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sexta-feira, 25 de setembro de 2015

A mulher no quarto




A questão é:
Será ele capaz de fazer aquilo? Ele não sabe. Ele sabe que ela as mastiga de vez em quando, fazendo caretas por causa do horrível gosto de laranja, emitindo um som de palitos de picolé sendo partidos. Mas estas são pílulas diferentes... cápsulas de gelatina. O rótulo da caixa diz: COMPLEXO DARVON. Ele as encontrou no armário remédios dela e rolou-as na mão, pensando. Era um remédio que o médico receitara antes de ela voltar a ser internada no hospital. Algo para passar a noite. O armário está cheio de remédios, cuidadosamente arrumados em fileiras como frascos de drogas de curandeiro. Sinais do mundo ocidental. SUPOSITÓRIOS FLEET. Ele jamais utilizou um supositório na vida e a idéia de enfiar no reto algo gorduroso que se derrete com o calor do corpo causa-lhe repulsa. Não existe dignidade em enfiar coisas na bunda. LEITE DE MAGNÉSIA DE PHILLIPS. FÓRMULA ANACIN PARA ARTRITE. PEPSO-BISMOL. E assim por diante. É possível reconstituir o progresso da moléstia dela por meio dos remédios. Mas estas pílulas são diferentes. Parecem com o Complexo Darvon normal apenas por serem cápsulas gelatinosas. Mas são maiores, o que seu falecido pai costumava chamar de pílulas "pica de cavalo". O rótulo diz: Aspirina 350g ― Darvon 100g. Seria ela capaz de mastigá-las, mesmo se ele lhe desse em mãos? Seria? A casa ainda continua a funcionar. A geladeira liga e desliga automaticamente, a caldeira também dá partida e, depois, pára, a intervalos regulares o cuco rabujento sai do relógio para anunciar as horas e meias-horas. Ele presume que depois que ela morrer caberá a Kevin e ele desmontar a casa. Ela se foi, mesmo. A casa inteira o diz. Ela. está no Hospital Central de Maine, em Lewiston. Quarto 312. Foi internada quando a dor se tornou tão forte que ela nem mais conseguia ir à cozinha fazer café. Às vezes, quando ele a visitava, ela chorava sem perceber. O elevador sobe barulhentamente e ele se vê examinando o certificado azul da companhia de manutenção de elevadores. O certificado deixa bem claro que, com barulho ou sem ele, o elevador é seguro. Ela já está no hospital há três semanas e hoje fizeram-lhe uma operação chamada "cortotomia". Ele não sabe como se escreve, mas é assim que se pronuncia. O médico disse a ela que "cortotomia" consiste em enfiar uma agulha no pescoço e fazer que penetre até o cérebro. O médico explicou que é algo semelhante a enfiar um alfinete comprido numa laranja e espetar um caroço. Quando a agulha atingir o centro da dor, enviarão um sinal de rádio ao longo da agulha e, quando o sinal atingir a ponta, o centro da dor será eliminado. Como desligar um aparelho de TV. Então, o câncer na barriga deixará de incomodá-la tanto. A idéia de tal operação deixa-o ainda mais inquieto que a idéia de supositórios derretendo-se calidamente em seu reto. Lembra-lhe um livro de Michael Crichton, chamado The Terminal Man, que trata da colocação de fios no cérebro das pessoas. Segundo Crichton, pode ser uma cena muito desagradável. É melhor acreditar. A porta do elevador se abre no terceiro andar e ele sai. Esta é a ala antiga do hospital e tem o cheiro adocicado da serragem que costumam espalhar sobre o vômito nas feiras do interior. Ele deixou as pílulas no porta-luvas do carro. E não bebeu nada antes desta visita. As paredes são pintadas em dois tons: marrom em baixo, branco em cima. Ele reflete que a única combinação de duas cores no mundo que poderia ser mais deprimente que marrom e branco é cor-de-rosa ,e preto. Corredores de hospital pintados assim... A idéia o faz sorrir e sentir náuseas ao mesmo tempo. Dois corredores se cruzam em T em frente ao elevador e existe um bebedouro no qual ele sempre pára a fim de adiar um pouco as coisas. Peças de equipamento hospitalar aqui e acolá, como estranhos brinquedos num playground. Uma maca com lados cromados e rodas de borracha, o tipo de coisa em que o doente é levado à sala de cirurgia quando estão prontos para efetuar a "cortotomia". Também existe um grande objeto circular cuja função ele desconhece. Uma bandeja rolante com uma haste vertical na qual estão pendurados dois vidros, como uma pintura de seios feita por Salvador Dali. Num dos corredores fica a sala das enfermeiras e risos lubrificados a café chegam até ele. Ele bebe água e depois se encaminha para o quarto dela. Tem medo do que possa encontrar e reza para que ela esteja dormindo. Se estiver, ele não a despertará. Acima da porta de cada quarto existe uma pequena luz quadrada. Quando um paciente toca a campainha, a luz se acende, com um brilho vermelho. Em ambos os sentidos do corredor, pacientes andam devagar, usando roupões baratos de hospital sobre pijamas também fornecidos pelo hospital. Os roupões têm finas listras azuis e brancas, bem como golas redondas. Os pijamas de hospital, uma espécie de roupa de baixo, são chamados "johnnies". Os "johnnies" ficam bem nas mulheres, mas parecem esquisitos nos homens porque parecem combinações ou camisolas que chegam à altura dos joelhos. Os homens sempre parecem usar chinelos marrons de couro de imitação. As mulheres preferem chinelas tricotadas, com uma borla de lã. A mãe dele possui um par e as chama de "mulas". Os pacientes lembram-lhe um. filme de terror chamado "A Noite dos MortosVivos". Todos andam devagar, como se alguém lhes destampasse os órgãos como vidros de maionese e os líquidos ficassem balançando lá dentro, prestes a se entornarem. Alguns usam bengalas. Seu andar vagaroso ao passearem pelos corredores é assustador, mas também possui dignidade. É o andar de pessoas que se dirigem lentamente para lugar nenhum, o andar de universitários de becas e barretes acadêmicos dirigindo-se ao auditório para uma reunião. Música ectoplásmica soa por toda parte, emitida por rádios transistorizados. Vozes tagarelam. Ele pode ouvir Black Oak Arkansas cantando "Jim Dandy" (uma voz de falsete grita alegremente "Vai, Jim Dandy ! Vai Jim Dandy!" para os lentos caminhantes no corredor). Pode ouvir o mediador de um programa de debates discutindo Nixon num tom que foi mergulhado em ácido, como uma pena fumegante de caneta. Pode ouvir uma polca cantada em francês ― Lewiston ainda é uma cidade na qual se fala francês e as pessoas gostam quase tanto de dançar quanto de se apunhalarem nos bares da parte mais baixa de Lisbon Street. Ele pára diante da porta do quarto da mãe e durante algum tempo, esteve bastante desorientado a ponto de vir embriagado. Envergonhava-se de estar bêbado diante da mãe, embora ela estivesse por demais dopada e cheia de Elavil para perceber. Elavil é um tranqüilizante que ministram aos pacientes de câncer a fim de não se aborrecerem tanto por estarem morrendo. A rotina que ele seguia era comprar uma dúzia de cervejas Black Label no Mercado de Sonny, à tarde. Sentava com as crianças para assistir aos programas que elas gostavam de ver à tarde na televisão. Três cervejas durante "Rua Sésamo", duas durante "Mister Rogers", uma durante "Companhia Elétrica". Depois, uma com o jantar. Levava as outras cinco cervejas no carro. Era um trajeto de trinta e cinco quilômetros entre Raymond e Lewiston, pelas Rodovias 302 e 202, de modo que era possível estar bastante de porre quando chegava ao hospital, restando ainda uma ou duas cervejas. Trazia coisas para a mãe e as deixava no carro, a fim de ter uma desculpa para voltar e apanhá-las ― e também beber mais meia cerveja, continuando alto. Dava-lhe