da boca e o modo pelo qual seus olhos se dirigiam incessantemente de um lado para outro. ― Se sua família estiver dentro do carro, ora, será ótimo. Nós as transferiremos para este carro e voltaremos à minha casa; amanhã de manhã, quando a tempestade cessar, Billy terá o máximo prazer em rebocar seu automóvel para fora do monte de neve. Contudo, se não estiverem no carro... ― Não estiverem no carro? ― interrompeu asperamente Lumley. Por que não estariam? ― Se não estiverem no carro ― prosseguiu Tookey, sem responder as perguntas ―, vamos dar a volta e retornar a Falmouth Center para chamar o xerife. De qualquer maneira, não faz sentido perambularmos por aí à noite, em meio à tempestade, não é mesmo? ― Elas estarão no carro. Em que outro lugar poderiam estar? Eu acrescentei: ― Mais uma coisa, Sr. Lumley: se avistarmos alguém, não falaremos com eles. Nem mesmo se falarem conosco. Está entendendo? Com voz muito sumida, Lumley indagou: ― Quais são as tais superstições? Antes que eu pudesse responder ― só Deus sabe o que eu teria dito ―, Tookey atalhou: ― Chegamos. Aproximavamo-nos da traseira de uma grande Mercedes. O capô inteiro estava mergulhado num monte de neve e outro monte amassara todo o lado esquerdo do carro. Mas as lanternas traseiras estavam acesas e podíamos ver a fumaça saindo do cano de descarga. ― A gasolina não acabou, pelo menos ― comentou Lumley. Tookey parou o Scout e puxou o freio de mão. ― Lembra-se do que Booth lhe disse, Lumley. ― Claro, claro. Mas ele só conseguia pensar na mulher e na filha. E não vejo por que censurá-lo. ― Pronto, Booth? ― perguntou-me Tookey. Seus olhos, sombrios e cinzentos à luz do painel, cruzaram com os meus. ― Creio que sim ― respondi. Saímos e o vento nos atacou, jogando-nos neve no rosto. Lumley foi à frente, curvado contra o vento, o elegante sobretudo enfunado às suas costas como uma vela. Lançava duas sombras: um dos faróis de Tookey e outra das lanternas traseiras de seu próprio carro. Fui atrás dele e Tookey um passo atrás de mim. Quando cheguei ao porta-malas da Mercedes, Tookey me deteve. ― Deixe-o ir sozinho ― disse ele. ― Janey! Francie! ― gritou Lumley. ― Tudo bem? Abriu a porta do lado do motorista e debruçou-se para o interior do carro. ― Tudo... Ficou petrificado. O vento lhe arrancou a pesada porta das mãos e escancaroua. ― Meu Deus, Booth ― disse Tookey, contra o barulho do vento. Acho que aconteceu outra vez. Lumley virou-se para nós. Tinha o rosto apavorado e perplexo, os olhos esbugalhados. De repente, atirou-se contra nós através da neve, tropeçando e quase caindo. Empurrou-me para o lado como se eu não existisse e agarrou Tookey. ― Como você sabia? ― rugiu ele. ― Onde estão elas? Que diabo se passa aqui? Tookey livrou-se dele, afastando-o para um lado, e avançou até o automóvel. Ele e eu olhamos juntos para o interior da Mercedes. Quente como uma torrada saída da chapa, mas não continuaria assim por muito tempo. A pequena luz amarela que indicava o final da gasolina estava acesa. O grande automóvel estava vazio. No tapete do chão junto ao banco da direita estava uma boneca de criança. E um casaco de esqui de criança dobrado sobre o encosto do banco. Tookey levou as mãos ao rosto... e desapareceu de repente. Lumley o agarrara, empurrando-o de encontro ao monte de neve. O forasteiro estava pálido e desvairado. A boca se mexia como se mastigasse algo amargo que ainda estava preso aos dentes e ele não conseguia cuspir. Enfiou o braço no carro e pegou o casaco de esqui de criança. ― O casaco de Francie? ― disse quase num sussurro. Então, soltou um berro: ― O casaco de Francie! Olhou para mim, atônito e incrédulo, dizendo: ― Ela não pode sair do carro sem o casaco, Sr. Booth. Ora... ora ... morrerá congelada. ― Sr.