também uma desculpa para urinar ao ar livre e, de algum modo, isto era o melhor de toda aquela miserável estória. Sempre estacionava o carro no parqueamento lateral, que era de terra batida, esburacada e congelada em novembro, de modo que o ar frio da noite assegurava total contração da bexiga. Urinar num dos banheiros do hospital assemelhava-se demais a uma apoteose de toda aquela experiência hospitalar: o botão da campainha para chamar a enfermeira ao lado da caixa de descarga do vaso sanitário, a alavanca cromada aparafusada num ângulo de 45 graus, o vidro de desinfetante cor-de-rosa acima da pia. Coisa ruim. É melhor acreditar. A vontade de beber no caminho de volta para casa era nenhuma. Portanto, o que sobrasse da cerveja era guardado na geladeira, em casa, e quando completava meia dúzia... ele jamais teria vindo se soubesse que seria tão ruim. A primeira idéia que lhe passa pela cabeça é Ela não é uma laranja e a segunda é Ela está realmente morrendo depressa, agora, como ela tivesse hora marcada para pegar um trem para o nada. Ela luta na cama, sem se mexer, exceto pelos olhos, mas lutando no interior do corpo, pois algo se mexe lá dentro. Tem o pescoço alaranjado por alguma coisa semelhante a mercúrio cromo e um curativo abaixo da orelha esquerda, onde algum médico cantarolante enfiou a agulha de rádio e explodiu 60% de seu controle motor juntamente com o centro de dor. Seu olhar o acompanha como os olhos de um Jesus Cristo estereotipado. ― Acho melhor você não me ver esta noite, Johnny. Não estou muito bem. Talvez esteja melhor amanhã. ― O que sente? ― Coceira. O corpo inteiro me coça. Minhas pernas estão fechadas? Ele não consegue verificar se as pernas dela estão fechadas. São apenas um V elevado sob o amarrotado lençol do hospital. Faz muito calor no quarto. No momento, não há paciente na outra cama. Ele pensa: Companheiros de quarto chegam e saem, mas minha mãe fica para sempre. Cristo! ― Estão, sim, Mamãe. ― Puxe-as para baixo, está bem, Johnny? Depois, é melhor você ir embora. Nunca antes estive numa situação como esta. Não consigo mexer nada. Meu nariz coça. Não é de causar pena, sentir coceira no nariz e não poder coçá-lo? Ele coça o nariz dela e depois segura-lhe as pernas através do lençol e puxa-as para baixo. Pode segurar ambas as pernas com apenas uma das mãos, sem maiores dificuldades, embora não tenha mãos particularmente grandes. Ela geme. As lágrimas lhe escorrem dos olhos para as orelhas. ― Mamãe? ― Pode puxar minhas pernas para baixo? ― Acabo de fazer isso. ― Oh. Está bem, então. Creio que estou chorando. Não queria chorar na sua frente. Gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto. ― Quer um cigarro? ― Pode me dar um gole d'água primeiro, Johnny? Estou seca corno madeira velha. ― Claro. Ele pega o copo com o canudinho flexível e sai do quarto, indo até o bebedouro. Um homem gordo com uma atadura elástica na perna caminha lentamente pelo corredor. Não está usando um dos roupões listrados e segura o "johnny", fechando-o atrás de si. Ele enche o copo no bebedouro e volta ao Quarto 312. Ela parou de chorar. Seus lábios se fecham sobre o canudinho de um modo que lembra a ele um camelo que viu num filme de viagens. O rosto está magro, descarnado. A lembrança mais vívida que ele tem dela na vida que levou como seu filho é de uma época em que tinha doze anos. Ele, seu irmão Kevin e aquela mulher tinham-se mudado para o Maine a fim de que ela pudesse cuidar dos pais. A mãe era velha e inválida. Pressão alta tornara a avó dele senil e, para somar insulto ao mal físico, deixara-a cega. Feliz 68° aniversário. Boa piada. E ela ficava deitada na cama o dia inteiro, cega e senil, usando enormes fraldas e calças de borracha, incapaz de se lembrar do que fora servido no café da manhã, mas capaz de recitar os nomes de todos os Presidentes dos Estados Unidos, até Ike Eisenhower. E assim, três gerações da família tinham vivido juntas naquela casa onde ele tão recentemente encontrara as pílulas (embora ambos os avós já tivessem morrido há muito tempo) e, aos doze anos, ele reclamava de algo durante o café da manhã. Não se recorda de que, mas reclamava de alguma coisa. Sua mãe estivera lavando as fraldas mijadas da avó e passando-as pelos rolos secadores da antiga máquina de lavar roupa. Voltando-se para ele, batera-lhe com uma das fraldas e a primeira pancada da fralda molhada e pesada virara o prato de mingau que ele estava tomando, atirando-o através da mesa. A segunda pancada o atingira nas costas, sem machucar, mas fazendo-o calar-se de susto e parar de reclamar. E aquela velha encarquilhada que agora jazia sobre a cama naquele quarto de hospital tornara a bater-lhe repetidamente com a fralda molhada, dizendo: Cale essa boca tagarela, a única coisa que você tem de grande é a língua e trate de mantê-la quieta até que o resto de você fique do mesmo tamanho ― e cada palavra grifada era acompanhada de uma pancada com a fralda da avó. Quaisquer outras reclamações que ele tivesse a fazer simplesmente se evaporaram. Não havia no mundo oportunidade para conversa fiada. Naquele dia e para sempre, ele descobriu que não existe no mundo algo tão perfeito para fixar a impressão de um menino de doze anos quanto ao seu lugar no esquema, de acordo com a devida perspectiva, que levar nas costas uma pancada com uma fralda molhada da avó. Depois disso, ele levara quatro anos para reaprender a arte de bancar o espertinho. Ela se engasga um pouco com a água e o assusta, apesar de estar pensando em dar as pílulas a ela. Torna a perguntar se ela quer um cigarro. ― Se não for incômodo para você ― responde ela. ― Depois, é melhor você ir. Talvez eu esteja melhor amanhã. Ele tira um Kool de um dos maços espalhados sobre a mesinha de cabeceira e o acende. Segurando-o entre o polegar e o indicador da mão direita, leva-o aos lábios dela, que tira uma tragada, fazendo um bico com os lábios para sugar o filtro. A tragada é fraca; a fumaça lhe escapa pelos lábios. ― Tive que viver sessenta anos para que meu filho segurasse um cigarro para mim. ― Não me incomodo. Ela tira outra tragada e prende o filtro com os lábios durante tanto tempo que ele ergue o olhar para fitar os olhos dela e percebe que estão fechados. ― Mamãe? Ela entreabre vagamente os olhos. ― Johnny? ― Exato. ― Há quanto tempo está aqui? ― Não muito. Acho melhor eu ir embora e deixar você dormir. ― Hmrnmm. Ele apaga o cigarro no cinzeiro e sai furtivamente do quarto, pensando: Quero falar com aquele médico. Diabo, quero falar com o médico que fez aquilo. Ao entrar no elevador, reflete que a palavra "doutor" se transforma em sinônimo de "homem" depois que um certo grau de proficiência na profissão é atingido, como se fosse previsto e esperado que os médicos devam ser cruéis para, assim, chegarem a um grau especial de humanidade. Mas. ― Não creio que ela dure muito mais ― diz ele ao irmão mais tarde, naquela mesma noite. O irmão mora em Andover, cento e dez quilômetros a oeste. Só vai ao hospital uma ou duas vezes por semana. ― Mas a dor melhorou? ― indaga Kev. ― Ela diz que sente coceiras. Tem as pílulas no bolso do paletó. Sua esposa já foi dormir. Tira as pílulas do bolso, roubadas da casa vazia da mãe, onde outrora todos eles moraram com os avós. Enquanto fala, gira a caixa entre os dedos, como um pé de coelho. ― Bem, então ela está melhor. Para Kev tudo está melhor, sempre, como se a vida caminhasse para um clímax sublime. É uma opinião da qual o irmão mais moço não compartilha. ― Ela está paralisada. ― Interessa, a