― Lumley... Ele passou por mim, ainda segurando o casaco, e gritou: ― Francie! Janey! Onde estão vocês? Onde estão? Estendi a mão para Tookey e ajudei-o a levantar-se. ― Você está...? ― Não importa ― atalhou ele. ― Precisamos pegá-lo, Booth. Fomos atrás de Lumley o mais depressa possível, o que não era muito rápido com a neve nos chegando à altura dos quadris em alguns lugares. Mas ele parou e nós o alcançamos. ― Sr. Lumley... ― disse Tookey, pousando-lhe uma mão no ombro. ― Por aqui ― interrompeu Lumley. ― Foi por aqui que elas vieram. Vejam! Olhamos para baixo. Estávamos numa espécie de depressão do terreno e o vento passava acima de nossas cabeças. E podíamos ver dois conjuntos de pegadas, um adulto e outro de criança, que começavam a ser cobertos pela neve. Se chegássemos cinco minutos mais tarde, teriam desaparecido. Lumley começou a andar na direção das pegadas e Tookey o deteve. ― Não! Não, Lumley! Ele voltou o rosto desvairado para Tookey e cerrou o punho. Ergueu o braço... mas algo na expressão de Tookey fê-lo hesitar. Olhou de Tookey para mim e vice-versa. ― Ela morrerá congelada ― repetiu, como se fossemos duas crianças. ― Será que não entendem? Ela deixou o casaco no carro e tem apenas sete anos de idade... ― Elas podem estar em qualquer lugar ― disse Tookey. ― É impossível seguir essas pegadas. Já terão desaparecido na próxima elevação do terreno. ― O que sugere? ― quis saber Lumley, em voz aguda e histérica. Se voltarmos para chamar a polícia, ela morrerá de frio! Francie e a minha mulher! ― Talvez já estejam mortas ― disse Tookey, encarando Lumley. Congeladas ou algo pior. ― Que quer dizer com isso? ― perguntou Lumley. ― Fale logo, diabo! Conte-me! ― Sr. Lumley ― começou Tookey ―, existe alguma coisa em Jerusalem's Lot... Mas, afinal, fui eu quem terminei a frase, dizendo a palavra que esperava jamais pronunciar: ― Vampiros, Sr. Lumley. Jerusalem's Lot está cheia de vampiros. Presumo que seja difícil para o senhor engolir... Ele me fitava como se eu tivesse ficado verde. ― Malucos ― murmurou. ― Vocês são dois malucos. Então, deu-nos as costas, colocou as mãos em concha na boca e gritou: ― FRANCIE! JANEY! Começou a avançar outra vez. A neve lhe chegava à bainha do elegante sobretudo. Olhei para Tookey: ― Que fazemos agora? ― Vamos atrás dele ― respondeu Tookey, os cabelos emplastrados de neve e parecendo realmente um tanto maluco. ― Não posso abandoná-lo aqui, Booth. Você pode? ― Não ― repliquei. ― Creio que não. Começamos a caminhar pela neve da melhor maneira possível, no encalço de Lumley. Ele deixava um rastro largo, avançando pela neve como um touro enfurecido. Tinha sua juventude para gastar e se distanciava cada vez mais de nós. Minha artrite começou a incomodar-me horrivelmente e comecei a olhar para as pernas, dizendo comigo mesmo: Um pouco mais, só um pouco mais, continue avançando, diabo, continue avançando... Esbarrei em Tookey, que estava postado de pemas abertas num monte de neve. Tinha a cabeça baixa e ambas as mãos apertadas contra o peito. ― Tookey ― perguntei ―, você está bem? ― Muito bem ― disse ele, baixando as mãos. ― Vamos atrás dele, Booth. Quando cansar, ele verá a luz da razão. Chegamos ao topo de uma elevação e lá estava Lumley, no fundo da depressão seguinte, procurando desesperadamente mais pegadas. Pobre homem, não tinha a menor possibilidade de encontrá-las. O vento soprava exatamente onde se encontrava e qualquer pegada desapareceria três minutos depois de ser deixada na neve. Muito mais em duas horas... Lumley levantou a cabeça e gritou para a noite: ― FRANCIE! JANEY! PELO AMOR DE DEUS! Pude sentir o terror e o desespero em sua voz e tive pena dele. A única resposta que obteve foi o rugido do vento, parecendo a passagem de um trem de carga. Quase parecia zombar de Lumley, dizendo: Eu as levei, Sr. Nova Jersey, com seu carro bonito e seu sobretudo elegante. Eu as levei e apaguei as pegadas; amanhã