esta altura? ― Claro que interessa! ― explode ele, pensando nas pernas dela sob o lençol branco amarrotado. ― Ela está morrendo, John. ― Ainda não morreu. Na realidade, é isso que o horroriza. Daqui em diante, a conversa prosseguirá em círculos, com os lucros indo para a companhia telefônica. Mas este é o ponto crucial: ela está morrendo, mas ainda não morreu. Simplesmente jaz naquele leito de hospital com uma etiqueta presa ao pulso, escutando rádios fantasmas passearem pelo corredor. E ela terá que lutar contra o tempo, diz o médico. É um sujeito grandalhão, com uma barba ruiva alourada. Tem mais de um metro e noventa de altura, ombros heróicos. O médico o conduziu delicadamente para o corredor quando ela começou a cochilar. E prossegue: ― Entenda: numa operação como a "cortotomia", algum dano motor e quase inevitável. Agora, sua mãe já tem algum movimento na mão esquerda. Podemos esperar, razoavelmente, que ela recupere a mão direita dentro de duas a quatro semanas. ― Ela voltará a andar? O médico fita judiciosamente o teto de cortiça furada do corredor. Sua barba nasce desde o colarinho da camisa quadriculada e, por algum motivo ridículo, Johnny se lembra de Algerson Swinbume; ora, não podia dizer. O homem à sua frente é o oposto de Swinbume, sob todos os aspectos. ― Eu diria que não. Ela perdeu muito terreno. ― Vai ficar inválida pelo resto da vida? ― Sim, creio que é uma suposição razoável. Ele começa a sentir alguma admiração por aquele homem, que esperava que fosse seguramente detestável. É uma sensação seguida de desgosto: precisa sentir admiração pela mera verdade? ― Por quanto tempo ela pode viver assim? ― É difícil dizer. (Estava ficando melhor, pensou ele.) Agora, o tumor está bloqueando um dos rins. O outro funciona normalmente. Quando o tumor bloquear o segundo, ela dormirá. ― Coma urêmico? ― Sim ― diz o médico, mas com um pouco mais de cautela. "Uremia" é um termo técnico-patológico, geralmente de uso exclusivo dos médicos e legistas. Mas Johnny o conhece porque sua avó morreu da mesma causa, embora não tivesse câncer. Seus rins deixaram de funcionar e ela morreu flutuando em urina interna até a caixa torácica. Morreu na cama, em casa, à hora do jantar. Johnny foi o primeiro a suspeitar de que ela estivesse realmente morta e não dormindo da maneira comatosa, de boca aberta, que é costume dos velhos. Sua velha boca desdentada estava repuxada para dentro, lembrando um tomate cujo miolo foi extraído e depois ficou esquecido na prateleira da cozinha durante vários dias. Duas lágrimas tinham escorrido dos olhos. Ele colocou um espelhinho redondo de maquilagem junto dos lábios durante um minuto e, quando o espelho não se embaçou e escondeu a imagem daquela boca de tomate murcho, chamou a mãe. Tudo aquilo pareceu certo como isto agora parecia errado. ― Ela ainda se queixa de dor. E de coceiras. O médico bate solenemente com o dedo na cabeça, como Victor de Groot nas velhas caricaturas de psiquiatras. ― Ela imagina a dor. Nem por isso é menos real. Real para ela. Eis porque o tempo é tão importante. Sua mãe não pode mais contar o tempo em termos de segundos, minutos e horas. Deve reestruturar essas unidades em dias, semanas, meses. Ele compreende o que o homem corpulento está dizendo e sente-se impotente. É como o leve tinir de uma campainha. Ele não pode conversar mais com o médico. É um técnico. Fala com palavras suaves a respeito do tempo, como se pudesse agarrar o conceito de tempo com a mesma facilidade que um caniço de pesca. E talvez possa. ― O senhor pode fazer mais alguma coisa por ela? ― Muito pouco. Mas ele se porta com serenidade, como se aquilo estivesse certo. Afinal, não está alimentando "falsas esperanças". ― Pode ser pior que um coma? ― Claro que pode. Não podemos prever essas coisas com um alto grau de precisão. É como se existisse um tubarão solto no interior do corpo do doente. Ela pode inchar. ― Inchar? ― Seu abdome pode aumentar, diminuir e depois tornar a aumentar. Mas por que falar nisso agora? Creio que, com certa segurança, podemos dizer que que eles fariam o serviço. Mas se não fizerem? Ou suponhamos que me apanhem? Não quero ser processado sob acusação de praticar eutanásia. Mesmo que seja absolvido. Não tenho causas a defender. Ele pensa nas manchetes dos jornais berrando MATRICÍDIO e faz uma careta. Sentado no carro, no estacionamento, revira interminavelmente a caixa de pílulas com os dedos. COMPLEXO DARVON. A questão continua a ser: Será ele capaz? Deve fazê-lo? Ela disse: Eu gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto. Kevin anda falando em arrumar um quarto em sua casa, para que ela não morra no hospital. O hospital quer que ela vá embora. Deram-lhe uma nova pílula e ela entrou em delírio. Isso ocorreu quatro dias depois da "cortotomia". Eles gostariam que ela fosse para outro lugar, porque até hoje ninguém aperfeiçoou uma "cancerotomia" infalível. E, a esta altura, se tirassem todo o câncer, nada restaria a ela exceto as pernas e a cabeça. Ele imagina como o tempo deve ser para ela: como algo que escapou ao controle, como uma caixa de costura cheia de novelos espalhados pelo chão para um gato brincar. Os dias no Quarto 312. As noites no Quarto 312. Eles amarram um barbante no interruptor da campainha e no dedo indicador da mão esquerda, porque ela já não pode movimentar suficientemente a mão quando acha que vai precisar da "comadre". De qualquer maneira, não faz muita diferença, porque ela não pode sentir a pressão lá embaixo; no interior de sua barriga bem poderia existir um monte de serragem. Ela evacua na cama e urina na cama ― e só percebe que o fez quando sente o cheiro. Dos setenta e cinco quilos que pesava, diminuiu para quarenta e dois e os músculos do corpo estão tão flácidos que ela é apenas um saco vazio ligado ao cérebro, como um boneco de criança. Haveria alguma diferença na casa de Kevin? Seria capaz de cometer homicídio? Ele sabe que é homicídio. O pior tipo de homicídio ― o matricídio ―, como se ele fosse um feto consciente num dos primeiros livros de terror de ficção científica escritos por Ray Bradbury, decidido a virar a mesa e abortar o animal que o gerou. De qualquer modo, talvez a culpa seja dele. Foi o Único filho nutrido dentro dela, um bebê temporão, quase na época da menopausa. Seu irmão Kevin foi adotado quando um médico sorridente disse a ela que jamais poderia conceber um filho. E, naturalmente, o câncer que agora lhe destruía as entranhas começara no útero, como um segundo filho, sombrio irmão gêmeo dele. A vida dele e a morte dela tinham começado no mesmo lugar. Deveria ele não fazer o que já estava fazendo agora de forma tão lenta e desajeitada? Vem dando a ela aspirina, às escondidas, para a dor que ela imagina sentir. Ela guarda os comprimidos numa caixinha de balas, na gaveta da mesa de cabeceira do hospital, juntamente com os cartões desejando pronto restabelecimento e os óculos que já não têm serventia. Tiraram-lhe as dentaduras por medo que ela as enfiasse pela garganta abaixo e morresse asfixiada, de modo que agora ela simplesmente chupa os comprimidos de aspirina até ficar com a língua ligeiramente esbranquiçada. Claro que ele poderia dar-lhe as pílulas; três ou quatro seriam suficientes. Cem gramas de aspirina e trinta gramas de Darvon administrados numa mulher cujo peso diminuiu trinta e três por cento em cinco meses. Ninguém sabe que ele tem as cápsulas, nem Kev, nem a esposa. Ele pensa que talvez tenham colocado um paciente na outra cama do Quarto 312, de modo que não haverá motivo para preocupações. Pode escapar em segurança. Pensou que talvez isso fosse realmente melhor. Se houver outra mulher no quarto, suas opções estarão eliminadas e ele poderá considerar o fato como um sinal de anuência da Providência. Ele acha que... ― Você está com melhor aspecto esta noite. ― Estou mesmo? ― Claro. Como se sente? ― Oh, não muito bem. Não muito bem, esta noite. ― Vamos ver você mexer a mão direita. Ela ergue a mão do lençol. Ela flutua um momento, de dedos abertos, diante de seus olhos e toma a cair. Ele sorri e ela retribui o sorriso. Ele pergunta: ― Viu o doutor hoje? ― Sim, ele esteve aqui. É bondade dele vir todos os dias. Quer me dar um pouco d'água, Johnny? Ele lhe dá água por meio do canudinho flexível. ― É bondade sua vir aqui com tanta freqüência, Johnny. Você é um bom filho. Ela está chorando outra vez. A outra cama está vazia, parecendo acusá-lo. De vez em quando, um dos roupões listrados de azul e branco passa diante da porta, caminhando pelo corredor. A porta do quarto está entreaberta. Ele tira delicadamente o copo da mão dela, pensando como um idiota: Este copo está meio cheio ou meio vazio? ― Como vai sua mão esquerda? ― Oh, está ótima. ― Vamos ver. Ela levanta a mão. Sempre foi canhota e talvez seja por isso que aquela mão se recuperou tão bem dos devastadores efeitos da "cortotomia". Ela fecha o punho. Flexiona os dedos. Estala levemente os nós dos dedos. Então, a mão torna a cair sobre o lençol. Ela reclama: ― Mas não tenho sensação nenhuma na mão. ― Deixe-me ver uma coisa. Vai ao guarda-roupa, abre-o e enfia a mão por detrás do casaco que ela usava ao chegar ao hospital, a fim de pegar a bolsa. Ela mantém a bolsa no armário porque é paranóica com relação a ladrões; ouviu dizer que alguns dos atendentes são verdadeiros artistas no furto, capazes de levar tudo que conseguem ter ao alcance das mãos. Ela soube através de uma das companheiras de quarto, que já recebeu alta há muito tempo, que uma mulher internada na ala nova foi roubada em quinhentos dólares que escondia num sapato. Ultimamente, a mãe dele tem sido paranóica a respeito de muitas coisas e, certa vez, lhe disse que um homem se esconde sob sua cama na calada da noite. A culpa cabe em parte à combinação de drogas que estão experimentando nela. Drogas que fazem a benzedrina que ele tomava ocasionalmente na universidade parecer uma substância inócua. Pode-se escolher à vontade nos armários trancados que ficam nas extremidades dos corredores, perto das salas das enfermeiras: excitantes, sedativos, analgésicos e soporíferos. E a morte, talvez ― a morte misericordiosa como um doce cobertor negro. As maravilhas da ciência moderna. Ele leva a bolsa de volta à cama. Abre-a. ― Pode pegar alguma das coisas que estão aqui? ― Oh, Johnny, não sei... Ele diz em tom persuasivo: ― Experimente. Por mim. A mão esquerda dela se ergue do lençol como um helicóptero aleijado. Voa. Mergulha. Sai da bolsa com uma folha amarrotada de papel absorvente. Ele aplaude: ― Ótimo! Muito bem! Mas ela vira o rosto para o outro lado. ― O ano passado, eu era capaz de puxar dois carrinhos carregados de pratos de comida com estas mãos. Se tem que existir uma ocasião, é agora. Faz muito calor no quarto, mas o suor na testa dele é frio. Ele pensa: Se ela não pedir aspirina, eu não o farei. Não esta noite. E sabe que se não for esta noite, nunca mais. Muito bem. ― Pode me dar duas das minhas pílulas, Johnny? É como ela sempre pede. Ela está proibida de tomar qualquer remédio além da medicação prescrita pelo médico, porque perdeu tanto peso que desenvolveu o que seus amigos universitários que usavam tóxicos costumavam chamar de "uma pesada": a imunidade do corpo fica a uma margem ínfima da dose letal. Mais uma pílula e a pessoa morre. Dizem que foi isso que ocorreu com Marilyn Monroe. ― Trouxe algumas pílulas de casa. ― É mesmo. ― São ótimas para dor. Estende a caixa para ela, que só consegue ler de muito perto. Ela franze a testa para as letras grandes no rótulo. ― Já tomei antes esse tal Darvon. Não adiantou. ― Este é mais forte. Ela ergue os olhos da caixa e o encara. Pergunta distraidamente: ― É mesmo? Ele só consegue sorrir como um tolo. É incapaz de falar. E como a primeira vez em que esteve com uma mulher: aconteceu no banco traseiro do carro de um amigo e quando ele voltou para casa a mãe perguntou se ele se divertira ― e ele só conseguiu exibir aquele sorriso tolo. ― Posso mastigá-las? ― Não sei. Pode experimentar uma. ― Está bem. Não permita que percebam. Ele abre a caixa e retira a tampa de plástico do vidro. Puxa o algodão do gargalo. Será ela capaz de fazer tudo isso com aquela mão esquerda aleijada? Eles acreditariam? Ele não sabe. Eles talvez também não saibam. Talvez nem mesmo se importem. Ele sacode o vidro, deixando cair meia dúzia de pílulas na palma da mão. Percebe que ela o está observando. Meia dúzia é demais; até ela deve saber. Se ela disser algo a respeito, ele guardará todas as pílulas de volta no vidro e lhe oferecerá uma contra dor de artrite. Uma enfermeira passa silenciosamente pelo corredor e a mão dele treme, chacalhando as pílulas cinzentas, mas a enfermeira não olha para dentro do quarto a fim de verificar como está passando a "garota da cortotomia". A mãe dele não diz nada, limitando-se a olhar para as pílulas como se fossem perfeitamente normais (se é que isto existe). Mas, por outro lado, ela jamais gostou de celebrações; seria incapaz de quebrar uma garrafa de champanha em seu próprio barco para batizá-lo. ― Lá vamos nós ― diz ele em voz perfeitamente natural. E coloca a primeira pílula na boca da mãe. Ela mastiga pensativamente a pílula com as gengivas até dissolver a cápsula de gelatina. Então, faz uma careta. ― Tem gosto ruim. Então, eu não... ― Não. Não é tão ruim. Ele lhe dá outra. E mais outra. El á as mastiga com aquela mesma expressão pensativa. Ele lhe dá a quarta. Ela sorri e ele percebe, horrorizado, que a língua dela ficou amarela. Talvez se ele lhe der uma pancada na barriga ela vomite tudo. Mas não pode. Seria incapaz de bater na mãe. ― Quer ver se minhas pernas estão juntas? ― Primeiro mastigue estas. Dá-lhe a quinta pílula. E a sexta. Então verifica se as pernas dela estão juntas. Estão. Ela diz: ― Acho que vou dormir um pouco, agora. ― Muito bem. Vou beber água. ― Você sempre foi um bom filho, Johnny. Ele coloca o vidro na caixa e enfia a caixa na bolsa, deixando a tampa de plástico em cima do lençol. Deixa a bolsa aberta ao lado da mãe e pensa: Ela pediu a bolsa. Eu a trouxe e abri para ela, logo antes de ir embora Ela disse que podia tirar da bolsa o que desejava. Disse que chamaria a enfermeira para tornar a guardar a bolsa no armário. Ele sai e bebe água. Há um espelho acima do bebedouro e ele põe a língua para fora, examinando-a. Quando volta ao quarto, ela está dormindo com as mãos juntas. As veias das mãos são grossas e saltadas. Ele a beija na testa e os olhos dela se mexem sob as pálpebras, mas não se abrem. Sim. Ele não sente diferença alguma, nem para melhor nem para pior. Encaminha-se para a porta do quarto e se lembra de mais uma coisa. Volta para perto da mãe, retira a caixa da bolsa, tira o vidro da caixa e o limpa cuidadosamente na camisa. Então, aperta as pontas dos dedos da inerte mão esquerda da mãe de encontro ao vidro. Então, coloca-o de volta no lugar e sai rapidamente do quarto, sem olhar para trás. Volta para casa e espera o telefone tocar, desejando ter dado outro beijo nela. Enquanto espera, assiste à televisão e