de manhã, elas estarão tão lindas e congeladas quanto dois morangos num freezer.. ― Lumley! ― berrou Tookey acima do vento. ― Ouça: esqueça-se de vampiros, fantasmas e tudo o mais, mas lembre-se de uma coisa! Você está piorando as coisas para elas! Precisamos buscar... Então, houve uma resposta, uma voz vinda do escuro como o repicar de um sino de prata. Meu coração ficou gelado como gelo numa cisterna. ― Jerry... É você, Jerry? Lumley girou nos calcanhares ao escutar a voz. Então ela veio, flutuando das sombras de um pequeno bosque como um fantasma. Era mesmo uma mulher da metrópole e, naquele momento, parecia ser a mulher mais linda que eu já vira. Senti vontade de me aproximar para dizer-lhe o quanto me alegrava saber que, afinal, ela estava bem. Usava uma pesada roupa de lã verde, um poncho, creio que assim chamam. Flutuava ao redor dela. Os cabelos escuros esvoaçavam ao vento selvagem como a água de um riacho em dezembro, antes de ser congelado pelo inverno. Talvez eu tenha avançado um passo em direção a ela, pois senti a mão de Tookey em meu ombro, calejada e quente. E, não obstante ― como devo dizer? ― eu ansiava por ela, tão morena e linda, com aquele poncho verde flutuando ao redor do pescoço e dos ombros, tão exótica e estranha a ponto de me fazer pensar em alguma bela mulher de um dos poemas de Walter de la Mare. ― Janey! ― gritou Lumley. ― Janey! E começou a avançar pela neve em direção a ela, com os braços estendidos. ― Não! ― berrou Tookey. ― Não, Lumley! Ele nem olhou... mas ela, sim. Olhou para nós e sorriu. E quando ela sorriu, senti meus anseios, meu desejo, transformarem-se num pavor tão frio quanto a sepultura, tão branco e silencioso quanto ossos envoltos numa mortalha. Mesmo da elevação do terreno, conseguíamos distinguir o sinistro brilho vermelho naqueles olhos. Eram menos humanos que os olhos de um lobo. E quando ela sorriu, percebemos como seus dentes se tinham tornado compridos. Ela deixara de ser humana. Era uma criatura morta que, de algum modo, voltara à vida naquela negra tempestade uivante. Tookey fez o Sinal da Cruz para ela, que se encolheu momentaneamente... e depois tornou a sorrir para nós. Estávamos longe demais e, talvez, apavorados demais. ― Pare! ― sussurrei. ― Não podemos impedir? ― Tarde demais, Booth! ― replicou Tookey, sombrio. Lumley chegara até ela. Ele próprio parecia um fantasma, coberto de neve como estava. Estendeu as mãos para ela... e então começou a gritar. Eu escutarei aquele som em meus pesadelos: um homem adulto gritando como uma criança assustada por um sonho mau. Tentou afastar-se dela, recuar, mas os braços dela, compridos, nus, brancos como a neve, moveram-se como serpentes e o enlaçaram. Pude vê-la tombar a cabeça de lado e, em seguida, levá-la à frente... ― Booth! ― exclamou Tookey com voz rouca. ― Temos que sair daqui! Portanto, fugimos. Suponho que haja quem diga que fugimos como ratos assustados, mas é porque não estiveram lá naquela noite. Voltamos sobre nossos próprios rastros, caindo, levantando, escorregando, deslizando. Eu olhava repetidamente por cima do ombro, a fim de verificar se a mulher vinha atrás de nós, com aquele sorriso medonho e observando-nos com aqueles olhos vermelhos. Voltamos ao Scout e Tookey se dobrou em dois, segurando o peito. ― Tookey! ― exclamei, deveras amedrontado. ― O que... ― Coração ― disse ele. ― Está ruim há mais de cinco anos. Coloque-me no outro assento, Booth. Vamos cair fora daqui! Enfiei um braço por baixo de seu casaco e, não sei como, consegui colocá-lo no carro e sentá-lo no banco do passageiro. Ele recostou a cabeça no encosto do banco e fechou os olhos. Tinha a pele amarela, com aparência de cera. Dei a volta pela frente do capô, correndo, e quase esbarrei na garotinha. Ela estava parada junto à porta do motorista, com os cabelos presos à moda Maria