bebe muita água.A MULHER NO QUARTO A questão é: Será ele capaz de fazer aquilo? Ele não sabe. Ele sabe que ela as mastiga de vez em quando, fazendo caretas por causa do horrível gosto de laranja, emitindo um som de palitos de picolé sendo partidos. Mas estas são pílulas diferentes... cápsulas de gelatina. O rótulo da caixa diz: COMPLEXO DARVON. Ele as encontrou no armário remédios dela e rolou-as na mão, pensando. Era um remédio que o médico receitara antes de ela voltar a ser internada no hospital. Algo para passar a noite. O armário está cheio de remédios, cuidadosamente arrumados em fileiras como frascos de drogas de curandeiro. Sinais do mundo ocidental. SUPOSITÓRIOS FLEET. Ele jamais utilizou um supositório na vida e a idéia de enfiar no reto algo gorduroso que se derrete com o calor do corpo causa-lhe repulsa. Não existe dignidade em enfiar coisas na bunda. LEITE DE MAGNÉSIA DE PHILLIPS. FÓRMULA ANACIN PARA ARTRITE. PEPSO-BISMOL. E assim por diante. É possível reconstituir o progresso da moléstia dela por meio dos remédios. Mas estas pílulas são diferentes. Parecem com o Complexo Darvon normal apenas por serem cápsulas gelatinosas. Mas são maiores, o que seu falecido pai costumava chamar de pílulas "pica de cavalo". O rótulo diz: Aspirina 350g ― Darvon 100g. Seria ela capaz de mastigá-las, mesmo se ele lhe desse em mãos? Seria? A casa ainda continua a funcionar. A geladeira liga e desliga automaticamente, a caldeira também dá partida e, depois, pára, a intervalos regulares o cuco rabujento sai do relógio para anunciar as horas e meias-horas. Ele presume que depois que ela morrer caberá a Kevin e ele desmontar a casa. Ela se foi, mesmo. A casa inteira o diz. Ela. está no Hospital Central de Maine, em Lewiston. Quarto 312. Foi internada quando a dor se tornou tão forte que ela nem mais conseguia ir à cozinha fazer café. Às vezes, quando ele a visitava, ela chorava sem perceber. O elevador sobe barulhentamente e ele se vê examinando o certificado azul da companhia de manutenção de elevadores. O certificado deixa bem claro que, com barulho ou sem ele, o elevador é seguro. Ela já está no hospital há três semanas e hoje fizeram-lhe uma operação chamada "cortotomia". Ele não sabe como se escreve, mas é assim que se pronuncia. O médico disse a ela que "cortotomia" consiste em enfiar uma agulha no pescoço e fazer que penetre até o cérebro. O médico explicou que é algo semelhante a enfiar um alfinete comprido numa laranja e espetar um caroço. Quando a agulha atingir o centro da dor, enviarão um sinal de rádio ao longo da agulha e, quando o sinal atingir a ponta, o centro da dor será eliminado. Como desligar um aparelho de TV. Então, o câncer na barriga deixará de incomodá-la tanto. A idéia de tal operação deixa-o ainda mais inquieto que a idéia de supositórios derretendo-se calidamente em seu reto. Lembra-lhe um livro de Michael Crichton, chamado The Terminal Man, que trata da colocação de fios no cérebro das pessoas. Segundo Crichton, pode ser uma cena muito desagradável. É melhor acreditar. A porta do elevador se abre no terceiro andar e ele sai. Esta é a ala antiga do hospital e tem o cheiro adocicado da serragem que costumam espalhar sobre o vômito nas feiras do interior. Ele deixou as pílulas no porta-luvas do carro. E não bebeu nada antes desta visita. As paredes são pintadas em dois tons: marrom em baixo, branco em cima. Ele reflete que a única combinação de duas cores no mundo que poderia ser mais deprimente que marrom e branco é cor-de-rosa ,e preto. Corredores de hospital pintados assim... A idéia o faz sorrir e sentir náuseas ao mesmo tempo. Dois corredores se cruzam em T em frente ao elevador e existe um bebedouro no qual ele sempre pára a fim de adiar um pouco as coisas. Peças de equipamento hospitalar aqui e acolá, como estranhos brinquedos num playground. Uma maca com lados cromados e rodas de borracha, o tipo de coisa em que o doente é levado à sala de cirurgia quando estão prontos para efetuar a "cortotomia". Também existe um grande objeto circular cuja função ele desconhece. Uma bandeja rolante com uma haste vertical na qual estão pendurados dois vidros, como uma pintura de seios feita por Salvador Dali. Num dos corredores fica a sala das enfermeiras e risos lubrificados a café chegam até ele. Ele bebe água e depois se encaminha para o quarto dela. Tem medo do que possa encontrar e reza para que ela esteja dormindo. Se estiver, ele não a despertará. Acima da porta de cada quarto existe uma pequena luz quadrada. Quando um paciente toca a campainha, a luz se acende, com um brilho vermelho. Em ambos os sentidos do corredor, pacientes andam devagar, usando roupões baratos de hospital sobre pijamas também fornecidos pelo hospital. Os roupões têm finas listras azuis e brancas, bem como golas redondas. Os pijamas de hospital, uma espécie de roupa de baixo, são chamados "johnnies". Os "johnnies" ficam bem nas mulheres, mas parecem esquisitos nos homens porque parecem combinações ou camisolas que chegam à altura dos joelhos. Os homens sempre parecem usar chinelos marrons de couro de imitação. As mulheres preferem chinelas tricotadas, com uma borla de lã. A mãe dele possui um par e as chama de "mulas". Os pacientes lembram-lhe um. filme de terror chamado "A Noite dos MortosVivos". Todos andam devagar, como se alguém lhes destampasse os órgãos como vidros de maionese e os líquidos ficassem balançando lá dentro, prestes a se entornarem. Alguns usam bengalas. Seu andar vagaroso ao passearem pelos corredores é assustador, mas também possui dignidade. É o andar de pessoas que se dirigem lentamente para lugar nenhum, o andar de universitários de becas e barretes acadêmicos dirigindo-se ao auditório para uma reunião. Música ectoplásmica soa por toda parte, emitida por rádios transistorizados. Vozes tagarelam. Ele pode ouvir Black Oak Arkansas cantando "Jim Dandy" (uma voz de falsete grita alegremente "Vai, Jim Dandy ! Vai Jim Dandy!" para os lentos caminhantes no corredor). Pode ouvir o mediador de um programa de debates discutindo Nixon num tom que foi mergulhado em ácido, como uma pena fumegante de caneta. Pode ouvir uma polca cantada em francês ― Lewiston ainda é uma cidade na qual se fala francês e as pessoas gostam quase tanto de dançar quanto de se apunhalarem nos bares da parte mais baixa de Lisbon Street. Ele pára diante da porta do quarto da mãe e durante algum tempo, esteve bastante desorientado a ponto de vir embriagado. Envergonhava-se de estar bêbado diante da mãe, embora ela estivesse por demais dopada e cheia de Elavil para perceber. Elavil é um tranqüilizante que ministram aos pacientes de câncer a fim de não se aborrecerem tanto por estarem morrendo. A rotina que ele seguia era comprar uma dúzia de cervejas Black Label no Mercado de Sonny, à tarde. Sentava com as crianças para assistir aos programas que elas gostavam de ver à tarde na televisão. Três cervejas durante "Rua Sésamo", duas durante "Mister Rogers", uma durante "Companhia Elétrica". Depois, uma com o jantar. Levava as outras cinco cervejas no carro. Era um trajeto de trinta e cinco quilômetros entre Raymond e Lewiston, pelas Rodovias 302 e 202, de modo que era possível estar bastante de porre quando chegava ao hospital, restando ainda uma ou duas cervejas. Trazia coisas para a mãe e as deixava no carro, a fim de ter uma desculpa para voltar e apanhá-las ― e também beber mais meia cerveja, continuando alto. Dava-lhe também uma desculpa para urinar ao ar livre e, de algum modo, isto era o melhor de toda aquela miserável estória. Sempre estacionava o carro no parqueamento lateral, que era de terra batida, esburacada e congelada em novembro, de modo que o ar frio da noite assegurava total contração da bexiga. Urinar num dos banheiros do hospital assemelhava-se demais a uma apoteose de toda aquela experiência hospitalar: o botão da campainha para chamar a enfermeira ao lado da caixa de descarga do vaso sanitário, a alavanca cromada aparafusada num ângulo de 45 graus, o vidro de desinfetante cor-de-rosa acima da pia. Coisa ruim. É melhor acreditar. A vontade de beber no caminho de volta para casa era nenhuma. Portanto, o que sobrasse da cerveja era guardado na geladeira, em casa, e quando completava meia dúzia... ele jamais teria vindo se soubesse que seria tão ruim. A primeira idéia que lhe passa pela cabeça é Ela não é uma laranja e a segunda é Ela está realmente morrendo depressa, agora, como ela tivesse hora marcada para pegar um trem para o nada. Ela luta na cama, sem se mexer, exceto pelos olhos, mas lutando no interior do corpo, pois algo se mexe lá dentro. Tem o pescoço alaranjado por alguma coisa semelhante a mercúrio cromo e um curativo abaixo da orelha esquerda, onde algum médico cantarolante enfiou a agulha de rádio e explodiu 60% de seu controle motor juntamente com o centro de dor. Seu olhar o acompanha como os olhos de um Jesus Cristo estereotipado. ― Acho melhor você não me ver esta noite, Johnny. Não estou muito bem. Talvez esteja melhor amanhã. ― O que sente? ― Coceira. O corpo inteiro me coça. Minhas pernas estão fechadas? Ele não consegue verificar se as pernas dela estão fechadas. São apenas um V elevado sob o amarrotado lençol do hospital. Faz muito calor no quarto. No momento, não há paciente na outra cama. Ele pensa: Companheiros de quarto chegam e saem, mas minha mãe fica para sempre. Cristo! ― Estão, sim, Mamãe. ― Puxe-as para baixo, está bem, Johnny? Depois, é melhor você ir embora. Nunca antes estive numa situação como esta. Não consigo mexer nada. Meu nariz coça. Não é de causar pena, sentir coceira no nariz e não poder coçá-lo? Ele coça o nariz dela e depois segura-lhe as pernas através do lençol e puxa-as para baixo. Pode segurar ambas as pernas com apenas uma das mãos, sem maiores dificuldades, embora não tenha mãos particularmente grandes. Ela geme. As lágrimas lhe escorrem dos olhos para as orelhas. ― Mamãe? ― Pode puxar minhas pernas para baixo? ― Acabo de fazer isso. ― Oh. Está bem, então. Creio que estou chorando. Não queria chorar na sua frente. Gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto. ― Quer um cigarro? ― Pode me dar um gole d'água primeiro, Johnny? Estou seca corno madeira velha. ― Claro. Ele pega o copo com o canudinho flexível e sai do quarto, indo até o bebedouro. Um homem gordo com uma atadura elástica na perna caminha lentamente pelo corredor. Não está usando um dos roupões listrados e segura o "johnny", fechando-o atrás de si. Ele enche o copo no bebedouro e volta ao Quarto 312. Ela parou de chorar. Seus lábios se fecham sobre o canudinho de um modo que lembra a ele um camelo que viu num filme de viagens. O rosto está magro, descarnado. A lembrança mais vívida que ele tem dela na vida que levou como seu filho é de uma época em que tinha doze anos. Ele, seu irmão Kevin e aquela mulher tinham-se mudado para o Maine a fim de que ela pudesse cuidar dos pais. A mãe era velha e inválida. Pressão alta tornara a avó dele senil e, para somar insulto ao mal físico, deixara-a cega. Feliz 68° aniversário. Boa piada. E ela ficava deitada na cama o dia inteiro, cega e senil, usando enormes fraldas e calças de borracha, incapaz de se lembrar do que fora servido no café da manhã, mas capaz de recitar os nomes de todos os Presidentes dos Estados Unidos, até Ike Eisenhower. E assim, três gerações da família tinham vivido juntas naquela casa onde ele tão recentemente encontrara as pílulas (embora ambos os avós já tivessem morrido há muito tempo) e, aos doze anos, ele reclamava de algo durante o café da manhã. Não se recorda de que, mas reclamava de alguma coisa. Sua mãe estivera lavando as fraldas mijadas da avó e passando-as pelos rolos secadores da antiga máquina de lavar roupa. Voltando-se para ele, batera-lhe com uma das fraldas e a primeira pancada da fralda molhada e pesada virara o prato de mingau que ele estava tomando, atirando-o através da mesa. A segunda pancada o atingira nas costas, sem machucar, mas fazendo-o calar-se de susto e parar de reclamar. E aquela velha encarquilhada que agora jazia sobre a cama naquele quarto de hospital tornara a bater-lhe repetidamente com a fralda molhada, dizendo: Cale essa boca tagarela, a única coisa que você tem de grande é a língua e trate de mantê-la quieta até que o resto de você fique do mesmo tamanho ― e cada palavra grifada era acompanhada de uma pancada com a fralda da avó. Quaisquer outras reclamações que ele tivesse a fazer simplesmente se evaporaram. Não havia no mundo oportunidade para conversa fiada. Naquele dia e para sempre, ele descobriu que não existe no mundo algo tão perfeito para fixar a impressão de um menino de doze anos quanto ao seu lugar no esquema, de acordo com a devida perspectiva, que levar nas costas uma pancada com uma fralda molhada da avó. Depois disso, ele levara quatro anos para reaprender a arte de bancar o espertinho. Ela se engasga um pouco com a água e o assusta, apesar de estar pensando em dar as pílulas a ela. Torna a perguntar se ela quer um cigarro. ― Se não for incômodo para você ― responde ela. ― Depois, é melhor você ir. Talvez eu esteja melhor amanhã. Ele tira um Kool de um dos maços espalhados sobre a mesinha de cabeceira e o acende. Segurando-o entre o polegar e o indicador da mão direita, leva-o aos lábios dela, que tira uma tragada, fazendo um bico com os lábios para sugar o filtro. A tragada é fraca; a fumaça lhe escapa pelos lábios. ― Tive que viver sessenta anos para que meu filho segurasse um cigarro para mim. ― Não me incomodo. Ela tira outra tragada e prende o filtro com os lábios durante tanto tempo que ele ergue o olhar para fitar os olhos dela e percebe que estão fechados. ― Mamãe? Ela entreabre vagamente os olhos. ― Johnny? ― Exato. ― Há quanto tempo está aqui? ― Não muito. Acho melhor eu ir embora e deixar você dormir. ― Hmrnmm. Ele apaga o cigarro no cinzeiro e sai furtivamente do quarto, pensando: Quero falar com aquele médico. Diabo, quero falar com o médico que fez aquilo. Ao entrar no elevador, reflete que a palavra "doutor" se transforma em sinônimo de "homem" depois que um certo grau de proficiência na profissão é atingido, como se fosse previsto e esperado que os médicos devam ser cruéis para, assim, chegarem a um grau especial de humanidade. Mas. ― Não creio que ela dure muito mais ― diz ele ao irmão mais tarde, naquela mesma noite. O irmão mora em Andover, cento e dez quilômetros a oeste. Só vai ao hospital uma ou duas vezes por semana. ― Mas a dor melhorou? ― indaga Kev. ― Ela diz que sente coceiras. Tem as pílulas no bolso do paletó. Sua esposa já foi dormir. Tira as pílulas do bolso, roubadas da casa vazia da mãe, onde outrora todos eles moraram com os avós. Enquanto fala, gira a caixa entre os dedos, como um pé de coelho. ― Bem, então ela está melhor. Para Kev tudo está melhor, sempre, como se a vida caminhasse para um clímax sublime. É uma opinião da qual o irmão mais moço não compartilha. ― Ela está paralisada. ― Interessa, a esta altura? ― Claro que interessa! ― explode ele, pensando nas