Chiquinha, usando apenas um leve vestido amarelo. ― Moço ― disse ela, numa voz alta e nítida, tão doce quanto a névoa matinal. ― Quer me ajudar a encontrar minha mãe? Ela foi embora e estou com tanto frio... ― Queridinha ― respondi ―, queridinha, acho melhor subir no carro. Sua mãe... Interrompi-me e, se alguma vez estive prestes a desmaiar, foi naquele momento. A garotinha estava parada ali, mas seus pés estavam em cima da neve e não havia pegadas em qualquer direção. Então, ela olhou para mim ― Francie, a filha de Lumley. Tinha apenas sete anos de idade e continuaria a tê-los por uma infinidade de noites. Seu rostinho tinha uma horrível brancura cadavérica, os olhos um vermelho prateado que dava vontade da gente se atirar neles. E logo abaixo do maxilar eu pude ver dois furinhos como picadas de alfinete, as bordas horrivelmente laceradas. Ela estendeu os braços para mim e sorriu. ― Pegue-me no colo, moço ― pediu suavemente. Quero dar-lhe um beijo. Então, o senhor pode me levar à minha mamãe. Eu não queria, mas nada pude fazer. Estava curvado para a frente, os braços estendidos. Pude ver sua boca se abrindo e as pequenas presas salientes por detrás de seus lábios rosados. Algo lhe escorreu pelo queixo, prateado e brilhante. Com um pavor surdo, distante, dei-me conta de que ela estava babando. Suas mãos pequenas me seguraram pelo pescoço e eu pensei: Bem, talvez não seja tão ruim, depois de algum tempo... Então, algo negro voou de dentro do Scout e atingiu-a no peito. Ocorreu uma explosão de fumaça com cheiro esquisito, um relâmpago que sumiu instantaneamente. Ela recuou, sibilando. O rosto retorcia-se numa máscara vulpina de raiva, ódio e dor. Ela se virou de lado... e desapareceu. Num momento ela estava ali, no momento seguinte, havia apenas um redemoinho de neve que se parecia um pouco com um vulto humano. Então, o vento soprou-o para longe. ― Booth! ― sussurrou Tookey. ― Depressa, agora! E eu me apressei. Mas não tanto que não tivesse tempo para apanhar o que ele jogara na garotinha vinda do inferno. Era a Bíblia de sua mãe. Isso ocorreu há algum tempo. Agora, estou mais velho ― e já não era um frangote naquela ocasião. Herb Tooklander faleceu há dois anos. Morreu tranqüilamente, durante a noite. O bar ainda existe, um casal de Waterville o comprou, gente boa, mantendo-o quase o mesmo. Mas não vou muito lá. De algum modo, parece-me diferente sem a presença de Tookey. As coisas em Jerusalem's Lot continuam praticamente como sempre foram. No dia seguinte, o xerife encontrou o carro daquele sujeito, o tal Lumley, sem gasolina e com a bateria arriada. Nem Tookey nem eu dissemos uma palavra a respeito. De que adiantaria? E, de vez em quando, algum viajante de carona ou alguém que veio acampar na região desaparece lá por perto, em Schoolyard Hill ou nas proximidades do cemitério. Encontram a mochila ou o livro de bolso do sujeito, ensopados pela neve ou pela chuva, ou por algo semelhante. Mas nunca encontram a pessoa. Ainda tenho pesadelos com aquela noite tempestuosa em que fomos até lá. Não tanto com a mulher quanto com a garotinha e o modo como esta sorriu e estendeu os braços para que pudesse pegá-la no colo, para que ela pudesse dar-me um beijo. Mas estou velho e em breve chegará o tempo em que os pesadelos terminam. Talvez vocês tenham ocasião de viajar pelo sul do Maine qualquer dia desses. Um panorama bonito. Talvez até mesmo parem no bar do Tookey para um drinque. É um bom lugar. Os novos donos o mantiveram o mesmo. Portanto, tomem seu drinque e meu conselho é que continuem logo rumo ao norte. Seja lá por que motivo for, não tomem a estrada que vai para Jerusalem's Lot. Em especial, não depois do anoitecer. Por lá ainda existe uma garotinha. E creio que ela ainda está à espera do beijo de boanoite.

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