pernas dela sob o lençol branco amarrotado. ― Ela está morrendo, John. ― Ainda não morreu. Na realidade, é isso que o horroriza. Daqui em diante, a conversa prosseguirá em círculos, com os lucros indo para a companhia telefônica. Mas este é o ponto crucial: ela está morrendo, mas ainda não morreu. Simplesmente jaz naquele leito de hospital com uma etiqueta presa ao pulso, escutando rádios fantasmas passearem pelo corredor. E ela terá que lutar contra o tempo, diz o médico. É um sujeito grandalhão, com uma barba ruiva alourada. Tem mais de um metro e noventa de altura, ombros heróicos. O médico o conduziu delicadamente para o corredor quando ela começou a cochilar. E prossegue: ― Entenda: numa operação como a "cortotomia", algum dano motor e quase inevitável. Agora, sua mãe já tem algum movimento na mão esquerda. Podemos esperar, razoavelmente, que ela recupere a mão direita dentro de duas a quatro semanas. ― Ela voltará a andar? O médico fita judiciosamente o teto de cortiça furada do corredor. Sua barba nasce desde o colarinho da camisa quadriculada e, por algum motivo ridículo, Johnny se lembra de Algerson Swinbume; ora, não podia dizer. O homem à sua frente é o oposto de Swinbume, sob todos os aspectos. ― Eu diria que não. Ela perdeu muito terreno. ― Vai ficar inválida pelo resto da vida? ― Sim, creio que é uma suposição razoável. Ele começa a sentir alguma admiração por aquele homem, que esperava que fosse seguramente detestável. É uma sensação seguida de desgosto: precisa sentir admiração pela mera verdade? ― Por quanto tempo ela pode viver assim? ― É difícil dizer. (Estava ficando melhor, pensou ele.) Agora, o tumor está bloqueando um dos rins. O outro funciona normalmente. Quando o tumor bloquear o segundo, ela dormirá. ― Coma urêmico? ― Sim ― diz o médico, mas com um pouco mais de cautela. "Uremia" é um termo técnico-patológico, geralmente de uso exclusivo dos médicos e legistas. Mas Johnny o conhece porque sua avó morreu da mesma causa, embora não tivesse câncer. Seus rins deixaram de funcionar e ela morreu flutuando em urina interna até a caixa torácica. Morreu na cama, em casa, à hora do jantar. Johnny foi o primeiro a suspeitar de que ela estivesse realmente morta e não dormindo da maneira comatosa, de boca aberta, que é costume dos velhos. Sua velha boca desdentada estava repuxada para dentro, lembrando um tomate cujo miolo foi extraído e depois ficou esquecido na prateleira da cozinha durante vários dias. Duas lágrimas tinham escorrido dos olhos. Ele colocou um espelhinho redondo de maquilagem junto dos lábios durante um minuto e, quando o espelho não se embaçou e escondeu a imagem daquela boca de tomate murcho, chamou a mãe. Tudo aquilo pareceu certo como isto agora parecia errado. ― Ela ainda se queixa de dor. E de coceiras. O médico bate solenemente com o dedo na cabeça, como Victor de Groot nas velhas caricaturas de psiquiatras. ― Ela imagina a dor. Nem por isso é menos real. Real para ela. Eis porque o tempo é tão importante. Sua mãe não pode mais contar o tempo em termos de segundos, minutos e horas. Deve reestruturar essas unidades em dias, semanas, meses. Ele compreende o que o homem corpulento está dizendo e sente-se impotente. É como o leve tinir de uma campainha. Ele não pode conversar mais com o médico. É um técnico. Fala com palavras suaves a respeito do tempo, como se pudesse agarrar o conceito de tempo com a mesma facilidade que um caniço de pesca. E talvez possa. ― O senhor pode fazer mais alguma coisa por ela? ― Muito pouco. Mas ele se porta com serenidade, como se aquilo estivesse certo. Afinal, não está alimentando "falsas esperanças". ― Pode ser pior que um coma? ― Claro que pode. Não podemos prever essas coisas com um alto grau de precisão. É como se existisse um tubarão solto no interior do corpo do doente. Ela pode inchar. ― Inchar? ― Seu abdome pode aumentar, diminuir e depois tornar a aumentar. Mas por que falar nisso agora? Creio que, com certa segurança, podemos dizer que que eles fariam o serviço. Mas se não fizerem? Ou suponhamos que me apanhem? Não quero ser processado sob acusação de praticar eutanásia. Mesmo que seja absolvido. Não tenho causas a defender. Ele pensa nas manchetes dos jornais berrando MATRICÍDIO e faz uma careta. Sentado no carro, no estacionamento, revira interminavelmente a caixa de pílulas com os dedos. COMPLEXO DARVON. A questão continua a ser: Será ele capaz? Deve fazê-lo? Ela disse: Eu gostaria de me livrar disto. Daria tudo para ficar livre disto. Kevin anda falando em arrumar um quarto em sua casa, para que ela não morra no hospital. O hospital quer que ela vá embora. Deram-lhe uma nova pílula e ela entrou em delírio. Isso ocorreu quatro dias depois da "cortotomia". Eles gostariam que ela fosse para outro lugar, porque até hoje ninguém aperfeiçoou uma "cancerotomia" infalível. E, a esta altura, se tirassem todo o câncer, nada restaria a ela exceto as pernas e a cabeça. Ele imagina como o tempo deve ser para ela: como algo que escapou ao controle, como uma caixa de costura cheia de novelos espalhados pelo chão para um gato brincar. Os dias no Quarto 312. As noites no Quarto 312. Eles amarram um barbante no interruptor da campainha e no dedo indicador da mão esquerda, porque ela já não pode movimentar suficientemente a mão quando acha que vai precisar da "comadre". De qualquer maneira, não faz muita diferença, porque ela não pode sentir a pressão lá embaixo; no interior de sua barriga bem poderia existir um monte de serragem. Ela evacua na cama e urina na cama ― e só percebe que o fez quando sente o cheiro. Dos setenta e cinco quilos que pesava, diminuiu para quarenta e dois e os músculos do corpo estão tão flácidos que ela é apenas um saco vazio ligado ao cérebro, como um boneco de criança. Haveria alguma diferença na casa de Kevin? Seria capaz de cometer homicídio? Ele sabe que é homicídio. O pior tipo de homicídio ― o matricídio ―, como se ele fosse um feto consciente num dos primeiros livros de terror de ficção científica escritos por Ray Bradbury, decidido a virar a mesa e abortar o animal que o gerou. De qualquer modo, talvez a culpa seja dele. Foi o Único filho nutrido dentro dela, um bebê temporão, quase na época da menopausa. Seu irmão Kevin foi adotado quando um médico sorridente disse a ela que jamais poderia conceber um filho. E, naturalmente, o câncer que agora lhe destruía as entranhas começara no útero, como um segundo filho, sombrio irmão gêmeo dele. A vida dele e a morte dela tinham começado no mesmo lugar. Deveria ele não fazer o que já estava fazendo agora de forma tão lenta e desajeitada? Vem dando a ela aspirina, às escondidas, para a dor que ela imagina sentir. Ela guarda os comprimidos numa caixinha de balas, na gaveta da mesa de cabeceira do hospital, juntamente com os cartões desejando pronto restabelecimento e os óculos que já não têm serventia. Tiraram-lhe as dentaduras por medo que ela as enfiasse pela garganta abaixo e morresse asfixiada, de modo que agora ela simplesmente chupa os comprimidos de aspirina até ficar com a língua ligeiramente esbranquiçada. Claro que ele poderia dar-lhe as pílulas; três ou quatro seriam suficientes. Cem gramas de aspirina e trinta gramas de Darvon administrados numa mulher cujo peso diminuiu trinta e três por cento em cinco meses. Ninguém sabe que ele tem as cápsulas, nem Kev, nem a esposa. Ele pensa que talvez tenham colocado um paciente na outra cama do Quarto 312, de modo que não haverá motivo para preocupações. Pode escapar em segurança. Pensou que talvez isso fosse realmente melhor. Se houver outra mulher no quarto, suas opções estarão eliminadas e ele poderá considerar o fato como um sinal de anuência da Providência. Ele acha que... ― Você está com melhor aspecto esta noite. ― Estou mesmo? ― Claro. Como se sente? ― Oh, não muito bem. Não muito bem, esta noite. ― Vamos ver você mexer a mão direita. Ela ergue a mão do lençol. Ela flutua um momento, de dedos abertos, diante de seus olhos e toma a cair. Ele sorri e ela retribui o sorriso. Ele pergunta: ― Viu o doutor hoje? ― Sim, ele esteve aqui. É bondade dele vir todos os dias. Quer me dar um pouco d'água, Johnny? Ele lhe dá água por meio do canudinho flexível. ― É bondade sua vir aqui com tanta freqüência, Johnny. Você é um bom filho. Ela está chorando outra vez. A outra cama está vazia, parecendo acusá-lo. De vez em quando, um dos roupões listrados de azul e branco passa diante da porta, caminhando pelo corredor. A porta do quarto está entreaberta. Ele tira delicadamente o copo da mão dela, pensando como um idiota: Este copo está meio cheio ou meio vazio? ― Como vai sua mão esquerda? ― Oh, está ótima. ― Vamos ver. Ela levanta a mão. Sempre foi canhota e talvez seja por isso que aquela mão se recuperou tão bem dos devastadores efeitos da "cortotomia". Ela fecha o punho. Flexiona os dedos. Estala levemente os nós dos dedos. Então, a mão torna a cair sobre o lençol. Ela reclama: ― Mas não tenho sensação nenhuma na mão. ― Deixe-me ver uma coisa. Vai ao guarda-roupa, abre-o e enfia a mão por detrás do casaco que ela usava ao chegar ao hospital, a fim de pegar a bolsa. Ela mantém a bolsa no armário porque é paranóica com relação a ladrões; ouviu dizer que alguns dos atendentes são verdadeiros artistas no furto, capazes de levar tudo que conseguem ter ao alcance das mãos. Ela soube através de uma das companheiras de quarto, que já recebeu alta há muito tempo, que uma mulher internada na ala nova foi roubada em quinhentos dólares que escondia num sapato. Ultimamente, a mãe dele tem sido paranóica a respeito de muitas coisas e, certa vez, lhe disse que um homem se esconde sob sua cama na calada da noite. A culpa cabe em parte à combinação de drogas que estão experimentando nela. Drogas que fazem a benzedrina que ele tomava ocasionalmente na universidade parecer uma substância inócua. Pode-se escolher à vontade nos armários trancados que ficam nas extremidades dos corredores, perto das salas das enfermeiras: excitantes, sedativos, analgésicos e soporíferos. E a morte, talvez ― a morte misericordiosa como um doce cobertor negro. As maravilhas da ciência moderna. Ele leva a bolsa de volta à cama. Abre-a. ― Pode pegar alguma das coisas que estão aqui? ― Oh, Johnny, não sei... Ele diz em tom persuasivo: ― Experimente. Por mim. A mão esquerda dela se ergue do lençol como um helicóptero aleijado. Voa. Mergulha. Sai da bolsa com uma folha amarrotada de papel absorvente. Ele aplaude: ― Ótimo! Muito bem! Mas ela vira o rosto para o outro lado. ― O ano passado, eu era capaz de puxar dois carrinhos carregados de pratos de comida com estas mãos. Se tem que existir uma ocasião, é agora. Faz muito calor no quarto, mas o suor na testa dele é frio. Ele pensa: Se ela não pedir aspirina, eu não o farei. Não esta noite. E sabe que se não for esta noite, nunca mais. Muito bem. ― Pode me dar duas das minhas pílulas, Johnny? É como ela sempre pede. Ela está proibida de tomar qualquer remédio além da medicação prescrita pelo médico, porque perdeu tanto peso que desenvolveu o que seus amigos universitários que usavam tóxicos costumavam chamar de "uma pesada": a imunidade do corpo fica a uma margem ínfima da dose letal. Mais uma pílula e a pessoa morre. Dizem que foi isso que ocorreu com Marilyn Monroe. ― Trouxe algumas pílulas de casa. ― É mesmo. ― São ótimas para dor. Estende a caixa para ela, que só consegue ler de muito perto. Ela franze a testa para as letras grandes no rótulo. ― Já tomei antes esse tal Darvon. Não adiantou. ― Este é mais forte. Ela ergue os olhos da caixa e o encara. Pergunta distraidamente: ― É mesmo? Ele só consegue sorrir como um tolo. É incapaz de falar. E como a primeira vez em que esteve com uma mulher: aconteceu no banco traseiro do carro de um amigo e quando ele voltou para casa a mãe perguntou se ele se divertira ― e ele só conseguiu exibir aquele sorriso tolo. ― Posso mastigá-las? ― Não sei. Pode experimentar uma. ― Está bem. Não permita que percebam. Ele abre a caixa e retira a tampa de plástico do vidro. Puxa o algodão do gargalo. Será ela capaz de fazer tudo isso com aquela mão esquerda aleijada? Eles acreditariam? Ele não sabe. Eles talvez também não saibam. Talvez nem mesmo se importem. Ele sacode o vidro, deixando cair meia dúzia de pílulas na palma da mão. Percebe que ela o está observando. Meia dúzia é demais; até ela deve saber. Se ela disser algo a respeito, ele guardará todas as pílulas de volta no vidro e lhe oferecerá uma contra dor de artrite. Uma enfermeira passa silenciosamente pelo corredor e a mão dele treme, chacalhando as pílulas cinzentas, mas a enfermeira não olha para dentro do quarto a fim de verificar como está passando a "garota da cortotomia". A mãe dele não diz nada, limitando-se a olhar para as pílulas como se fossem perfeitamente normais (se é que isto existe). Mas, por outro lado, ela jamais gostou de celebrações; seria incapaz de quebrar uma garrafa de champanha em seu próprio barco para batizá-lo. ― Lá vamos nós ― diz ele em voz perfeitamente natural. E coloca a primeira pílula na boca da mãe. Ela mastiga pensativamente a pílula com as gengivas até dissolver a cápsula de gelatina. Então, faz uma careta. ― Tem gosto ruim. Então, eu não... ― Não. Não é tão ruim. Ele lhe dá outra. E mais outra. El á as mastiga com aquela mesma expressão pensativa. Ele lhe dá a quarta. Ela sorri e ele percebe, horrorizado, que a língua dela ficou amarela. Talvez se ele lhe der uma pancada na barriga ela vomite tudo. Mas não pode. Seria incapaz de bater na mãe. ― Quer ver se minhas pernas estão juntas? ― Primeiro mastigue estas. Dá-lhe a quinta pílula. E a sexta. Então verifica se as pernas dela estão juntas. Estão. Ela diz: ― Acho que vou dormir um pouco, agora. ― Muito bem. Vou beber água. ― Você sempre foi um bom filho, Johnny. Ele coloca o vidro na caixa e enfia a caixa na bolsa, deixando a tampa de plástico em cima do lençol. Deixa a bolsa aberta ao lado da mãe e pensa: Ela pediu a bolsa. Eu a trouxe e abri para ela, logo antes de ir embora Ela disse que podia tirar da bolsa o que desejava. Disse que chamaria a enfermeira para tornar a guardar a bolsa no armário. Ele sai e bebe água. Há um espelho acima do bebedouro e ele põe a língua para fora, examinando-a. Quando volta ao quarto, ela está dormindo com as mãos juntas. As veias das mãos são grossas e saltadas. Ele a beija na testa e os olhos dela se mexem sob as pálpebras, mas não se abrem. Sim. Ele não sente diferença alguma, nem para melhor nem para pior. Encaminha-se para a porta do quarto e se lembra de mais uma coisa. Volta para perto da mãe, retira a caixa da bolsa, tira o vidro da caixa e o limpa cuidadosamente na camisa. Então, aperta as pontas dos dedos da inerte mão esquerda da mãe de encontro ao vidro. Então, coloca-o de volta no lugar e sai rapidamente do quarto, sem olhar para trás. Volta para casa e espera o telefone tocar, desejando ter dado outro beijo nela. Enquanto espera, assiste à televisão e bebe muita água.

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